Passamos dois dias em Cerro Sombrero por causa das costas de Beto. Apesar de se fazer de forte, era evidente o quanto ele sofria com as dores. Entre compressas e remédios, ele foi melhorando, e finalmente seguimos viagem. Em menos de uma hora, alcançamos a Fronteira de São Sebastião, onde deixamos o Chile e entramos na Argentina. A famosa Terra do Fogo é um espetáculo. A paisagem parece ter sido pintada à mão, de tão bela e única. Enquanto contemplava o cenário, uma saudade silenciosa me invadia. Queria que meus pais estivessem ali. Papai, com suas músicas de gosto peculiar, mamãe e Benê disputando quem faria o almoço. Pequenos detalhes de uma rotina que agora sinto tanta falta.
Mesmo debilitado, Beto tratou de resolver tudo na fronteira, e o Piccolo, mais uma vez roubou a cena, chamando a atenção dos oficiais.
— É isso, senhores! — disse Benê, claramente emocionado. — Em três horas chegaremos ao nosso objetivo final. — Ele então apontou a câmera para mim. — Querido Joaquim, conta para gente: o que está passando pela sua cabeça agora?
— Estou com fome — respondi brincando, arrancando risadas. — Falando sério, acho que é um sonho do pai, né? Onde quer que ele esteja, tenho certeza de que está feliz com essa conquista. Além disso, fizemos bons amigos nessa jornada: o Beto, o Piccolo, a Tereza, o Salamão...
— Não é sobre a chegada, é sobre o caminho que percorremos — Benê respondeu, imitando mal o nosso pai.
Continuamos na estrada. Cada quilômetro era um passo mais perto do nosso destino final. Benê, sempre cheio de curiosidades, começou a falar sobre Ushuaia, explicando que é chamada de "Isla de Fuego" porque é composta por várias microilhas, sendo a principal a famosa Terra do Fogo.
Para entender como Ushuaia ganhou esse nome, ele contou, é preciso voltar ao tempo dos Yámanas, os primeiros habitantes da região. Para esses índios, o fogo tinha uma importância vital. Além de protegê-los do frio extremo da Patagônia, também era usado para comunicação com outras tribos.
O nome "Terra do Fogo" só surgiu com a chegada de Fernão de Magalhães, o navegador português que explorava a região. Ao avistar a área, ele notou uma quantidade impressionante de fumaça, tanto em terra quanto nas embarcações dos Yámanas. Com o nevoeiro denso, o fogo parecia flutuar sobre o mar. Foi assim que ele batizou o local.
A ansiedade fazia meu coração bater descompassado. Depois de horas na estrada, finalmente avistamos o Portal de Ushuaia, um marco que anunciava a chegada ao Fim do Mundo. O portal, imponente e repleto de detalhes, parecia resumir toda a grandiosidade da viagem. Estacionamos o Leopoldo e descemos para tirar fotos, muitas fotos. A mais especial? Uma com Benê, Beto, Piccolo e eu, clicada por um desconhecido que gentilmente aceitou nos fotografar. O resultado ficou incrível, mas a cereja do bolo foi a foto capturada pelo drone, todos reunidos ao lado do nosso querido Leopoldo, que, sem dúvida, foi mais que um veículo: foi um companheiro nessa jornada.
Enquanto eu posava para as fotos, flashes de memória passaram pela minha mente. Lembrei do dia em que decidi embarcar nessa viagem, do planejamento que tomou mais de um ano, e do turbilhão de sentimentos que experimentei nesses dois meses na estrada. Chorei, ri, reclamei. Conheci pessoas incríveis e, claro, o Piccolo, esse gato peculiar que virou parte da família. Não segurei as lágrimas; eram de gratidão, de realização.
—Você conseguiu, guri! — Beto exclamou ao me abraçar.
—Nós conseguimos. — disse entre lágrimas e sorrisos. Não resisti e o beijei.
— Que fofo, pessoal. — ironizou Benê, apontando a câmera para si. — O casal mais fofo do mundo.
Para celebrar, decidimos abrir uma caixa de perguntas para nossos seguidores. Benê queria gravar o vídeo de respostas com um cenário especial ao final do dia, mas a vida de um viajante é feita de prioridades, e a primeira parada foi no mercado para reabastecer o estoque.
Depois das compras, sentamos para planejar os próximos passos. Beto sugeriu que ficássemos pelo menos 15 dias em Ushuaia para explorar o máximo possível. Concordei de imediato. No diário do meu pai, havia várias anotações sobre os pontos imperdíveis da Terra do Fogo, e eu queria viver cada um deles.
Nosso camping tinha churrasqueiras, e nada melhor para comemorar o primeiro dia do que um bom churrasco. Montamos uma mesa do lado de fora do Leopoldo, mesmo com o frio. Piccolo nos acompanhava, preso à guia, enquanto brincava na grama úmida. Fizemos uma fogueira, compramos cervejas artesanais argentinas e curtimos a noite. Beto, como sempre, comandou o churrasco com maestria. A carne estava suculenta, e os acompanhamentos feitos por Benê — arroz, farofa e vinagrete — completaram o banquete. Era impossível não se sentir nas nuvens.
De barriga cheia, começamos a conversar sobre o futuro. Benê revelou o desejo de fazer faculdade de gastronomia. Eu compartilhei minha vontade de voltar à fotografia e, quem sabe, organizar uma exposição com as imagens capturadas durante a viagem. Beto, por sua vez, foi direto e tocante:
— Quero ser feliz. A felicidade é minha prioridade.
Ele iniciou outra frase, mas parou no meio. Apenas deu um gole em sua cerveja. O silêncio se instalou, quebrado apenas pelo estalar da lenha na fogueira.
— Pode falar, bonitão! — provocou Benê, visivelmente animado — ou um pouco alterado pelas cervejas.
Beto respirou fundo e deixou escapar uma confissão que fez meu coração apertar:
— Eu estou feliz. Durante muitos anos, eu apenas sobrevivi. Conhecer vocês foi como ganhar na loteria da vida. Não sei o que o futuro me reserva, mas sei que vou aproveitar esses 15 dias ao máximo. Obrigado, guris. Vocês são top demais. —enxugando às lágrimas.
Benê, emocionado, tentou levantar para abraçá-lo, mas acabou tropeçando no Piccolo, que soltou um miado indignado e começou a atacá-lo.
— Para! Ei, socorro! — Benê gritava, atrapalhado, enquanto o gato dava pequenos tapas com as patas.
Ignorei o drama do meu irmão e me aproximei de Beto. Sentei em seu colo, sentindo o calor do seu corpo aquecer o meu, ignorando o frio patagônico.
— Você também foi um presente que essa viagem nos deu — sussurrei antes de beijá-lo. — Obrigado por tanto.
— SOCORRO! — Benê ainda berrava, mas naquele momento, o mundo parecia se resumir ao sabor doce do beijo e à sensação de que, finalmente, eu estava exatamente onde deveria estar.
Minha cabeça latejava como se um tambor estivesse sendo tocado dentro dela. A noite anterior havia sido uma mistura de cerveja, risadas e um pouco mais de cerveja. Quando ouvi a voz do Benê ecoando pela cabana, meu primeiro pensamento foi ignorá-lo, mas ele estava eufórico demais para isso.
— Joaquim! Acorda, mano! Caiu dinheiro na conta! E é em dólar! — ele praticamente gritou, sacudindo meu braço.
— É em dólar? — resmunguei, ainda confuso e meio zonzo.
— Sim, mano! A gente tem que comemorar. Podemos fazer todos os passeios que quisermos. Hoje a janta é por minha conta. — Ele fez uma pausa, sorrindo com a animação de um moleque. — Quer dizer... nossa conta, irmãozinho.
— Bah, guris, qual é o motivo pra tanta confusão? — A voz rouca do Beto surgiu. Ele estava sentado na cama, com os cabelos tão bagunçados que parecia ter lutado com um urso na noite passada.
— Recebemos o primeiro pagamento do YouTube. — expliquei, tentando soar casual enquanto minha cabeça ainda girava. — Vamos dividir o dinheiro por três.
— Por que por três? — ele perguntou, confuso.
— Bah, piá, você faz parte da equipe e aparece nos vídeos. — respondeu Benê, como se fosse óbvio. — Sem discussões. Não aceito 'não' como resposta. Inclusive, já criei um documento do 'Leopoldo Produções'. É o nome da produtora responsável pelo canal.
— Quando você fez isso? — perguntei, tentando processar tudo.
— Acha que eu sou só um rostinho bonito? Me respeita. — Benê ergueu o queixo com um ar orgulhoso. — Só preciso dar um jeito de imprimir. A partir de agora, somos sócios. Precisamos comemorar.
E, claro, não houve tempo para mais perguntas. Benê era uma força da natureza quando estava motivado. Ele explicou, sem parar para respirar, que já tinha falado com nosso primo advogado, que estava cuidando de toda a papelada para legalizar a produtora.
— Todo canal no YouTube precisa de uma produtora, mano. E os nossos vídeos são bons pra caramba. — Ele parecia tão seguro de si que, pela primeira vez, acreditei completamente nisso.
Olhei para o Beto, que, embora hesitante, pegou o tablet para ler o contrato que Benê havia preparado. Ele levantou uma sobrancelha, fez anotações e fez questão de sugerir alterações.
— O agroboy entende do assunto. — comentou Benê, enquanto analisava as mudanças feitas por Beto.
— Fiz algo mais vantajoso para todos. Tenho certeza de que a produtora de vocês vai ser...
— Nossa produtora, parceiro! — exclamei, dando um tapa amigável em seu ombro.
— Tá bom. A nossa produtora vai ser um sucesso, mas cada um tem que fazer sua parte direitinho e...
— Nem vem, cunhado! Hoje é dia de diversão. Inclusive, precisamos comprar equipamentos novos pra melhorar o canal. E quero marcar uma visita a um glaciar. — Benê já estava pensando no próximo passo.
— Acho que não tenho roupa adequada pra isso. — Beto olhou para o próprio casaco surrado, visivelmente envergonhado.
— Relaxa, a gente passa numa loja de roupas pra inverno. Sem aprontar, viu, Joaquim? — Benê brincou, mas imediatamente percebeu o que havia dito.
— Isso é uma piada interna? — perguntou Beto, desconfiado.
— Sim, sim. Agora, preciso imprimir isso. Vamos logo. Ainda quero jantar! — desconversou o meu irmão, antes que eu tivesse tempo de lançar um olhar fulminante na sua direção. — Temos coisas para fazer. Vamos!
Benê, o senhor das listas, estava no auge de sua glória organizacional. Ele já havia preparado um arsenal completo de roupas para enfrentarmos o frio extremo da Terra do Fogo. Tivemos que comprar botas de trekking, cachecóis, calças impermeáveis, camisas segunda pele, fleeces, jaquetas impermeáveis, luvas, óculos de sol e toucas. Algumas coisas já tínhamos, mas o Beto precisou começar do zero.
Confesso que, por mais que eu estivesse adorando as aventuras, o pensamento de como o Beto planejava sobreviver aqui apenas com uma barraca e uma bicicleta me causava arrepios. Ainda bem que o encontramos a tempo.
— Cunhado, — Benê chamou a atenção de Beto, que estava experimentando algumas botas. — me diz uma coisa. Como você achou que ia sobreviver no Ushuaia com um gato e uma barraca?
— Sei lá, piá. Eu só queria sair de casa. O meu pai não era um cara muito bom…
— Eu sei. Ouvi a tua história. — revelou Benê, que deixou Beto desconcertado. — O quê?! — com uma voz afetada. — O Leopoldo tem uma acústica muito boa. Sou inocente.
Ah, e uma coisa que preciso mencionar: o Beto fica espetacular com roupas de inverno. O casaco preto parecia ter sido feito sob medida para ele, realçando seus traços e o tornando ainda mais bonito. E quando ele colocava a touca... cara, era a coisa mais linda do mundo.
Naquela semana, vivemos momentos incríveis. Fizemos uma trilha de moto na neve, praticamos skibunda, visitamos um museu de motos antigas e até degustamos gin artesanal, fabricado na própria Terra do Fogo. Cada experiência rendia vídeos que estavam bombando na internet.
Além disso, iniciamos uma série de conteúdos mais pessoais, mostrando lugares que mais gostamos, curiosidades sobre o motorhome e até fatos sobre nós mesmos. Os internautas adoraram ver nosso lado humano, e isso só aumentou a interação com o canal.
Por um breve momento, me senti invencível ao lado dos meus amigos. As risadas, as brincadeiras e a descontração fizeram com que eu me esquecesse das preocupações do mundo lá fora. Tudo parecia perfeito.
Até que uma batida na porta do motorhome quebrou o encanto.
Fui atender, imaginando que pudesse ser alguém querendo informações ou até mesmo um fã curioso. Mas assim que abri, dei de cara com um homem sério, com uma expressão que deixava claro que ele não estava ali para brincar.
— Oi? — perguntei, confuso, enquanto ele me encarava.
— Olá. — Sua voz era grave, cortante. — Você que desviou meu filho? — antes que eu pudesse responder, ele entrou no motorhome sem cerimônias.
— Roberto? — chamou, olhando ao redor como se procurasse algo ou alguém.
Roberto apareceu apressado, o rosto pálido e os olhos arregalados.
— Pai? — Ele parou, assustado. — O que você está fazendo aqui?
A tensão no ar era quase palpável. Não sabia se estava pronto para o que viria a seguir, mas algo me dizia que aquele encontro mudaria tudo.