Essa volta para esta cidadezinha era estranho. Uma mistura de rancor e antecipação. Mas eu precisava estar aqui. Não era mais o garoto frágil que um dia eles humilharam. Agora eu tinha dinheiro, poder e, acima de tudo, um plano.
A sorveteria era o primeiro passo.
Olhei para o letreiro recém-instalado: *Delícias do Centro – Sorvetes Artesanais*. Simples e discreto, como deveria ser. Não queria chamar muita atenção logo de cara. A ideia era me infiltrar aos poucos, fazer com que a cidade me aceitasse sem saber quem eu era de verdade. Tinha mandando reformar esse lugar bem antes de vim pra cá, além de que antes de voltar, pesquisei tudo sobre as pessoas que me interessavam : Mateus, Arthur,Thales e Gabriel ainda moravam aqui. Gabriel trabalhava num posto de gasolina, Thales se vendia como personal trainer e Arthur... Arthur agora era policial da cidade. Engraçado. O mesmo cara que fazia da minha vida um inferno agora andava de farda, bancando o homem da lei. A ironia me fazia rir por dentro.
E Mateus... Ele estava diferente. Mais forte, mais bonito do que eu lembrava. Mas aparentemente, desempregado.
— Pedro?
Virei-me e vi Sofia segurando uma prancheta.
— As mesas já estão organizadas, os sabores prontos... Só falta o chefe cortar a fita inaugural.
Respirei fundo.
— Vamos nessa.
O evento foi pequeno, como eu queria. Alguns curiosos entraram, experimentaram os sorvetes, elogiaram o ambiente. Tudo seguindo o plano. Mas então, o destino resolveu brincar comigo.
Mateus entrou na sorveteria.
O choque foi imediato. Ele parecia o mesmo de antes, mas ao mesmo tempo diferente. Os ombros largos preenchiam perfeitamente a camiseta preta, e o jeito despreocupado ainda estava lá, como se o mundo girasse ao redor dele.
Me mantive impassível quando ele se aproximou do balcão.
— Abriu faz pouco tempo? — perguntou, tirando os óculos escuros.
— Sim, hoje. Primeiro dia.
Ele me analisou por um instante.
— Tem sorvete de morango?
Peguei um pote e servi uma bola na casquinha.
— Morango com um toque especial.
Ele pegou, deu uma lambida e sorriu de lado.
— Gostei do lugar. Tá precisando de funcionário?
Meu coração quase vacilou. Ele não me reconhecia. Claro que não. Eu não era mais o mesmo. Anos de academia, plásticas sutis para afinar o rosto, a barba bem cuidada... Eu era um estranho para ele.
E isso me dava vantagem.
— Na verdade, sim — respondi, tentando soar casual.
— Bom saber. Tô precisando de um emprego.
Então era verdade. Mateus estava desempregado. A ideia de tê-lo trabalhando para mim era quase cômica. O destino tinha um senso de humor peculiar.
— Passa aqui amanhã pra gente conversar — falei, entregando a ele um guardanapo.
— Fechado.
Ele deu outro sorriso antes de sair.
Fiquei olhando enquanto ele se afastava, sentindo um calor estranho no peito. Ódio, com certeza. Mas também algo mais. Algo que eu não queria admitir.
Respirei fundo e apertei os punhos.
Se eu ainda sentia algo, então precisava me vingar ainda mais.
O primeiro dia da *Delícias do Centro* tinha sido um sucesso. O movimento foi constante, clientes entravam e saíam satisfeitos, e os elogios ao sorvete artesanal me faziam sentir que estava no caminho certo. Minha estratégia de começar discreto estava funcionando.
Me ocupei o dia inteiro, atendendo, organizando o estoque, conferindo o caixa. Tudo corria bem.
Sofia estava ao meu lado, ajudando como podia, mas sua presença ali era temporária. Agora, ela era enfermeira no hospital da cidade e só tinha vindo para dar uma força na inauguração.
— Acho que posso me considerar uma ótima funcionária temporária — brincou ela, apoiando os braços no balcão.
Sorri de leve.
— Devo admitir, você deu conta direitinho.
Ela riu e olhou para o relógio.
— Mas amanhã volto pra minha rotina no hospital. Já estou me despedindo da vida de vendedora de sorvete.
— Pelo menos garantiu sorvete grátis quando quiser.
Ela piscou.
— E é exatamente por isso que eu vim.
Ri baixo, mas, no fundo, senti um aperto. Gostava da companhia dela. Sofia era uma das poucas pessoas que sabia um pouco do que eu passei, mesmo que não soubesse tudo.
Quando o último cliente saiu e fechei as portas, um silêncio pesado tomou conta do lugar. Sentei-me em uma das cadeiras, sentindo o corpo cansado, mas a mente inquieta.
E então, aconteceu.
O cheiro de algo no ar. Um detalhe qualquer no ambiente.
De repente, eu não estava mais ali.
Eu estava em São Paulo. No fundo de um beco, com o estômago vazio, o frio cortando minha pele. Eu me via sentado no chão sujo, tentando ignorar a fome que corroía meu corpo. Três dias sem comer direito. O dinheiro que eu tinha na época não era suficiente nem para um pão.
Lembrei de andar pelas ruas lotadas, observando as vitrines de restaurantes como um fantasma, desejando ser invisível de verdade. Até que, em um impulso de desespero, tentei pegar um resto de comida jogado sobre uma mesa de praça de alimentação. Mas fui visto. Fui expulso como se fosse um bicho.
A humilhação. A fome. A solidão.
Pisquei rápido, tentando voltar para o presente, mas já era tarde. As lágrimas começaram a escorrer antes que eu pudesse impedir.
— Ei... — Sofia se aproximou, se abaixando ao meu lado. — O que foi?
Tentei limpar o rosto, mas o choro veio mais forte.
— Só... lembrei de umas coisas — murmurei, a voz falhando.
Ela não perguntou nada. Apenas me abraçou.
E naquele momento, percebi que, apesar de tudo que conquistei, uma parte de mim ainda carregava as cicatrizes do passado.
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Acordei antes do sol nascer, como sempre. Correr tinha se tornado um hábito essencial nos últimos anos. No começo, era só uma forma de aliviar a cabeça, mas com o tempo, fui ficando melhor, mais rápido, mais resistente. Agora, correr não era só exercício; era disciplina.
Coloquei um shorts preto e uma regata justa, enfiei os fones nos ouvidos e dei play em Adele. A voz dela preenchia minha mente enquanto eu alongava na porta de casa. Eu tinha uma rotina bem definida. Primeiros minutos em um trote leve, sentindo o corpo acordar. Depois, aumentava o ritmo.
A cidadezinha ainda estava silenciosa, com pouquíssima gente na rua. Passava pelas praças, pelas ruas principais, desviava dos poucos idosos que caminhavam devagar e dos primeiros trabalhadores do dia. O frio da manhã contrastava com o calor que meu corpo começava a gerar.
Quando virei a esquina perto da mercearia do centro, um assobio exagerado cortou o ar.
— Ei, gostoso, corre aqui pra mim!
Revirei os olhos, sem nem precisar olhar.
— Ihhh, que ignorância, hein! Não sabe aceitar um elogio? — insistiu a voz.
Dessa vez, olhei rapidamente. Um cara encostado na porta da mercearia me encarava com um sorriso atrevido. Moreno, cabelo descolorido, roupas justas demais para aquela hora da manhã.
— Tô só passando — respondi, sem diminuir o ritmo.
— E eu aqui esperando você passar na minha vida Pedro — ele brincou, rindo.
Dessa vez, parei por um instante, mais surpreso por ele saber meu nome do que pela cantada em si.
Ele se aproximou, um pouco mais hesitante do que sua voz sugeria.
— Sou Maiconsuel. Trabalho aqui na mercearia. Já ouvi falar de você… do novo dono da sorveteria.
Cruzei os braços, tentando medir a intenção dele.
— É mesmo?
— Uhum. — Ele sorriu, um pouco sem jeito. — Tô sendo intrometido?
Ele não parecia ser um cara ruim. Na verdade, tinha um jeito meio fofo, apesar da abordagem exagerada. Mas eu não estava no clima para socializar.
— Tô com pressa. Mas bom te conhecer.
— Claro, claro — ele riu, passando a mão no cabelo. — Se quiser um desconto no café da manhã, já sabe onde me achar.
Não respondi, só voltei a correr. Ele pareceu entender e não insistiu.
***
Depois da corridinha, fui direto pra casa, tomei um banho e segui para a sorveteria. Segunda-feira de manhã não costumava ser agitada, mas eu queria chegar cedo para organizar tudo.
Além disso, hoje era o dia da entrevista de Mateus.
Só de pensar nele, senti um aperto estranho no peito. Não era só o ódio pelo passado. Era algo mais complicado. Algo que me irritava.
Mas isso não importava.
Hoje era mais um dia de trabalho. Mais um dia jogando o jogo do jeito que eu queria.
O cheiro de creme e frutas doces se espalhava pela sorveteria, mas, pra mim, tudo ali era um campo de batalha. A sorveteria poderia até ser o meu disfarce, a minha fachada, mas por dentro eu estava um passo à frente, planejando cada movimento. Isso era apenas mais um passo em direção à minha vingança.
Mateus entrou. Seu cabelo estava ligeiramente bagunçado, como se não tivesse se importado em arrumar nada além do que vestir. Ele usava uma camisa simples, uma jeans bem desgastada e um tênis que parecia ter sido comprado naquelas lojas de desconto. Eu podia sentir a falta de cuidado, o quanto ele não se importava consigo mesmo. E essa visão só me incomodava ainda mais. Ele não tinha nada a ver com a imagem que eu queria criar para a minha vida.
Ele parou na porta, olhando em volta, talvez se sentindo deslocado, mas com uma expressão que tentava demonstrar confiança. Aquele cara era a personificação de uma decepção. E, no fundo, eu gostava disso. Quanto mais humilhado ele ficasse, melhor seria.
— Senta — mandei, sem tirar os olhos do computador, quase como se fosse um favor que eu estava fazendo. A cadeira estava à minha frente, mas ele se ajeitou de forma incerta, se aproximando sem fazer um som. Eu queria que ele soubesse que ele estava ali apenas por um capricho meu.
Ele se sentou de forma meio tensa, olhando para os lados, talvez esperando algum tipo de cordialidade que não estava vindo. Eu me diverti com isso.
— Bom, Mateus… — comecei, jogando a caneta sobre a mesa e encarando-o com um olhar de desprezo. — Eu sei que você veio aqui porque precisa de trabalho. Então, me diga, por que eu deveria te contratar?
Ele se ajeitou na cadeira, tentando encontrar um jeito de responder sem parecer inseguro. A maneira como ele se mexia, como fazia as mãos ficarem inquietas sobre os joelhos, só me dava mais vontade de debochar dele. Ele não era nem metade do que eu queria.
— Eu já trabalhei em outros lugares... lanchonetes, bares, enfim. Eu sei como lidar com o público. — Ele começou a falar, mas sua voz não passava de uma tentativa vazia de soar convincente. Eu podia ver em seus olhos que ele estava se esforçando muito mais do que deveria.
— E o que você acha que é lidar com o público? — continuei, arqueando a sobrancelha de forma cínica. — Me impressione, Mateus. Mostre que você sabe o que está fazendo.
Ele me encarou, mas algo na maneira como ele olhava me dizia que ele não era o tipo de pessoa que enfrentava alguém de frente. Tinha um tom de submissão nele que eu simplesmente não poderia ignorar.
— Bem, é... saber ser educado, atender bem, se manter calmo... — Ele deu uma risadinha nervosa, tentando justificar suas palavras, mas elas saíam como uma justificativa para a sua própria fraqueza.
Eu me inclinei sobre a mesa, deixando meu olhar mais intenso, sem nem tentar disfarçar o deboche.
— E o que mais, Mateus? Porque qualquer um pode ser educado. Aqui, a gente precisa de alguém que saiba lidar com situações difíceis. Tipo quando o cliente quer xingar, reclamar sem motivo… você sabe?
Ele respirou fundo, tentando se recompor. Mas, de alguma forma, sua postura estava desmoronando diante de mim. O que eu via era só um garoto tentando ser alguém, mas que não tinha o mínimo de habilidade. E eu estava adorando isso.
— Acho que... se o cliente for grosso, a gente tem que... manter a calma. Não reagir.
Soltei uma risada curta, sarcástica.
— Manter a calma? Você não acha que essa é uma resposta patética? Olha, não sei o que você espera, mas aqui, meu amigo, não vai ter nenhuma oportunidade de "manter a calma" se você for incapaz de controlar uma situação. Você simplesmente vai ser engolido. Isso é tão óbvio quanto o fato de que você está completamente fora do seu alcance aqui.
Ele ficou em silêncio, com o rosto mais fechado do que antes. Eu podia sentir a frustração crescendo nele. Mas eu não estava ali para ser simpático. Eu queria vê-lo cair. Queria mostrar pra ele que não passava de uma peça sem valor no meu jogo.
Eu continuei, sem pressa. O tempo era meu aliado.
— E me diga, como você lida com pressões? Porque aqui não vai ser fácil, não. Não vou ficar fazendo fofoca com você na cozinha ou fazendo piada com os outros funcionários. Se você acha que vai sair por aí sorrindo e agradando o cliente, está muito enganado. Eu preciso de gente que tenha um mínimo de discernimento.
Ele parecia tentar esconder a raiva, mas seus lábios estavam apertados. Eu adorava ver essa insegurança exposta. Ele não tinha controle, não tinha poder. Só que isso não significava que ele não seria útil. No fundo, eu ainda precisava dele, ainda ia usá-lo, mas por enquanto, ele tinha que acreditar que estava ali para provar seu valor.
A verdade é que ele já estava na minha rede, e eu ia usá-lo, como uma simples peça.
Quando vi que ele estava começando a ficar mais nervoso, achei que já era hora de finalizar a entrevista. Aguardar mais não ia fazer diferença.
— Sabe, Mateus... você não é exatamente o que eu procurava. — O olhar dele se escureceu, mas eu continuei, dando-lhe o golpe final. — Mas, no fim, você vai começar amanhã. Acha que consegue lidar com isso?
Ele me olhou surpreso, ainda tentando entender o que estava acontecendo. Eu sorri internamente.
— Claro... claro. Vou fazer o meu melhor.
— Então é isso. Não me decepcione.
Ele se levantou, e antes de sair, olhei-o mais uma vez. Ele não passava de um peão em minha mão.
E, como eu esperava, Mateus saiu sem saber o que estava prestes a acontecer. Ele pensava que agora teria um emprego. Mal sabia ele que eu só o contratava porque seria útil em um futuro próximo.
Assim que a porta se fechou atrás dele, meu celular vibrou na mesa. O nome no display me fez sorrir, embora com um sorriso sombrio. Era a mulher que eu tinha contratado para se infiltrar na vida de Gabriel.
— Alô? — Atendi.
— Oi, Pedro. É a Jéssica.
— Alguma novidade? — Perguntei, já sabendo que ela tinha boas notícias.
— Sim. Eu consegui. Ele já me chamou para sair. Está completamente caindo na minha lábia.
Eu senti uma onda de satisfação percorrer meu corpo. Gabriel não fazia ideia do que estava prestes a acontecer. Eu estava me aproximando dele, mais e mais, a cada passo que dava.
— Perfeito. Agora, não deixe ele escapar. Você sabe o que fazer. — Minha voz foi firme.
— Pode deixar. Eu vou arruinar a vida dele, Pedro. Ele vai se arrepender de ter cruzado o meu caminho.
Desliguei, sentindo uma satisfação macabra. Cada movimento que eu fazia, cada peça que eu colocava no jogo, só me aproximava mais do meu objetivo.
Continua...