Meu príncipe, meu irmão - Capítulo 23: A primeira grande merda

Um conto erótico de Th1ago-
Categoria: Gay
Contém 4378 palavras
Data: 21/01/2025 11:30:09

Me lembro daquele dia como se fosse hoje. Às vezes, fico na dúvida sobre qual realmente foi o dia da grande merda. O dia em que o pai de Gustavo descobriu sobre a gente ou o dia em que ele morreu. Mas sei que, independentemente de qualquer coisa, esses dois momentos foram o estopim para tudo o que veio depois. Para o vício de Gustavo. Para a dor. Para o caos.

Aquele dia começou normal, tão banal quanto qualquer outro, mas a banalidade tem um jeito estranho de mascarar os momentos que mudarão sua vida para sempre. Lembro de estar me resolvendo com Gustavo, íamos deixar as brigas de lado, nós estávamos nos beijando, afinal, por mais que brigassemos por razões bobas, nos amávamos de uma maneira gigante.

De repente, o barulho da porta batendo forte anunciou que ele havia chegado. O pai de Gustavo tinha uma presença que preenchia o ambiente de um jeito sufocante. Sua voz ecoava como um trovão, e eu sabia que, mesmo que não estivesse gritando, ele sempre parecia estar prestes a explodir.

Quando ele entrou na sala e nos viu próximos demais, algo mudou no ar. Foi como se o oxigênio tivesse sido sugado, e tudo o que sobrou foi uma tensão palpável.

– Que porra você está fazendo com meu filho? – ele disse, avançando em minha direção com passos firmes e uma expressão carregada de ódio.

Antes que eu pudesse reagir, ele agarrou meu braço com tanta força que parecia que ia arrancá-lo do lugar. O choque me paralisou por um segundo, mas a dor foi o suficiente para me despertar.

– Me solta – consegui dizer, a voz saindo mais trêmula do que eu gostaria.

Mas ele não me soltou. Pelo contrário, apertou ainda mais, como se quisesse deixar uma marca permanente em mim. E então, em um movimento rápido, sua mão me soltou apenas para atravessar o ar e acertar um tapa tão forte no meu peito que o impacto me fez tropeçar para trás.

O barulho do golpe ecoou pela sala, mas o que realmente me feriu foi a humilhação. Fechei os olhos com força, tentando conter as lágrimas que ameaçavam cair. Não era só dor física. Era um tipo de dor que queimava por dentro, que arrancava pedaços da sua dignidade.

– Você está maluco? – a voz de Gustavo cortou o silêncio pesado enquanto ele se colocava entre mim e o pai. – Não encosta um dedo nele!

O pai de Gustavo se virou para ele com uma fúria que parecia inumana. Seus olhos estavam cheios de algo que eu não conseguia descrever – um ódio tão profundo que parecia consumir tudo ao redor.

– Eu não criei filho pra ser viado – ele gritou, agarrando Gustavo pelo colarinho da camiseta.

Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele jogou Gustavo com força contra a parede. O som do corpo dele batendo na superfície dura fez meu coração parar por um segundo. Gustavo gemeu de dor, mas ainda assim tentou se levantar, com os olhos fixos no pai, cheios de desafio e lágrimas contidas.

– Você não sabe de nada – Gustavo gritou, a voz embargada, mas firme. – Você nunca soube de mim!

O pai dele riu, mas não era um riso de humor. Era cruel, cheio de desprezo. Ele avançou novamente, e dessa vez eu gritei, tentando intervir.

– Para! Por favor, para! – implorei, sentindo o desespero crescer dentro de mim como uma maré avassaladora.

Mas ele não me ouviu. Gustavo tentou lutar, tentou se defender, mas o pai dele era maior, mais forte, e o ódio parecia lhe dar ainda mais força. Ele o segurou pelo braço, torcendo-o, e desferiu outro golpe, dessa vez no rosto.

Eu estava imóvel, paralisado pelo pânico. Tudo dentro de mim gritava para que eu fizesse algo, mas minhas pernas não obedeciam. Eu era inútil, incapaz de protegê-lo.

Gustavo olhou para mim, e naquele olhar havia uma mistura de dor, vergonha e algo que parecia um pedido de desculpas. Ele estava se desculpando por algo que não era culpa dele. Por algo que nenhum de nós merecia.

– Você acha que pode fazer o que quiser? – o pai dele rugiu, segurando-o pelo cabelo e puxando-o para mais perto. – Que pode desrespeitar a mim e à minha casa desse jeito?

– Eu não te devo nada – Gustavo respondeu, cuspindo as palavras como se fossem veneno.

O pai dele levantou a mão novamente, e foi nesse momento que eu me movi, quase sem pensar, colocando-me entre os dois.

– Chega! – gritei, minha voz soando estranha aos meus próprios ouvidos. – Você já fez o suficiente!

Ele me empurrou de lado como se eu fosse nada, mas aquele momento de distração foi o suficiente para Gustavo se soltar e correr para perto de mim. Ficamos os dois ali, ofegantes, olhando para ele como se fosse um monstro, enquanto ele nos encarava com aquele mesmo olhar de ódio.

– Vocês são uma vergonha – ele disse, antes de se virar e sair da sala, batendo a porta com tanta força que fez as janelas tremerem.

Ficamos em silêncio por um longo tempo. Eu queria dizer algo, mas não sabia o quê. Queria segurar Gustavo, mas não tinha certeza se ele permitiria. Ele simplesmente se sentou no chão, os olhos fixos no vazio, enquanto lágrimas silenciosas escorriam por seu rosto.

E foi nesse momento que eu percebi o quanto tudo estava quebrado. Não apenas Gustavo ou eu, mas nós. Nossa história. Nosso futuro.

Eu me sentei ao lado dele, tentando encontrar as palavras certas, mas tudo o que consegui foi segurar sua mão, esperando que, de alguma forma, aquele simples gesto fosse o suficiente para fazê-lo saber que eu estava ali. Mesmo quando tudo parecia perdido.

O pai de Gustavo se virou para ir embora, mas parou na porta, como se algo o tivesse atingido de novo. Ele olhou para nós, mas dessa vez não havia apenas ódio em seus olhos – havia algo mais sombrio, algo que fazia cada célula do meu corpo querer fugir.

– Uma vergonha – ele repetiu, a voz carregada de veneno. – Uma porra de uma vergonha.

Mas, em vez de sair, ele voltou. Eu mal tive tempo de processar o que estava acontecendo quando ele agarrou Gustavo pelo braço, puxando-o com tanta força que o ouvi gemer de dor.

– Me solta, porra! – Gustavo tentou se desvencilhar, mas ele era muito mais forte.

– Cala essa boca, moleque! – ele gritou, arrastando Gustavo para fora da casa enquanto eu ficava parado, congelado pelo pavor.

Eu os segui, hesitante, com as pernas tremendo. Assim que chegamos à varanda, ele empurrou Gustavo contra a grade com tanta força que o barulho do impacto ecoou no ar frio da noite. Antes que eu pudesse reagir, vi o pai dele desabotoando o cinto.

Meu coração parou.

– Não, por favor, não faz isso! – implorei, minha voz se quebrando.

Mas ele não me ouviu. Em um movimento rápido, tirou o cinto da calça e o segurou firme, como uma arma. Gustavo, ainda tentando recuperar o equilíbrio, mal teve tempo de se proteger antes que o primeiro golpe o atingisse.

O som do couro contra a pele foi brutal, um estalo que fez meus ouvidos zumbirem.

– VOCÊ ACHA QUE ISSO É NORMAL? – ele gritou, o rosto contorcido em uma mistura de raiva e algo quase animalesco.

Outro golpe. Dessa vez nas costas de Gustavo, que caiu de joelhos, arfando de dor.

– PAI, PARA! – Gustavo gritou, mas sua voz foi abafada pelo som do próximo golpe, que deixou uma marca vermelha e grossa em seu braço.

Eu estava em choque, vendo tudo como se estivesse preso em um pesadelo. Gustavo tentou se levantar, mas outro golpe o derrubou novamente.

– Por favor, para! – implorei novamente, mas ele não me ouviu.

As lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto enquanto eu corria para dentro da casa, pegando o telefone com as mãos trêmulas. Minha mente estava um caos, mas eu sabia que precisava fazer algo. Qualquer coisa.

Tentei ligar para minha mãe, mas ela não atendeu.

– Por favor, atende, atende! – murmurei, pressionando o telefone contra a orelha enquanto ouvia mais gritos e o som dos golpes lá fora.

Sem pensar, disquei o número da minha avó, uma das poucas pessoas em quem eu sabia que podia confiar.

– Alô? – a voz dela soou do outro lado da linha, calma, como se nada estivesse acontecendo.

– Vó! – gritei, minha voz saindo entrecortada pelo choro. – Ele está batendo no Gustavo! Tá doendo muito! Ele vai matar o Gustavo!

– O quê? – ela exclamou, agora com a voz tomada por desespero. – Onde vocês estão?

– Em casa! Na varanda! Ele tá usando um cinto! Tá machucando ele! – eu mal conseguia formar as palavras, soluçando enquanto olhava para a cena horrível pela janela.

– Fica aí, Léo. Não deixa ele sair. Tô indo praí agora! – ela disse, antes de desligar abruptamente.

Voltei para a porta, tentando fazer algo, mas sentindo-me completamente inútil. Gustavo estava chorando agora, mas não era um choro alto – eram lágrimas silenciosas, que escorriam pelo rosto dele enquanto ele suportava o que parecia ser uma eternidade de dor.

Quando o pai dele finalmente parou, ofegante, Gustavo estava deitado no chão, o corpo curvado enquanto tentava se proteger dos golpes. O sangue já havia manchado sua camiseta e escorria para o piso da varanda.

– É isso que você merece – o pai dele disse, jogando o cinto no chão antes de entrar na casa, como se nada tivesse acontecido.

Corri até Gustavo, meu coração apertado pela cena devastadora. Me ajoelhei ao lado dele, tocando seu rosto com cuidado.

– Gustavo, me responde! Por favor, diz que você tá bem! – supliquei, minha voz carregada de desespero.

Ele abriu os olhos lentamente, seu olhar perdido, como se estivesse a milhas de distância.

– Eu... não consigo, Léo – ele sussurrou, a voz tão fraca que quase não consegui ouvi-lo.

E naquele momento, eu senti como se algo dentro de mim tivesse se quebrado para sempre.

O tempo parecia ter parado. Cada segundo arrastava-se como uma eternidade enquanto eu mantinha Gustavo nos meus braços, tentando acalmá-lo, mesmo sabendo que nada poderia apagar o horror que ele acabara de passar. O silêncio pesado da casa só era quebrado pelo som dos soluços de Gustavo e pela respiração entrecortada dele.

Então, de repente, a porta da casa se abriu com um estrondo, e o pai de Gustavo apareceu novamente, desta vez segurando uma pilha de roupas. Ele desceu as escadas da varanda em passos largos, com o rosto tomado pela raiva.

Sem pensar duas vezes, ele começou a jogar as roupas no chão, espalhando-as pela terra úmida do jardim.

– Isso aqui é o que você merece! – ele gritou, apontando para Gustavo com o dedo trêmulo de ódio. – Eu não quero um viado morando na minha casa!

A cada palavra, sua voz parecia mais carregada de desprezo.

– Você acha que pode manchar meu nome? Envergonhar a minha família? Você acha que eu criei um filho pra virar essa... essa merda?

As palavras dele eram como facas, cortando cada parte de mim. Gustavo, ainda fraco, tentou se levantar, mas eu o impedi, segurando seu braço com cuidado. Ele olhou para mim com olhos cheios de lágrimas, mas também de uma determinação que eu nunca havia visto antes.

– Você não precisa ouvir isso – sussurrei, mas ele balançou a cabeça, se levantando com dificuldade.

O pai dele se voltou para mim agora, o olhar queimando de ódio.

– E você, moleque? O que ainda tá fazendo aqui? – Ele avançou, mas eu não recuei. Meu coração estava batendo tão rápido que parecia que ia sair do peito, mas eu me mantive firme.

– Essa casa não é sua – retruquei, a voz saindo mais forte do que eu esperava. – É da minha mãe. E você não tem o direito de tratar ninguém assim.

O rosto dele se contorceu em pura fúria. Antes que eu pudesse reagir, senti sua mão agarrar meu pescoço. O aperto era forte, doloroso, e eu lutei para respirar enquanto ele me empurrava contra a parede da varanda.

– A sua mãe não manda em porra nenhuma nessa casa – ele rosnou, o hálito quente e amargo contra meu rosto.

– Você é um merda – consegui dizer, mesmo com a voz presa e o peito ardendo. – Um preconceituoso, patético...

A última palavra mal saiu dos meus lábios antes de sentir meu corpo ser arremessado contra a parede novamente. A dor irradiou pelas minhas costas, mas eu não gritei. Não daria esse prazer a ele.

– É melhor calar essa boca suja, moleque – ele ameaçou, com o dedo apontado para mim. – Ou você vai acabar igual a ele.

Foi então que Gustavo, ainda cambaleante, se levantou. Ele estava destruído, com as marcas do cinto ainda brilhando em sua pele, o sangue seco formando manchas escuras em sua camiseta. Mas havia algo nos olhos dele – uma força bruta, um ódio tão profundo que parecia maior que a dor que ele sentia.

Ele caminhou lentamente até nós, agarrando meu braço para me afastar de perto do pai dele. Depois, ergueu os olhos e o encarou diretamente.

– Você nunca mais encosta nele – disse Gustavo, a voz baixa, mas carregada de uma ameaça que até eu senti arrepiar minha pele.

O pai dele riu, um som curto e cruel.

– E quem vai me impedir? Você? Um moleque fraco que mal consegue ficar de pé?

Gustavo deu um passo à frente, aproximando-se mais, até que seus rostos estavam a poucos centímetros de distância.

– Eu juro pela minha vida – ele disse, cada palavra saindo como uma sentença. – Se você encostar nele de novo, eu acabo com a sua vida.

O silêncio que seguiu foi quase palpável. O pai de Gustavo o encarou por longos segundos, como se avaliasse se a ameaça era real. Então, com um movimento brusco, ele deu as costas e entrou na casa, batendo a porta com tanta força que o som ecoou pelo ar.

Assim que ele sumiu, Gustavo desabou no chão. Eu corri até ele, segurando-o enquanto ele tremia, as lágrimas finalmente escapando dos olhos dele.

– Tá tudo bem agora – murmurei, mesmo sabendo que era mentira. Nada estava bem. Nada ficaria bem.

Mas naquele momento, era tudo o que eu podia dizer.

O tempo parecia ter congelado. Não sei dizer quanto tempo se passou enquanto ficávamos ali, sentados no chão frio e úmido, do lado de fora daquela casa. Lembro-me de olhar para Gustavo, seus olhos fixos no nada, o rosto pálido e abatido. O sangue em suas roupas já começava a secar, deixando manchas escuras que pareciam tão permanentes quanto as marcas em sua pele.

Nós não dissemos nada. Apenas ficamos ali, lado a lado, de mãos dadas. O silêncio entre nós era pesado, quase sufocante, mas eu não conseguia soltá-lo. Ele tremia levemente, e eu sabia que aquilo não era só por causa do frio.

A cada segundo que passava, um turbilhão de pensamentos me invadia. Eu olhava para ele e sentia como se tudo fosse culpa minha. Se eu não tivesse insistido em nós dois, se eu tivesse sido mais cuidadoso, talvez nada disso tivesse acontecido. Gustavo não estaria machucado, não teria passado por aquilo.

Fechei os olhos por um momento, tentando afastar o nó que apertava minha garganta. O que eu poderia fazer para ajudá-lo? Como eu poderia protegê-lo, quando parecia que tudo que eu fazia só piorava as coisas?

Ficamos ali por tanto tempo que perdi a noção de tudo. Lembro-me apenas de abrir os olhos e ver uma figura familiar passando pelo portão. Era a vovó. Ela vinha apressada, com o rosto marcado por uma mistura de preocupação e raiva, como se já soubesse o que havia acontecido.

Ela parou na nossa frente, olhando para nós dois com os olhos arregalados.

– Meu Deus, o que fizeram com vocês? – perguntou, a voz embargada de indignação.

Gustavo levantou o olhar, ainda sem forças, e murmurou:

– Foi meu pai.

A expressão dela mudou na hora. A preocupação deu lugar a algo feroz, uma determinação que parecia implacável.

Ela se virou imediatamente para a casa, indo em direção à porta. Quando percebeu que estava trancada, começou a socá-la com força.

– Abra essa porta agora! – gritou, batendo com os punhos na madeira.

Demorou alguns segundos, mas o padrasto de Gustavo finalmente apareceu, abrindo a porta com um ar de superioridade que me deu náuseas.

– O que a senhora quer aqui? – perguntou ele, com desdém.

– Eu quero todas as coisas do Gustavo e do Léo agora – respondeu ela, a voz firme. – Eles vão embora comigo.

Ele soltou uma risada curta e cínica.

– Eles não vão a lugar nenhum. Ainda vou resolver o que vou fazer com esses dois viados.

– Sai da minha frente – retrucou ela, tentando entrar na casa.

Ele bloqueou a entrada com o corpo, cruzando os braços.

– Eu disse que ninguém vai sair daqui, acha que é uma mulher velha que vai tirar eles daqui?

O clima entre os dois era explosivo, e eu sentia a tensão crescendo a cada segundo. Então, como se puxasse forças de algum lugar muito profundo, a avó de Gustavo ergueu o queixo e começou a falar.

– Sabe, quando eu era pequena, lá no interior, aprendi muita coisa. Meu pai morreu cedo, e eu cuidei dos meus irmãos sozinha. Sempre defendi eles, não importava o que acontecesse. E uma coisa que aprendi na minha terra é que, quando a gente não aguenta com uma pessoa na mão, na força, a gente usa outros métodos.

Ela deu um passo à frente, encurtando a distância entre eles, os olhos brilhando com uma intensidade que fez até o padrasto de Gustavo hesitar por um momento.

– Se você acha que pode continuar fazendo isso com eles, você está muito enganado. E se for preciso, eu volto aqui com um facão na mão. Aí você vai ver o que é uma mulher velha de verdade entrando nessa casa e fazendo o que quiser.

O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. O meu padrasto parecia não acreditar no que acabara de ouvir. Ele abriu a boca para retrucar, mas não conseguiu dizer nada.

– Agora, saia da minha frente – disse ela novamente, sua voz baixa, mas carregada de uma autoridade inquestionável.

Dessa vez, ele não tentou impedi-la. Apenas deu um passo para o lado, ainda com uma expressão de raiva, mas sem coragem de confrontá-la mais. Ela entrou na casa sem olhar para trás, determinada a pegar nossas coisas e nos tirar dali.

Enquanto ela desaparecia dentro da casa, eu olhei para Gustavo. Ele estava imóvel, os olhos baixos, como se toda a energia que ele tinha tivesse se esgotado. Segurei sua mão com mais força, prometendo a mim mesmo que, de alguma forma, eu encontraria um jeito de tirá-lo daquele pesadelo.

Agora, abrindo meus olhos após lembrar daquele dia, sabia que estava em um lugar seguro. Estava na sala da doutora Mônica, que ao menos era sempre a mesma: aconchegante, com paredes em tons claros e móveis de madeira, mas naquele dia, parecia que as paredes estavam mais próximas, sufocantes. O cheiro do café recém-passado misturava-se ao perfume suave que sempre preenchia o ambiente. Eu estava sentado no sofá, as mãos entrelaçadas no colo, olhando para o tapete enquanto ela esperava pacientemente que eu começasse.

– Ainda dói muito lembrar daquele dia – confessei, com a voz rouca. – Se eu pudesse apagar algo da minha mente, seria aquilo.

Ela inclinou a cabeça levemente, seu olhar sempre sereno e atento.

– Por que acha que esse dia te marcou tanto, Léo?

Respirei fundo, tentando encontrar as palavras certas, mas tudo o que consegui foi um suspiro pesado.

– Porque foi o dia que tudo desmoronou, doutora. Foi quando eu percebi que... – engoli seco, desviando o olhar. – Que talvez tudo isso seja culpa minha.

Ela ficou em silêncio por um momento, dando-me espaço, mas sua expressão deixou claro que queria entender mais.

– Culpa sua? Por quê?

Mordi o lábio, hesitando, mas acabei falando:

– Porque, mesmo sendo mais novo, sempre fui eu que cuidei dele. Sempre fui eu que tentei protegê-lo. Só que naquele dia... eu não consegui fazer nada. Eu fiquei parado enquanto ele sofria.

O silêncio na sala foi quebrado apenas pelo som do ponteiro do relógio na parede.

– Léo – disse ela suavemente –, você já percebeu que, em quase tudo o que me conta, sempre assume essa posição de cuidador? Você é o que mais se preocupa, o que mais tenta resolver as coisas. Mesmo agora, enquanto lembra dessa situação, a sua maior angústia é que você não conseguiu proteger o Gustavo.

Assenti, mas não disse nada.

– Por que acha que isso acontece? Por que sente que a responsabilidade é sempre sua?

Fiquei em silêncio, tentando formular uma resposta, mas não consegui.

– Talvez... porque eu amo ele. E porque ele sempre precisou de mim mais do que qualquer pessoa.

A doutora Mônica se inclinou levemente para frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, o olhar mais intenso agora.

– E você já parou para pensar que, talvez, você esteja exigindo demais de si mesmo? Que o fato de você ser tão jovem e ainda assim ter assumido esse papel, por tanto tempo, pode estar pesando muito mais do que você percebe?

Sua pergunta ficou ecoando na minha mente. Eu nunca tinha pensado dessa forma. Para mim, cuidar do Gustavo era natural, inevitável.

– Eu não sei – murmurei. – Só sei que... ele sempre precisou de mim, e eu sempre estive lá.

– Eu me sinto incompetente, doutora – admiti, a voz trêmula. – Parece que, por mais que eu tente, eu não consigo fazer ele melhorar mais rápido. Ele está lá, sofrendo, e eu... eu não consigo tirar ele disso.

A sala parecia mais fria do que o normal, como se o clima entre mim e a doutora Mônica tivesse absorvido o peso das lembranças que eu acabara de narrar. Ela cruzou as pernas, ajustando os óculos, e me encarou com um olhar incisivo. Não havia espaço para sutilezas naquele momento.

– Léo, você me disse que se sente incompetente por não conseguir ajudar o Gustavo a melhorar. Mas a minha pergunta é: por que você acredita que isso é responsabilidade sua?

A pergunta veio como uma faca, cortando fundo. Engoli em seco, desviando o olhar para o tapete.

– Porque... porque eu sempre estive lá por ele. Sempre foi assim.

Ela não recuou.

– Sempre foi assim, ou você decidiu que deveria ser assim?

Voltei a encará-la, surpreso com o tom afiado.

– Como assim?

– O que estou perguntando, Léo, é se essa responsabilidade de cuidar dele foi algo que realmente caiu sobre você, ou se foi algo que você assumiu para si, talvez como uma forma de compensar algo que sente falta em você mesmo.

O incômodo cresceu no meu peito.

– Não é isso – respondi, com mais firmeza do que pretendia. – Ele precisava de mim, doutora. Sempre precisou.

– Precisava de você, ou você precisava se sentir indispensável? – A pergunta dela foi direta, sem rodeios, e eu senti como se ela tivesse acabado de arrancar uma casca de ferida que eu nem sabia que existia.

– Isso não faz sentido – retruquei, a voz trêmula.

– Não faz? – Ela inclinou-se para frente, os olhos fixos nos meus. – Léo, você me contou como sempre foi aquele que carregou o peso por ele. Como sempre tentou protegê-lo, salvar ele, mesmo quando você era só uma criança. E agora, mesmo sendo um adulto, continua acreditando que, se ele não está bem, a culpa é sua. Eu te pergunto de novo: por que isso é sua responsabilidade?

A respiração ficou pesada. Eu sentia as paredes da sala se fecharem ao meu redor.

– Porque ele é tudo o que eu tenho! – explodi, a voz cheia de dor. – Porque se eu não cuidar dele, quem vai? Quem mais vai se importar como eu?

– E por que você acha que precisa ser o salvador dele? – Ela rebateu, sem pestanejar. – Por que acha que o amor que vocês compartilham só é válido se você for quem resolve tudo?

Eu queria gritar, me levantar, sair daquela sala, mas estava preso. Preso às perguntas dela, às minhas próprias emoções.

– Porque... porque eu falhei antes – confessei, quase num sussurro. – Porque, naquele dia, eu não fiz nada.

A doutora Mônica respirou fundo, ajustando o tom, mas sem perder a firmeza.

– Você era um garoto, Léo. Um garoto. Esperar que você enfrentasse um homem adulto, cheio de ódio, é desumano. Você não falhou, Léo. O mundo ao seu redor falhou com vocês dois.

– Mas eu deveria ter feito mais – insisti, a voz embargada.

Ela balançou a cabeça, mantendo o olhar fixo.

– Você fez o que pôde. E agora está tentando fazer mais do que é humanamente possível. Você está se martirizando por algo que não está sob seu controle, porque acredita que, se fizer o suficiente, vai apagar a dor que sente. Mas isso não vai acontecer, Léo. A dor não desaparece só porque você se culpa mais.

Aquelas palavras me atingiram como um soco no estômago. Senti os olhos queimarem, mas segurei o choro.

– Então o que eu faço? – perguntei, a voz quase inaudível.

– Você aprende a aceitar que não pode salvar todo mundo – respondeu ela, com firmeza. – Nem mesmo quem você ama. E que isso não te torna fraco, ou incompetente. Gustavo precisa de você ao lado dele, mas ele também precisa aprender a lutar as próprias batalhas. Você só pode estar lá, não lutar por ele.

O silêncio tomou conta da sala, pesado como chumbo. Ela esperou, me dando espaço para processar tudo o que havia dito.

– Como está o Gustavo agora? – perguntou, suavizando o tom.

– Melhorando... – murmurei. – Ainda preso, mas... o Eduardo insistiu para que eu viesse pra cá hoje. Ele ficou com o Gustavo.

– E por que o Eduardo insistiu?

Pisquei rápido, tentando conter as lágrimas que ameaçavam cair.

– Porque ele sabe que eu não estou bem. Que eu... eu me sinto inútil, como se nada do que eu fizesse fosse suficiente pra ajudar o Gustavo.

A doutora Mônica inclinou a cabeça, estudando minhas palavras.

– Você está vivendo um ciclo, Léo. A culpa que sente te impede de enxergar o que realmente importa: estar presente, mesmo quando as coisas não estão sob seu controle. Culpar-se não vai ajudar Gustavo, e também não vai ajudar você.

As palavras dela pairaram no ar, e, por um instante, parecia que até o tempo tinha parado. Eu sabia que ela estava certa, mas aceitar aquilo era como escalar uma montanha enquanto carregava um peso que não sabia como largar.

E, ainda assim, eu sabia que precisaria tentar.

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Comentários

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Que história, esse capítulo é que realmente acontece na maioria das vezes que alguém tenta ser feliz e não segue os padrões exigidos por um sociedade cruel. Todos acha que podem decidir sua vida, lhe julgar, mas ninguém sente sua dor, ninguém vai ser enterrado no seu lugar. Então seja feliz por vc

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Um capítulo que, infelizmente, provoca um peso enorme de “déjà vu” na maioria dos leitores desta secção.

O beco sem saída provocado pela falta de independência económica da adolescência é brutal.

Não foi o caso neste conto mas alguns refugiam-se numa pretensa bissexualidade como forma de iludir os outros e até o próprio ego. Com custos tão elevados que se tornam os piores de todos.

Quem se habitua a desprezar os próprios sentimentos, muito dificilmente terá o mínimo respeito pelos dos outros ou outras.

A consulta com a doutora Mónica não foi redentora mas sim um começo inevitável.

Um breve aparte:

Relativamente ao tratamento da dependência, existe uma metodologia no Serviço Nacional de Saúde em Portugal proporcionada gratuitamente e que requer o internamento voluntário do paciente nos primeiros 15 a 20 dias de desintoxicação, seguindo-se a administração de químicos de substituição em regime ambulatório em que o paciente se desloca a postos médicos para levar injecções de Metadona diariamente no início e prolongando progressivamente os intervalos de abstinência até à cura total.

Conheço vários casos bem sucedidos no meu meio familiar e social. A presença de um companheiro /a totalmente comprometido no processo é meio caminho andado para a cura. Sem qualquer amparo afectivo são quase todos casos perdidos.

Desconheço a situação no Brasil.

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A Dra Mônica mora no meu coração hahaha. Não é o primeiro personagem que ela salva, né? Hehehe

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Esse conto é tão visceral, tão forte,que sente na alma as sensações e os anseios dos personagens.

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Amar adulto é um trabalho danado imagina jovem?

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Não tenho muito a acrescentar após essa leitura. A culpa é uma das adversárias mais traiçoeiras que podemos encontrar em nossa existência... 😔 Abençoados são aqueles que compreendem que nem tudo está sob sua responsabilidade; assim como existe um limite para tudo, há também uma fronteira em relação ao que é nosso dever e o que não é. Existem fragmentos que a culpa cria, resultando em feridas profundas e dolorosas. Espero que, no cotidiano, no enredo que representa a jornada da vida, sejamos robustos e maduros ao enfrentar a culpa, evitando que sua influência cause a deterioração de nossa alma e gerando dores como as que atormentaram Léo durante tanto tempo! Que consigamos nos libertar disso... ❤️

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Eu já fui o Léo,já me pus no papel de indispensável,que só eu conseguia ajudar alguém com seus demônios,o resultado foi início de depressão,ansiedade e pagamento foi hj em dia a pessoa nem olha na minha cara kkkk

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A maior cilada que se pode cometer é achar que cuidar dos outros e ser indispensável é forma de ser aceito e amado. Léo está aprendendo isso duramente. Aceitar a própria impotência e os próprios limites é indispensável para se tornar um adulto autônomo, capaz de amar e ser amado de forma livre, destituída de neuroses.

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