Ficamos ali na sala de espera do hospital, o silêncio pesado preenchendo o espaço entre nós. Meus pensamentos estavam divididos: parte de mim queria que Gustavo reencontrasse Filipe, confirmasse se ele era realmente o menino que o salvou naquele momento mais sombrio de sua vida. Se fosse ele, aquele homem merecia toda a minha gratidão. Afinal, se não fosse Filipe, talvez Gustavo não estivesse aqui comigo.
A outra parte de mim, no entanto, era tomada por uma curiosidade quase infantil. Eu queria saber se a criança era um menino ou uma menina. E convenhamos, eu tinha esse direito, não tinha? Fomos nós que trouxemos a vizinha ao hospital.
Levantei-me e caminhei até a recepcionista, pedindo que avisasse ao doutor Filipe que ainda estávamos ali, esperando notícias. No mínimo, ele acharia isso estranho, considerando que, na primeira vez que o vi, fui incrivelmente grosseiro com ele naquele elevador.
Os minutos passaram, cada um deles arrastado, tornando-se mais longos do que deveriam ser. Gustavo estava inquieto ao meu lado, os pés balançando levemente contra o piso branco do hospital, os olhos perdidos em pensamentos que eu não conseguia alcançar. Finalmente, a recepcionista chamou nossos nomes e nos indicou uma sala.
Caminhei pelos corredores estreitos, sentindo o cheiro forte de antisséptico que impregnava o ar. Enquanto andávamos, minha mente se perdeu em devaneios. Como deveria ser a sensação de ser pai? De segurar uma vida tão frágil nos braços pela primeira vez? De ensinar, proteger, dar amor?
Pensei no futuro, em mim e Gustavo. Queria tanto que tivéssemos algo diferente do que tivemos na nossa infância. Que tivéssemos uma família construída sobre amor genuíno, sem medo, sem dor.
Mas assim que cruzamos a porta, todos os meus pensamentos se dissiparam.
Filipe estava sentado ali, as mãos cobrindo parte do rosto, os olhos inchados e vermelhos, o peito subindo e descendo em soluços abafados. Ele chorava de uma forma que parecia doer até em mim. O ar ficou pesado, sufocante.
Gustavo e eu ficamos parados na entrada, sem saber o que dizer ou fazer. Nenhum de nós esperava ver essa cena. Filipe sequer notou nossa presença até que, com a voz embargada, ele murmurou:
— É uma menina… — Ele limpou as lágrimas com as costas da mão, mas novas logo tomaram seu lugar. — O nome dela vai ser Laís… O mesmo nome da mãe que acabou de falecer.
Meu estômago revirou.
Olhei para Gustavo, buscando alguma reação nele. Ele engoliu em seco, seu maxilar travado, as mãos fechadas em punhos. Seus olhos estavam marejados, e eu soube que ele estava segurando um turbilhão de emoções dentro de si.
E então, sem hesitar, ele se aproximou de Filipe e sentou-se ao lado dele.
— Uma vez… — começou Gustavo, sua voz baixa, carregada de sentimento. — Quando eu era apenas um garoto prestes a morrer, Deus colocou um anjo no meu caminho.
Filipe ergueu o olhar, confuso, encarando Gustavo.
— Esse anjo me disse que era só um dia. Só mais um. E que amanhã tentaríamos de novo.
Os lábios de Filipe se entreabriram em um sobressalto.
— Não vou te dizer que não vai doer — continuou Gustavo, os olhos brilhando com lágrimas que ele não conseguiu conter. — Mas amanhã… Amanhã a gente luta contra essa dor de novo.
O ar na sala ficou denso. Filipe encarava Gustavo como se estivesse vendo um fantasma, como se uma parte do passado que ele nem sabia que precisava reencontrar estivesse ali, bem diante dele.
— É você… — Filipe murmurou, a voz quebrando no meio da frase. — Meu Deus… É você.
As lágrimas voltaram a escorrer pelo rosto dele, e, sem pensar duas vezes, Gustavo o abraçou. Filipe desabou em seus braços, soluçando como se segurasse aquela dor há muito tempo.
— O irmão que a vida te deu — disse Gustavo, a voz embargada, enquanto apertava Filipe em um abraço forte, permitindo-se, enfim, chorar junto.
E eu fiquei ali, parado, testemunhando aquele momento.
Sabendo que, de alguma forma, o destino havia se fechado em um círculo perfeito.
O abraço entre Gustavo e Filipe se estendeu por longos segundos, tão carregado de sentimentos que eu quase sentia o peso da história deles no ar. Era estranho ver meu namorado ali, tão vulnerável, e ao mesmo tempo tão forte, segurando um homem que, até minutos atrás, era apenas um desconhecido para mim.
Quando eles finalmente se afastaram, Filipe passou as mãos no rosto, tentando controlar o choro. Ele parecia perdido, como se sua mente estivesse em dois tempos diferentes ao mesmo tempo: o passado em que encontrou Gustavo e o presente, em que acabara de perder a esposa e ganhar uma filha.
Ele respirou fundo, tentando se recompor, e então olhou diretamente para Gustavo, estudando seu rosto com um misto de choque e nostalgia.
— Eu procurei por você, sabia? — Filipe disse, sua voz ainda trêmula. — Durante um tempo, tentei te encontrar, mas nunca soube seu nome completo e nem por onde começar. E agora… Você está aqui.
Gustavo sorriu, mas era um sorriso triste.
— Eu também nunca esqueci de você — ele admitiu. — Só não achava que um dia fosse te encontrar de novo.
Filipe assentiu, parecendo processar tudo aquilo. Depois, passou a mão pelos cabelos e soltou um suspiro cansado.
— Desculpa — ele disse, olhando para mim pela primeira vez. — Vocês nem me conhecem direito, e eu já estou aqui desabando na frente de vocês.
Cruzei os braços e balancei a cabeça.
— Acho que a gente já passou do ponto de sermos desconhecidos, doutor Filipe.
Ele riu de leve, mas havia uma tristeza no som. Então, respirou fundo e olhou para a porta.
— Vocês querem conhecê-la?
Meu coração acelerou. Olhei para Gustavo, que assentiu, e então seguimos Filipe para o berçário.
O hospital estava mais silencioso naquele horário da madrugada. Os corredores pareciam frios, e o cheiro de antisséptico continuava forte. Mas havia algo reconfortante na forma como Filipe caminhava à nossa frente, agora mais firme, como se soubesse que, mesmo diante da dor, precisava seguir em frente.
Quando chegamos ao berçário, ele nos guiou até uma das incubadoras e apontou para um pequeno embrulho rosado. Meu peito apertou ao vê-la.
— Essa é a Laís — Filipe disse baixinho.
Ela era tão pequenininha, com a pele corada e os olhinhos fechados, completamente alheia ao mundo ao seu redor. Eu observei enquanto Filipe encostava a mão no vidro, os olhos cheios de lágrimas outra vez.
— Ela é linda — Gustavo disse, sua voz um sussurro.
Filipe sorriu, mas seu sorriso estava quebrado, cheio de dor.
— Eu não sei como vou conseguir fazer isso sozinho — ele confessou.
O silêncio tomou conta de nós por alguns instantes. Eu olhei para Gustavo, que parecia sentir cada palavra de Filipe como um eco de sua própria vida.
E então, antes mesmo de pensar direito, ouvi minha própria voz quebrar o silêncio:
— Você não está sozinho.
Filipe virou o rosto para me encarar, confuso.
Eu dei de ombros.
— Você ajudou o Gustavo quando ele mais precisava, não foi? Agora talvez seja a nossa vez de ajudar você.
O olhar dele passou de mim para Gustavo, como se estivesse tentando entender se aquilo era real.
Gustavo apenas sorriu e assentiu.
— A gente vai dar um jeito nisso — ele disse. — Um dia de cada vez.
E ali, de pé no hospital, diante daquela criança que acabara de chegar ao mundo e daquele homem que perdera tanto, soube que algo havia mudado para sempre em nossas vidas.
Depois daquele dia no hospital, muitas coisas mudaram.
A primeira foi a descoberta sobre Filipe. Eu e Gustavo não poderíamos imaginar que, anos atrás, ele também havia sido um garoto sem rumo nas ruas. Quando ele contou sua história, parecia coisa de filme. Ele e Gustavo sobreviveram juntos por um tempo, compartilhando fome, frio e medos. Mas, em uma manhã qualquer, enquanto Gustavo dormia, Filipe saiu para procurar algo para comer. Foi nesse momento que sua vida tomou outro rumo.
Ele foi atropelado por uma mulher que, desesperada com a situação, o levou ao hospital e permaneceu ao seu lado. Cuidou dele, deu-lhe abrigo e, com o tempo, adotou-o como filho. Ele sempre quis voltar para procurar Gustavo, mas, quando tentou, já era tarde demais. O local onde viveram já não era o mesmo, e Gustavo havia desaparecido. Durante anos, Filipe viveu com essa ausência no peito, sem nunca saber se seu irmão de rua ainda estava vivo. E, no fim, acabou guardando esse passado no fundo da memória, convencendo-se de que talvez Gustavo tivesse tido um destino trágico. O destino, no entanto, tinha outros planos.
Se antes eu e Gustavo tínhamos dificuldades em nos relacionar com outras pessoas, tudo isso mudou. Filipe se tornou parte da nossa família, e a pequena Laís trouxe uma luz completamente nova para nossas vidas. Com o passar dos meses, fomos nos adaptando a uma rotina que nunca havíamos imaginado. Enquanto Filipe trabalhava em plantões exaustivos no hospital, eu e Gustavo cuidávamos de Laís. E como ela crescia rápido!
Quando percebemos, já se passara um ano. Laís, que antes era apenas um bebê frágil no berçário do hospital, agora corria pela casa como se todo o andar fosse dela. Ela entrava e saía dos nossos apartamentos, passando de uma porta para outra como se tudo fizesse parte do mesmo lar.
E, para ela, fazia.
A maior surpresa veio uns 2 meses antes de seu aniversário de um ano. Filipe nos reuniu no sofá de casa, com um sorriso nervoso nos lábios, e fez o convite que mudaria nossas vidas para sempre.
— Eu queria perguntar algo importante — ele começou, ajeitando Laís no colo. — Vocês fazem parte da vida dela tanto quanto eu. Então… O que acham de tornarmos isso oficial?
Eu e Gustavo trocamos olhares confusos.
— Como assim? — perguntei.
Filipe respirou fundo.
— Quero que vocês sejam pais dela também. Quero que a Laís tenha o nome de vocês na certidão.
Meu coração disparou.
— Você tem certeza disso?
Ele riu, olhando para a filha, que brincava com os próprios dedos.
— Tenho. Laís não tem só um pai. Ela tem três. E para ela, isso é a coisa mais natural do mundo.
O processo legal levou um tempo, mas, no fim, tudo deu certo. Quando Laís completou um ano, ela tinha três pais oficialmente.
A vida seguiu seu curso. Filipe, de vez em quando, conhecia algumas mulheres, mas nunca conseguia se envolver seriamente com ninguém. O amor pela falecida esposa ainda era uma sombra presente. Houve um momento em que até sugeri que ele procurasse a doutora Mônica, para tentar lidar com o luto de uma forma mais leve.
Mas, no fim, Laís era seu grande refúgio.
Ela crescia cada vez mais esperta, cada vez mais dona de si. E fazia questão de chamar os três de "papai", como se o mundo todo funcionasse daquela forma.
Para nós, funcionava, e eu não trocaria aquilo por nada. A rotina com Laís era o tipo de felicidade que eu nunca imaginei ter.
Nosso pequeno mundo girava ao redor dela, e, de certa forma, era como se ela tivesse nos dado uma nova chance de sermos crianças também. As noites eram preenchidas com maratonas de filmes e sessões intermináveis de jogos de tabuleiro. Saíamos com ela para passeios no parque, idas ao cinema e visitas a livrarias, onde ela adorava pegar livros só para fingir que lia, passando as páginas com uma concentração exagerada.
Eu nunca tinha me sentido tão completo.
E, quando achei que a vida não poderia estar em um momento melhor, foi aí que me enganei.
Tudo começou quando Gustavo sugeriu que fôssemos ao restaurante onde ele trabalhava. Ele já estava lá há um tempo, mas, por algum motivo, eu nunca tinha ido. Então, em uma noite aparentemente comum, lá fomos nós: eu, Filipe e Laís.
O lugar era elegante, com uma iluminação baixa e música suave tocando ao fundo. As mesas estavam ocupadas por casais e grupos de amigos, e o aroma de comida bem preparada preenchia o ar. Gustavo nos recebeu com um sorriso travesso, o que já me deixou desconfiado. Ele nos levou a uma mesa especial, no canto do restaurante, e, desde o início, percebi que ele estava caprichando no serviço.
Cada prato parecia ter sido preparado com um cuidado especial. Mas nada se comparou à sobremesa.
Quando o garçom trouxe a taça para mim, percebi que havia algo diferente. Ela vinha tampada e, assim que levantei a tampa, uma névoa de gelo seco se espalhou pela mesa, criando uma cena mágica.
No centro do copo, uma flor de açúcar delicadamente esculpida repousava sobre o doce. E, no meio da flor, um anel brilhava sob a luz suave do restaurante.
Meu coração disparou.
Gustavo se levantou, caminhou até mim e, sem hesitar, ajoelhou-se.
O restaurante inteiro ficou em silêncio.
— Léo… — A voz dele estava carregada de emoção. — Desde o dia em que te conheci, você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Eu passei tanto tempo sem saber o que era ter um lar, sem saber o que era ser amado de verdade, sem ter ninguém que me olhasse e me enxergasse de verdade.
Ele respirou fundo, segurando minha mão.
— Mas aí veio você. Você me viu quando eu mesmo não conseguia me enxergar. Você me acolheu, me deu amor, me ensinou que eu podia confiar, que eu podia ser feliz. Com você, eu aprendi o que é família. O que é ter um porto seguro. O que é ser amado de um jeito que cura todas as feridas do passado.
A essa altura, eu já estava com os olhos marejados, e Filipe segurava Laís no colo, sorrindo emocionado.
— A gente passou por tanta coisa, Léo. Tantas dificuldades, tantos medos… Mas você nunca soltou a minha mão. Você sempre esteve comigo, me mostrando que o amor é mais forte do que qualquer dor.
Ele pegou o anel, segurando-o entre os dedos.
— Então, hoje, diante de todo mundo, diante da nossa filha, do nosso irmão, e de todas essas pessoas, eu só tenho uma pergunta… — Ele sorriu, com os olhos brilhando. — Casa comigo?
O restaurante inteiro prendeu a respiração, esperando minha resposta.
Mas eu não precisei pensar nem por um segundo.
— É claro que sim.
E, naquele instante, enquanto Gustavo colocava o anel no meu dedo e eu me jogava nos braços dele, ouvi o som de palmas e comemorações ao redor. Mas nada importava mais do que o fato de que, naquele momento, eu estava exatamente onde sempre quis estar.
Nos braços do homem que eu amava.
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Batendo as curtidas de sempre já público amanhã o final