Nossas manhãs passaram a começar mais cedo por causa das corridas matinais. O efeito da endorfina logo cedo é gostoso demais e estava me ajudando a manter a cabeça mais leve. Continuávamos fazendo o mesmo percurso de antes e, como já era de lei, nós dávamos pelo menos um mergulho antes de voltar para casa.
Eu praticamente só estava indo para a clínica nos dias que precisava atender, então muitas questões administrativas eram resolvidas por ligações. E aí é onde começa um grande problema causado por mim: horários!
A minha ausência gerava uma consequência que eu mal podia imaginar. Eu nunca sabia quando um pequeno contratempo, uma urgência, ou até mesmo um grande problemão, poderia surgir, e então eu me via em um ciclo, obrigada a atender, a resolver, a apagar incêndios. E, por mais que eu tentasse disfarçar, havia uma dor imensa em saber que tudo aquilo estava acontecendo. Eu não estava satisfeita com esse jeito improvisado de seguir, mas, na verdade, o que mais me machucava era ver a clínica, o meu sonho, sendo tratada com o descaso que eu não conseguia evitar. Ela sempre foi minha paixão, algo pelo qual lutei incansavelmente para construir. Mas, ao vê-la ser negligenciada dessa forma POR MIM, era um verdadeiro pesadelo. Tentava, a todo custo, não pensar nisso, mas, no fundo, sabia que estava me perdendo em meio a essa "rotina sufocante". Eu tinha ativado o modo sobrevivência sem sequer perceber o quanto estava me deixando para trás!
Em um desses dias atribulados, surgiu um grande problema, novamente com os meus queridos colegas de profissão (brincadeira, eu os amo de verdade, rs!). Fiquei até um pouco mais tarde resolvendo e pedi um Uber para buscar Júlia, Milena e Kaique no colégio e mandei uma mensagem para minha gatinha dizendo que ia demorar um pouco mais por conta de uma reunião. Saí do escritório com a cabeça fervilhando, porém sabia que, ao chegar em casa, teria meus três amores me enchendo de carinho, me contando o que fizeram durante o dia, um cafezinho fresco e depois assistindo a uma série legal.
Engano meu. Encontrei Juh, Mih e Kaká no deck da piscina do jeitinho que chegam do colégio, uniformizados e tudo. Meu filho estava com um pé do seu tênis na mão e foi o primeiro a me ver. Não entendi o porquê, mas ele comemorou muito e veio correndo até mim, se jogando nos meus braços. Eu o carreguei e seu sorriso me contagiou. Dei um longo cheiro no pescoço dele e vários beijinhos.
— Eu estou suado, mãe — ele me disse rindo, pois sentia cócegas.
— Está mesmo, mas não ligo — falei, ao colocá-lo no chão.
Mih estava deitada sobre o colo de Juh e eu dei um beijinho nela, que empolgada me mostrou novas assinaturas no gesso.
— Oh, mãe, um menino colocou o número dele, olha — dedurou Kaique.
— Foi mesmo? Amanhã você diz que sou eu quem vou ligar para bater um papo com ele — falei, e eles riram.
— Eu vou passar um piloto por cima — disse Milena decidida, só não sei se por falta de interesse no moleque ou com medo de que eu realmente ligasse.
Suspeito que pela primeira opção, mas nunca se sabe.
Finalmente, dei um beijo em minha muié e fui entender o que estava acontecendo.
— Perdeu as chaves, amor? — perguntei.
— Não, eu até cheguei a abrir a porta, olha... — ela me mostrou.
Mih e Kaique começaram a rir.
— Por que estão aqui fora desabrigados? — perguntei, ainda sem entender.
— Amor, não é para rir! — Juh me alertou, e só isso já me deu vontade de rir. — Tem uma barata imensa na nem na porta.
— Aaaaah, não acredito nisso — disse, desacreditada, com o riso tomando conta de mim.
— Mas que bom que você chegou e vai resolver isso — ela falou, me empurrando, tentando evitar que eu zoasse a situação.
— E vocês dois? — perguntei para Kaká e Mih.
— Eu ia, eles não deixaram — minha filha disse, orgulhosa.
— Vai que a poderosa barata quebra seu outro braço? Melhor não mesmo! - Brinquei.
— Mãe, eu fui, mas aí ela voou em cima de mim e eu saí correndo — explicou Kaique, melancolicamente, me fazendo voltar a rir.
— Três medrosos! — zoei.
— A gente tentou fazer o Brad expulsa-la, porém ele não entendeu — continuou Kaique.
Sabe quando você tá rindo e a piada não para de melhorar e fica impossível controlar? Era a minha situação naquele momento, estava me divertindo muito.
— Eu prometi para a mamãe de vocês que seeeempre ia salva-la de todos os bichinhos e é isso que vou fazer agora — falei isso, abraçando minha gatinha pela cintura e depositando inúmeros beijos nela.
Meu dia tinha sido insuportável e estressante, mas naquele momento eu nem lembrava de nada. O carinho da minha família me reconforta, aquele meu pensamento inicial sobre o que eu encontraria quando chegasse em casa não estava totalmente equivocado.
Peguei o tênis de Kaique, bati na barata que me atacou ferozmente, com suas asas voando em minha direção. Ela foi nocauteada, mas insisti em finalizar com um golpe fatal para que não oferecesse risco à minha família.
— Venci a grande batalha! — brinquei com eles, que entraram festejando.
Brad estava deitado no sofá, bem tranquilo, observando a minha vitória contra a terrível barata voadora.
As crianças foram tomar banho e Juh preferiu adiantar o café, principalmente porque eles fariam atividade depois.
— Nossa, eu achei que hoje chegaria e teria um cafezinho me esperando, sabe? — falei, abraçando-a por trás.
— Para compensar... Vou fazer um bolo de limão, vi uma receita diferente hoje e vou testar para você — ela disse sorrindo e virou o rosto, me dando um beijo.
— Huuuuuum, não vejo a hora de experimentar — falei e voltei a beija-la.
Puxei as imagens das câmeras de seguranças e ficamos rindo das reações deles perante o grande monstro que adentrou a nossa casa. Quando Júlia abriu a porta e via a barata, Kaique jogando um sapato e saindo correndo quando a bichinha voou, Milena dizendo que ia resolver (morrendo de rir do irmão) e eles dois a impedindo.
Obviamente viraram figurinhas, rs!
Eu fui limpar a casa e, infelizmente, me perdi nos labirintos dos meus pensamentos novamente. As crianças desceram, se alimentaram e foram fazer seus exercícios. Juh estava os auxiliando e resolvi tomar banho e espera-la para tomarmos café juntas... Contudo... Não consegui!
Minha cabeça começou a queimar de dor, entrei em devaneio e não conseguia controlar o início e a conclusão de uma ideia sequer.
Olhei para Juh, que estava na mesa concentrada com as crianças, não quis atrapalhar. Fui para o quarto, troquei de roupa, coloquei um tênis. Resolvi correr mais uma vez.
— Amor, vou correr aqui no condomínio com o Brad, daqui a pouco volto. Não vou demorar, prometo! — anunciei, descendo as escadas.
— Melhor comprar uma esteira... De novo, amor? — ela questionou.
— Dez minutos, juro! Te amo! — gritei, já do lado de fora.
Coloquei o celular para despertar em dez minutos e já iniciei a corrida, colocando o máximo de velocidade que eu pudesse. Eu não ia ter muito tempo e, para arrancar aquela sensação ruim, isso significava que eu tinha que colocar para fora, nem que fosse na força do ódio. Com cinco minutos, eu já estava esgotada, me joguei na grama da casa de Lorenzo e fiquei deitada lá por um tempo. Brad deitou sobre minha barriga e fiz carinho nele por algum tempo. Eu já estava próxima de casa e resolvi não dar mais uma volta.
— Falei que não demorava — disse ofegante ao entrar.
Júlia não me respondeu, só me encarou e voltou a ajudar nossos filhos. Resolvi apenas subir e tomar outro banho frio, me senti muito melhor e me juntei à mesa.
Nenhuma situação nunca está tão ruim que não possa piorar.
A televisão estava ligada e, em certo momento, anunciou um filme Guerra ao Terror. Kaique se distraiu observando, parecia interessado.
— Mãe, a senhora já assistiu? — ele me perguntou.
— Já, com sua mamãe — confirmei.
Júlia olhou para a tela, olhou para mim. A expressão dela não era nada boa.
— Comigo? — questionou, em um tom sério.
— Sim — confirmei, agora já sem tanta certeza.
Ela respirou fundo e continuou lendo uma questão do livro para os dois.
~ Aí eu me lasquei, né, amigos?! PQP!
Busquei na memória com quem eu assisti, lembro que por anos foi um filme bem comentado, ganhou prêmios, mas só assisti depois de muito tempo e gostei. Para mim, tinha sido com ela, porém, pela reação dela, não foi.
A mente estava um turbilhão, já sobrecarregada, e agora, qualquer novo estímulo se transformava em um peso. A simples dúvida sobre o filme com Júlia se amplificava, criando um caos interior. Cada memória parecia distorcida, e a sensação de descontrole só aumentava. Eu não conseguia separar a realidade da insegurança, e aquela pequena situação se tornava uma crise mental. A cabeça quente, já cheia de confusão, não conseguia processar nada com clareza. A dúvida gerava mais dúvida, e o cansaço emocional e profissional só fazia uma solução parecer mais distante, mais fora de alcance. Eu estava perdida, sem saber como me encontrar de volta.
Kaique e Milena finalmente terminaram de estudar e foram brincar com Brad. Juh estava extremamente brava e não fez questão de disfarçar. Ela, que é tão organizada e delicada, juntou os materiais dela e dos nossos filhos com brutalidade da mesa e jogou de qualquer jeito nos recipientes.
— Amor... — Eu a chamei, tocando em seu braço.
Juh puxou o braço para longe de mim e disse, com a voz embargada em um tom baixo, apontando o dedo para mim: — A gente vai conversar, só não agora! — e saiu.
Joguei a cabeça para trás e fiquei assim por um tempo, tentando clarear as lembranças. Porém, nada vinha à mente. Para mim, só fazia sentido ter assistido com ela...
Somente quando Mih e Kaká foram dormir que fomos conversar.
— Com quem você assistiu? Foi com outra pessoa? — Júlia me questionava, claramente abalada.
— Amor... Calma... Olha, eu já tentei lembrar aqui e posso ter me confundido, assistido sozinha... Mas só faz sentido ter sido com você, eu não me recordo direito... Achei que tínhamos assistido juntas... — Tentei explicar.
— Lore, eu nem gosto desse tipo de filme — Juh declarou, e realmente, ela não curtia.
— Desculpa, tá? — Falei, tocando nos ombros dela, e novamente Juh se desvencilhou de mim.
— O que tá machucado não é o fato de você ter assistido com outra, e sim ter me confundido... Caralho... — Ela não conseguiu controlar e deixou as lágrimas escaparem.
— Amor... — Eu tentei abraçá-la, mas ela me impediu.
— Vou tomar um ar, me deixa sozinha — Juh falou e se dirigiu à varanda do nosso quarto.
Me joguei contra a cama e fiquei aguardando ela retornar.
Às vezes, quando estamos em uma situação merda, parece que nada vai melhorar. A dor de uma situação já difícil se agrava com outras coisas que acontecem ao mesmo tempo, como se o mundo conspirasse para nos desmoronar. O peso se torna insuportável, e o que parecia ser o limite passa a ser apenas mais um obstáculo a ser superado. É quando a vida parece desabar de todas as formas possíveis, e o caos se instala em todos os cantos.
Mas o que realmente me dilacerou naquele momento não foram os problemas em si, mas o olhar da minha esposa. A tristeza e a decepção em seus olhos eram como facas afiadas cortando cada pedaço do meu ser. Eu tinha magoado ela de verdade, e isso doeu mais do que qualquer outra coisa. O simples fato de vê-la assim, perdida e genuinamente chateada por minha causa, me fez perceber que nada mais importava. Eu preferiria potencializar a crise de horas atrás em vinte vezes mais do que deixá-la daquele jeito, ferida. Isso foi o que mais me machucou, e até agora, a memória desse olhar ainda pesa no meu coração.
Júlia veio para a cama, e minhas tentativas de comunicação foram falhas. Ela não queria papo e, também por não saber o que dizer para convencê-la a conversar, resolvi dar espaço. Juh abraçou o travesseiro e deitou-se na outra ponta, virada para o lado oposto ao meu.
Consegui ficar assim por alguns minutos... Pensei, então, em recorrer a uma cláusula contratual da nossa relação. Ela existe antes mesmo do nosso casamento, o que só aumentava a força de sua validação.
O "não" eu já tinha, no máximo, eu só estaria correndo atrás de mais um para a coleção.
Me aproximei dela e a abracei.
— Tá acordada ainda, amor? — Perguntei, mesmo sabendo que ela estava.
— Hunrum — Me respondeu brevemente.
Só em me responder e não se esquivar de mim já era um avanço.
— Existe uma promessa que nós cultivamos desde a nossa reconciliação da nossa pior briga, que diz que nunca, em hipótese alguma, jamais, sob nenhuma circunstância, podemos passar uma noite brigados — Disse-lhe, e acabei com o vão que existia entre nós.
— A sua memória tá boa agora, não é?! — Ela ironizou.
— Gatinha, me desculpa de verdade! Eu sei que te magoei e nunca na minha vida eu faria isso de propósito. Eu errei por me confundir, dou minha palavra que, na minha cabeça, assisti com você... Não vem ao caso, chega de tentar me justificar, só quero seu perdão — Falei.
Juh virou para mim, olhou dentro dos meus olhos e disse:
— Era só você ter dito que já tinha assistido, eu nem ia me importar...
— Me desculpa? — Pedi novamente, e ela me deu um selinho em resposta.
Virou novamente para o outro lado e abraçou o meu braço. Assim adormeceu. E eu... Bom, fiquei feliz por conseguir apagar aquele incêndio, mas não consegui pegar no sono. Fiquei horas naquela mesma posição, fingindo dormir para tentar enganar o cérebro agitado, mas de nada valia.
Bem devagar, levantei com cuidado para não acordá-la. Lembrei que não havia me alimentado, fui até a geladeira, peguei uma fatia de bolo, um copo de suco e retornei para o quarto. Sentei na minha poltrona, coloquei o fone de ouvido, dei play em uma playlist e puxei o notebook para o colo. Ou eu apagava aquele outro incêndio, ou ele tomaria conta de mim.
Deletei tudo da planilha e abri duas novas guias: uma para minha rotina e outra para o planejamento do meu restante de ano. De tudo que tinha no projeto anterior, deixei apenas a ampliação da clínica. Era o que menos me desanimava, talvez por ser uma vontade antiga e também pela sensação de estar em falta com um dos meus maiores sonhos.
Detalhei cada um dos meus próximos passos e, quando terminei, foi como se eu estivesse retirando um peso das costas e voltasse a respirar de forma correta novamente. Quando ia partindo para a aba da minha rotina, começou a tocar a música One, do Metallica.
"Até o algoritmo está de graça com a minha cara", pensei, e pulei para a próxima.
A música me lembrou o maldito filme, mas também me recordou que minha irmã gosta muito dessa. Eu ia mandar um print para ela, porém estava muito tarde. Resolvi deixar para o outro dia.
Voltei a digitar e me assustei ao sentir uma mão descer no meu pescoço.
— O que tá fazendo? — Perguntou Juh, tirando o notebook do meu colo e sentando. Ao mesmo tempo em que tinha uma sonolência na voz, também senti um pouco de preocupação.
— Não consegui dormir e fui resolver aquele problema do planejamento, consegui — Tentei pôr uma animação no meu tom, mas não ficou nada convincente.
Júlia tocou meu rosto fazendo carinho e me fitando bem próxima, sem desviar o olhar, falou:
— Estou preocupada com você, amor... Você não está bem, isso tá escancarado...
Permaneci escutando, eu concordava.
— Você se mata de correr, não dorme direito, se estressa no trabalho... Não tá certo isso, eu te conheço e você não é assim... Tem alguma coisa errada e você está... Não sei... — Ela parecia não encontrar as palavras certas para continuar.
— Descontando, extravasando em outras coisas — Completei, para ajudá-la.
— Isso... Você precisa de ajuda... — Ela concluiu perfeitamente.
— É, eu sei... — Falei e mostrei a minha nova rotina, apontando para onde estava escrito que eu deveria fazer um acompanhamento psicológico.
Aproveitei e contei também tudo o que aconteceu mais cedo e como me senti. Não queria preocupá-la, mas deixá-la informada sobre a minha atual situação. Eu demorei para perceber o caminho que eu estava seguindo, e digo "seguindo" porque eu não estava mais no controle. É importante ter alguém a par de tudo, ainda mais quando essa pessoa divide o volante da vida contigo.
Júlia olhou novamente para mim e me beijou. Foi um beijo singelo e cheio de força. Se aquele beijo pudesse falar, ele diria: "Eu estou aqui para você!" E eu sei disso porque foi o que ele me transmitiu, sem precisar dizer uma palavra.
— Seu bolo tá muito bom — Elogiei e passei a cobertura na boca dela.
— Fiz com muito amor para você, se você não comesse eu ia ficar triste — Juh disse e me deu um selinho, sujando a minha boca de volta.
— Pois então vamos pegar a forma inteira logo — Disse-lhe, e devolvi o selinho.
Ficamos um tempão abraçadinhas, trocando uns beijos mais molhados, e então ela me chamou para dormir.
— Vamos, porque se você me der outro beijo desse, dormir será a última coisa que faremos — Brinquei, e ela riu me puxando para a cama.
No outro dia, ao voltar do colégio, passamos na casa de Loren para vê-la e ficamos conversando na sala. Kaique lembrou que o bendito filme ia passar e pediu para ligar a televisão.
Para tentar desviar o assunto, comentei da música, e minha irmã associou ao filme. Kaká continuava insistindo no assunto e Juh nada dizia, só olhava para mim. O homenzinho que trabalha na minha cabeça dizia que não era um olhar de raiva, mas de ironia. Era como se ela se divertisse com o meu desconforto.
— Esse filme é chatão, filho — Falei.
— Ué, quando a gente assistiu lá na ilha, você gostou — Disse a minha irmã.
🤡
— Aaaah, foi mesmo, quando a gente assistiu — Disse, encarando Juh, que parecia não acreditar no que ouviu.
Loren nem percebeu o que fez, mas bendita seja a alma da minha irmã para todo sempre. Amém! Aleluia! Glória a Deus!