Clara sentia que o tempo ao seu redor havia perdido a fluidez. O mundo seguia seu curso normal, mas dentro dela, tudo parecia suspenso, como se estivesse à beira de um precipício e incapaz de se mover. Desde a noite fatídica em que Wagner a confrontara, a casa já não era mais um lar acolhedor, e a clínica já não parecia um refúgio. Wagner não a olhava como antes, e isso doía de uma maneira que Clara não conseguia descrever. Não havia discussões, acusações diretas ou escândalos; havia algo muito pior: o silêncio. O silêncio de um filho que a amara incondicionalmente e agora não conseguia mais enxergá-la da mesma forma. O peso de sua decepção era sufocante.
Ele ainda cumpria sua rotina normalmente, levantando-se para a escola, almoçando com eles nos fins de semana, respondendo suas perguntas com monossílabos. Mas os olhares demorados haviam desaparecido. O carinho espontâneo se extinguiu. Se antes ele a procurava para desabafar sobre seu dia, sobre suas frustrações e pequenos triunfos adolescentes, agora ele apenas passava por ela como se fosse uma presença que não merecia mais sua confiança. Era essa mudança sutil e ao mesmo tempo devastadora que fazia Clara perder o sono.
Mas Wagner não era o único fantasma que a assombrava. Priscila, embora silenciosa, era um espelho constante de seu erro. Diferente de Wagner, que ainda processava tudo com a dor latente da descoberta, Priscila a olhava com um tipo de desaprovação fria, dura, como se já tivesse julgado e condenado Clara sem necessidade de um veredicto formal. A recepcionista já não sorria mais com naturalidade quando trocavam palavras durante o expediente. A leveza da amizade que antes compartilhavam foi substituída por uma tensão constante, um clima carregado que Clara percebia e sabia que nunca mais se dissiparia.
E então, havia Otávio. A única constante na sua tempestade interna, e, ao mesmo tempo, o epicentro de todo o seu caos. Ele não pressionava, nunca exigia, mas seu olhar sempre a buscava, como se soubesse que, no fundo, Clara já pertencia a ele, ainda que sua mente tentasse negar. Sempre que sentia sua sanidade escorregar, lá estava Otávio, um toque casual no ombro, um olhar prolongado, um sorriso discreto quando ninguém estava olhando. Ele não dizia em palavras, mas Clara sentia na forma como a observava que ele sabia. Sabia que ela estava dividida, que algo dentro dela lutava contra a própria natureza, mas também sabia que, no final, ela sempre voltava para ele.
Era isso que tornava tudo mais difícil. Se ao menos Otávio fosse invasivo, ciumento, possessivo… talvez fosse mais fácil cortar os laços. Mas ele era paciente, cuidadoso, compreensivo. Ele nunca a pressionava para deixar Vincent, nunca falava sobre um "futuro juntos", nunca fazia perguntas que a colocassem contra a parede. Ele apenas esperava, como se tivesse certeza de que a própria vida trataria de levá-la para ele. E, no fundo, talvez estivesse certo.
Foi com esse turbilhão de emoções que Clara começou seu dia na clínica. Desde que abrira os olhos naquela manhã, sentia-se pesada, como se estivesse imersa em um estado de torpor. O café preto forte que sempre a despertava parecia mais amargo do que o normal, e a náusea sutil que veio com os primeiros goles a fez franzir a testa. Ela ignorou. Não havia espaço para mais um problema. Sua mente já estava sobrecarregada o suficiente.
Mas conforme as horas passaram, a sensação apenas piorou. O ar da clínica parecia mais denso, os cheiros dos produtos químicos de limpeza mais fortes, invadindo suas narinas com uma intensidade incômoda. No meio da manhã, enquanto auxiliava Otávio em um procedimento de rotina, o aroma do flúor misturado com o hálito quente do paciente atingiu seu nariz de um jeito que a fez sentir um mal-estar instantâneo.
Seu estômago revirou. O suor gelado formou-se em sua nuca, e por um instante, ela achou que não conseguiria segurar.
— Clara? — A voz de Otávio ecoou, carregada de preocupação.
Ela respirou fundo, forçando um sorriso enquanto se afastava da sala, tentando disfarçar.
— Só preciso de um minuto — murmurou, saindo rapidamente antes que ele ou Priscila fizessem mais perguntas.
Caminhou até o banheiro e trancou a porta, segurando-se na pia de mármore enquanto tentava recuperar o fôlego. O coração batia rápido, descompassado. Aquilo não era normal.
Clara fechou os olhos com força. Podia sentir o sangue deixando seu rosto, as mãos tremendo levemente. Não, não podia ser. Não agora.
Seu peito subia e descia em um ritmo acelerado, o medo crescendo dentro dela como uma sombra sufocante. Ela se forçou a respirar fundo, a pensar racionalmente. Talvez fosse só o estresse acumulado. Talvez tudo o que vinha acontecendo estivesse cobrando um preço alto demais em seu corpo.
Mas então, uma voz fria e perspicaz interrompeu seus pensamentos.
— Tá tudo bem?
Clara se virou lentamente e viu Priscila parada na porta entreaberta, os braços cruzados, o olhar indecifrável.
Era impossível dizer se sua preocupação era genuína ou se havia uma pontada de desprezo ali. Clara limpou o suor da testa rapidamente e forçou um sorriso.
— Sim, só tô meio enjoada hoje.
Priscila estreitou os olhos. O silêncio entre elas se estendeu por segundos longos e esmagadores.
E então, Clara viu quando o pensamento se formou na mente da amiga.
Não precisou que ela dissesse nada.
O olhar de Priscila dizia tudo.
Ela havia entendido.
Clara sentiu a garganta secar.
Seus dedos se fecharam sobre a pia, tentando se agarrar a alguma sensação sólida que a trouxesse de volta à realidade, mas já era tarde demais. A semente da dúvida já estava plantada e agora, Clara sabia que teria que encarar o que já suspeitava no fundo de sua alma.
O tempo se arrastava de forma insuportável. O relógio na parede da recepção marcava 17h35, mas cada minuto parecia mais longo que o anterior. Clara tentava manter o foco em suas tarefas, arquivando prontuários, respondendo e-mails, checando os próximos atendimentos da semana. Qualquer coisa para desviar sua mente da crescente espiral de medo que se formava dentro dela, mas era impossível.
Desde que saíra do banheiro naquela manhã, algo havia mudado. A suspeita estava viva agora. Não era mais uma ideia vaga, uma paranoia sem fundamento. Era real. Estava ali, pesando sobre seu peito, consumindo cada pensamento racional que tentava ter. E o pior: Priscila sabia.
Clara viu isso nos olhos dela. O silêncio da recepcionista falava mais alto do que qualquer acusação. Priscila não perguntou nada, mas não precisava. O olhar que lhe lançou antes de sair da sala do banheiro foi o suficiente para fazê-la entender que sua amiga havia ligado os pontos.
Agora, enquanto organizava algumas fichas sobre o balcão, seus sentidos estavam aguçados, captando cada mínimo detalhe ao seu redor. Foi por isso que ouviu quando Priscila e Otávio começaram a conversar na sala ao lado.
A porta estava entreaberta. As vozes eram baixas, como um sussurro tenso, carregado de algo pesado. Clara não deveria ouvir, mas não conseguiu evitar.
— Tu precisa assumir a responsabilidade, Dr. Otávio — A voz de Priscila era firme, mas baixa.
Clara prendeu a respiração. Um silêncio se seguiu. Otávio hesitou antes de responder.
— Eu sei — O tom dele era contido, mas sério.
Clara sentiu o coração bater contra as costelas.
Ouviu Priscila soltar um suspiro longo, como se estivesse tentando manter a paciência.
— Ela tá assustada.
— Eu sei, Priscila.
Outro silêncio. Uma pausa carregada.
— Então faz alguma coisa.
Priscila saiu logo depois, seu salto ecoando pelo corredor. Quando passou pela recepção, despediu-se de Clara com um aceno frio e formal, sem um sorriso sequer.
Clara ficou imóvel.
O medo se misturava a uma nova onda de ansiedade. Otávio sabia? Priscila havia falado com ele? Sua cabeça girava. Ela precisava de respostas e precisava delas agora.
Minutos depois, Otávio apareceu na recepção. Ele estava sério.
Não havia urgência, não havia desespero, mas ele queria falar com ela.
— Fica um pouco depois do expediente? — Ele perguntou, a voz baixa.
Clara assentiu devagar.
Fugir não mudaria nada.
O resto do expediente transcorreu como um borrão. Quando os últimos funcionários deixaram a clínica, o silêncio se instalou de forma opressiva.
Clara ainda estava sentada atrás do balcão quando Otávio voltou à recepção.
Ele encostou-se ao móvel e cruzou os braços, observando-a por um momento.
— Tu quer conversar sobre o que tá acontecendo?
Clara engoliu em seco.
Não havia nome para aquilo. Nenhuma palavra foi dita diretamente, mas os dois sabiam exatamente sobre o que falavam.
Ela desviou o olhar.
— Eu não sei o que dizer.
Otávio respirou fundo.
— Tu tá assustada.
Ela soltou um riso curto, sem humor.
— Isso é pouco.
Otávio não sorriu. Ele sabia a gravidade da situação.
— Se for o que tu tá pensando… a gente dá um jeito.
Clara finalmente levantou os olhos para ele. Havia algo na voz de Otávio que a desconcertava. Ele não parecia assustado, não parecia arrependido. Ele não parecia um homem que se desesperaria caso esse medo dela se confirmasse.
Ela passou a mão pelos cabelos, sentindo os dedos frios contra a pele quente.
— Otávio… se isso for real…
Ela não conseguiu terminar. O peso daquelas palavras era grande demais para sair de sua boca, mas Otávio parecia entender mesmo assim.
Ele se inclinou um pouco para frente, diminuindo a distância entre eles.
— Tu não tá sozinha nisso.
Clara sentiu a garganta fechar. Ele dizia aquilo com convicção e, naquele momento, ela percebeu uma verdade dolorosa: Otávio seria capaz de assumir qualquer consequência e essa certeza a aterrorizava mais do que qualquer outra coisa. Se o pior acontecesse, ela não teria desculpas. Ela não poderia alegar que tudo fora um erro impensado, que era algo que deveria ser esquecido.
Otávio não era um amante qualquer. Ele estava disposto a levá-la até o fim. E Clara não sabia se queria isso, ou, pior… sabia que queria.
Ela sentiu uma leve tontura e apoiou-se na mesa para se equilibrar.
Otávio franziu a testa.
— Tu tá pálida.
Clara respirou fundo, tentando afastar a sensação.
— É muita coisa pra processar.
Ele assentiu, olhando para ela como se tentasse decifrar o que passava por sua mente.
Por alguns segundos, nenhum dos dois disse nada.
Otávio se aproximou um pouco mais.
— Eu sei que tu tá com medo.
Clara engoliu em seco.
Sim, ela estava. Ela nunca sentira tanto medo na vida, mas, ao mesmo tempo… Quando Otávio segurou sua mão com um aperto firme e quente, ela percebeu outra coisa: Medo não era a única coisa que sentia.
**********
Vincent sentiu o peso da noite antes mesmo de pisar em casa. O dia tinha sido longo, mas não era o cansaço que o incomodava. Era a sensação de que algo estava fora do lugar.
Clara vinha se comportando de forma estranha há dias. Estava distraída, distante, os olhos sempre perdidos em algum pensamento que ela se recusava a compartilhar. Ele percebia o quanto ela evitava seus toques, o quanto seus sorrisos pareciam forçados. A mulher que um dia fora um livro aberto para ele agora se tornara um enigma indecifrável.
Ao entrar em casa, foi recebido pelo cheiro de comida recém-preparada. A mesa estava posta, e Clara servia o jantar com a mesma calma meticulosa de sempre. Mas algo estava errado. A forma como ela mexia no cabelo repetidamente, como evitava seu olhar, como suas mãos tremiam levemente ao segurar a travessa. Pequenos detalhes que talvez passassem despercebidos para qualquer um.
Ele havia aprendido a perceber os sinais da mentira muito cedo. Já tinha vivido isso antes.
Ele se recostou na bancada, observando Clara em silêncio. O simples ato de vê-la ali, se movendo pela cozinha, trouxe um peso familiar em seu peito.
Clara estava agora sentada à mesa, mexendo na comida sem muito interesse. O silêncio entre eles era pesado. Wagner na sala, quieto, os olhos no celular. Desde que Vincent entrara em casa, o garoto sequer o olhara nos olhos. Algo o incomodava e Vincent tinha certeza de que era sobre Clara.
A tensão estava insuportável.
Vincent colocou o garfo sobre o prato e respirou fundo.
— Clara.
O tom de sua voz não foi acusatório, mas não foi leve.
Ela levantou os olhos, surpresa.
— Sim?
Vincent a observou com atenção.
O menor tremor na expressão dela. O desvio sutil do olhar. A respiração mais contida. Todos os detalhes que ele conhecia bem demais.
— O que tá acontecendo?
Clara piscou.
— O que tu quer dizer?
Ele cruzou os braços, sem desviar os olhos dela.
— Você anda distante. Tá sempre cansada. Tem algo que não está me dizendo?
Ela trocou um olhar rápido com Wagner, que permaneceu em silêncio.
E então, forçou um sorriso.
— Vincent, eu só tô com muito trabalho. Tu sabe como é essa época do ano na clínica.
Vincent não sabia o que exatamente ela estava escondendo, mas sabia que era uma mentira.
— Só trabalho? — Ele insistiu.
Clara segurou os talheres com mais força.
— Só trabalho.
Vincent não respondeu. Não acreditou, mas também não disse nada, pois se havia algo que ele aprendera ao longo dos anos, era que pessoas que mentem sempre revelam a verdade sozinhas.
Basta esperar.
Ele pegou sua taça de vinho e recostou-se na cadeira.
— Tudo bem.
Clara assentiu, como se o assunto estivesse resolvido.
Wagner continuou em silêncio e Vincent não deixou de notar isso. O filho, tão perspicaz quanto ele próprio, já sabia a resposta que Vincent ainda estava procurando. Ele só não estava pronto para dizê-la em voz alta.
Naquela noite, depois que Clara subiu para o quarto, Vincent ficou na sala, sozinho.
O peso do passado e do presente se misturavam em sua mente. Nora. Clara. Duas mulheres. Duas histórias diferentes, mas a mesma sensação. O mesmo vazio. A mesma certeza de que algo estava prestes a desmoronar.
**********
O peso do segredo queimava dentro de Wagner como uma febre, consumindo seus pensamentos, alterando sua visão sobre tudo ao seu redor. Era sufocante. Ele tentava seguir sua rotina normalmente, mas nada parecia como antes. Cada conversa dentro de casa era carregada de um silêncio denso, um campo minado de verdades e mentiras. Sua mãe fingia que tudo estava bem. Seu pai sentia que algo estava errado, mas ainda não sabia exatamente o quê. E Wagner… ele sabia.
Ele nunca imaginou que ficaria no meio de uma mentira tão grande. Nunca pensou que teria que esconder algo assim do próprio pai. Porque, por mais que estivesse magoado com Clara, ele a amava e, mais do que isso, ele queria protegê-la. Mesmo que isso significasse se virar contra Vincent.
Era uma noite quente, abafada. Wagner saiu de casa sem avisar, precisava de ar, precisava pensar longe daquele lugar. Pegou sua bicicleta e pedalou rápido, o vento batendo contra seu rosto, aliviando a pressão em seu peito. Quando finalmente parou, estava na frente do prédio de Ellen.
Ela atendeu a porta de moletom e shorts, os cabelos ruivos bagunçados, segurando uma caneca de chá.
— Wagner? — A surpresa estava clara em seu tom — O que aconteceu?
Wagner respirou fundo.
— Posso entrar?
Ellen não fez perguntas. Apenas abriu mais a porta e o deixou passar.
Eles foram até o quarto dela, um espaço caótico de livros, pôsteres de bandas de rock e roupas jogadas em uma cadeira. Ellen se sentou na cama e observou enquanto Wagner caminhava de um lado para o outro, inquieto.
— Me fala logo — ela insistiu — Tu tá estranho há dias.
Wagner passou a mão pelos cabelos, lutando contra o que estava prestes a dizer, mas então, não conseguiu mais segurar. Ele se virou para Ellen, os olhos brilhando com algo entre raiva e frustração.
— A minha mãe tá traindo o meu pai.
As palavras soaram pesadas no ar. Por um momento, Ellen achou que tinha ouvido errado. Seu corpo ficou tenso.
— O quê?
Wagner desabou na poltrona do quarto, enterrando o rosto nas mãos.
— Eu vi — A voz dele era um sussurro — Vi a prova.
Ellen sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Ela sempre admirou Clara. A mãe de Wagner era uma mulher forte, gentil, parecia uma daquelas pessoas incapazes de fazer algo cruel, mas agora… Ellen não sabia o que dizer.
Ela se sentou ao lado de Wagner, tentando absorver a informação.
— Tu tem certeza?
Wagner soltou um riso amargo.
— Eu encontrei um frasco de óleo essencial na bolsa dela. Um daqueles que dão de brinde no Paradise Suites.
Ellen arregalou os olhos. Não havia outra explicação.
— E teu pai? — Ellen perguntou — Ele sabe?
Wagner negou com a cabeça.
— Não, mas eu sei que ele desconfia de algo. Eu vejo isso nele. Ele tá começando a perceber que tem alguma coisa errada.
Ellen passou a língua pelos lábios, nervosa.
— Wagner… O que tu vai fazer?
Ele ficou em silêncio. Havia dias que se fazia essa mesma pergunta, que lutava contra a vontade de contar tudo para Vincent, mas ele não conseguia, porque, por mais errado que fosse… Ele queria culpar o pai.
Wagner olhou para Ellen, o maxilar travado.
— Meu pai também tem culpa nisso.
Ellen piscou, confusa.
— O que tu quer dizer?
Wagner respirou fundo.
— Tu conhece o meu pai, Ellen. Tu sabe como ele é. Rígido, controlador. Ele não trata a minha mãe como deveria. Sempre exigindo dela, sempre se impondo, sempre deixando tudo do jeito que ele quer.
Ellen franziu a testa.
— Tu tá dizendo que tua mãe fez isso por causa do jeito do teu pai?
Wagner desviou o olhar, como se tentasse organizar os próprios pensamentos.
— Eu não tô dizendo que ela tá certa — A voz dele era baixa — Mas também não acho que foi do nada.
Ellen ficou em silêncio por um momento. Ela entendia Wagner. Entendia que, no fundo, ele não queria ver Clara como a vilã da história, mas ela sabia que não seria justo culpar Vincent.
— Wagner, eu entendo que tu tenha ressentimento do teu pai — Ellen começou com cautela — Mas isso não justifica o que a tua mãe fez.
Ele apertou os punhos.
— Tu não entende, Ellen. Meu pai sempre quis ser o chefe da casa, sempre quis que tudo fosse do jeito dele. E eu cresci vendo isso. Ele nunca se preocupou em ser flexível, em perguntar o que os outros queriam. Ele só… decidia.
— E isso justifica a traição? — Ellen cruzou os braços — Porque pra mim parece que tua mãe fez uma escolha sozinha.
Wagner se levantou abruptamente.
— Tu não sabe como é viver sob as regras do meu pai.
Ellen ficou em pé também.
— E tu não sabe como é ser traído.
O silêncio explodiu entre eles.
Wagner passou as mãos pelo rosto, tentando se acalmar.
Ellen respirou fundo.
— Olha, eu entendo que tu tá confuso. Mas tu tem que pensar em quem realmente causou isso. Tua mãe não foi obrigada. Ela escolheu.
Wagner sentiu o peito apertar.
— Mas eu não posso odiar ela.
Ellen suavizou o olhar.
— Não tô dizendo que tu tem que odiar ela. Mas tu não pode justificar o que ela fez só porque tu não gosta do jeito do teu pai.
Wagner baixou os olhos.
— Então o que eu faço?
Ellen deu um passo à frente e segurou a mão dele.
— Não deixa essa história foder tua cabeça. Isso não é tua culpa.
Ele suspirou.
— Eu só queria que tudo fosse diferente.
Ellen apertou mais forte a mão dele.
— Eu sei.
**********
A chuva batia contra a janela, as gotas escorrendo pelo vidro como pequenas lâminas afiadas. A luz amarelada do abajur tremia sob o vento que uivava do lado de fora, e dentro do quarto, o silêncio era sufocante. O cheiro dos cigarros baratos de seu pai ainda impregnava o ar, misturando-se ao perfume discreto de lavanda que sua mãe costumava usar. Mas ela não estava mais ali.
Vincent era apenas um garoto, pequeno demais para entender, grande demais para não sentir. Sentia tudo. Sentia a tensão nos ombros de Rudolph, a raiva que pairava na sala como um fantasma invisível. O papel amassado no chão, o papel que continha as palavras que destruíram sua família, ainda tremulava sob a brisa vinda da porta entreaberta.
"Até agora, ainda sinto seu gosto nos meus lábios, o calor do seu corpo sob o meu."
Aquelas palavras dançavam em sua mente como uma maldição.
Ele queria falar. Queria gritar. Mas sua voz não saía. Apenas observava sua mãe descendo as escadas, os passos firmes, a certeza de quem não olharia para trás. E então, a porta bateu. O som ecoou pela casa.
E foi nesse instante que Vincent despertou.
Seu corpo se ergueu da cama num sobressalto. O peito subia e descia de forma descompassada, os músculos tensos, o suor frio na testa. A mesma tempestade. Não apenas na noite de sua infância, mas agora, lá fora, rugindo contra as paredes da casa como um aviso.
Vincent piscou algumas vezes, tentando separar sonho de realidade. O quarto estava escuro, mas ao seu lado, Clara dormia profundamente, os cabelos loiros espalhados pelo travesseiro, a respiração calma. Serena demais. E foi nesse instante que a sensação veio. Aquela sensação incômoda, cortante, de que algo estava terrivelmente errado.
Seu estômago revirou. Ele passou a mão pelo rosto, tentando recuperar o controle. Mas o sonho, ou melhor, a lembrança, ainda queimava em sua mente, e então, seus olhos pousaram no criado-mudo. O celular de Clara.
Apenas uma olhada. Bastava uma olhada e ele poderia descobrir o que tanto o atormentava. Seu coração martelou contra as costelas, e seus dedos se moveram antes mesmo que sua mente decidisse. Ele deslizou a mão até o aparelho e o pegou.
Clara não se mexeu. Seus dedos estavam firmes, mas sua mente oscilava entre o passado e o presente.
"Você vai mesmo fazer isso?"
As palavras de seu pai ecoaram em sua mente.
Sim, ele faria. Porque ele precisava saber.
Vincent era um homem meticuloso. Frio. Racional. Nunca tomaria uma atitude baseada apenas em uma sensação. Se Clara estava escondendo algo, ele descobriria. Mensagens, chamadas, e-mails, nada. Tudo estava limpo. Sem trocas suspeitas, sem indícios de conversas sugestivas. Perfeito demais.
Mas Vincent não era um amador. Ele sabia onde procurar. Abriu o histórico de localização. A página carregou lentamente, e então… Lá estava. Locais incomuns visitados ao longo das semanas até seus olhos pousarem em um local específico. Paradise Suites.
Vincent prendeu a respiração. O nome se solidificava em sua mente, tão brutal quanto uma confissão. A mão dele apertou o celular, os dedos crispando contra o plástico frio. Lá estava a verdade. Lá estava a traição.
Era exatamente como antes. Exatamente como com sua mãe.
Ele podia sentir.
O gosto amargo da traição, o mesmo gosto que seu pai sentiu ao ler aquela carta suja.
Vincent conseguia ver Rudolph sentado na cama, as mãos cerradas, o rosto endurecido pelo desgosto e pela dor. A cena se sobrepunha à sua própria realidade. Agora era ele segurando a prova da infidelidade. Agora era ele sentindo o peso de ter sido enganado, descobrindo que, no fim, todas as mulheres que amou eram iguais.
A tempestade lá fora rugiu mais forte, fazendo as janelas tremerem.
Clara se remexeu ao seu lado, mas continuou dormindo. Dormindo como se nada tivesse acontecido. Vincent queria rir. Queria gritar. Queria quebrar o maldito celular contra a parede e acordá-la ali mesmo, mas não fez nada disso. Ele era diferente de seu pai.
Rudolph não percebeu os sinais. Ele foi pego de surpresa. Vincent não permitiria que isso acontecesse com ele. Ele não confrontaria Clara ainda. Primeiro, descobriria tudo. Cada detalhe. E quando tivesse certeza absoluta… Então sim. A tempestade dentro dele se tornaria uma vingança silenciosa.