A cidade começava a acordar enquanto eu terminava minha corrida matinal. O suor escorria pelo meu rosto, e a música da Adele nos fones de ouvido embalava os últimos metros do meu percurso. Eu me sentia mais forte a cada dia, não só fisicamente, mas mentalmente também. Correr era meu momento de clareza, onde eu podia organizar os pensamentos e me lembrar do motivo pelo qual voltei para essa cidade.
Ao diminuir o ritmo, vi que estava próximo à padaria da esquina. O cheiro de pão recém-saído do forno misturado com café forte me atingiu como um convite irrecusável. Eu não tomava café na rua há anos, mas algo em mim queria prolongar aquele momento de tranquilidade antes de voltar à rotina da sorveteria.
Foi então que ouvi uma voz atrás de mim:
— Olha só quem tá madrugando na cidadezinha. E aí, corredor, vai recusar um café?
Virei-me e encontrei Maiconsuel, o cara que vivia me dando cantadas. Ele sorria de um jeito leve, e dessa vez não pareceria invasivo.
— Só aceito se for por conta da casa — brinquei.
Ele riu e fez um gesto para entrarmos na padaria. Sentamos a uma mesa perto da janela. Ele pediu dois cafés e dois pães de queijo, sem nem perguntar se eu queria. Talvez fosse só um gesto generoso, ou talvez ele achasse que eu precisava me alimentar melhor. Fosse como fosse, aceitei.
— E então, Pedro, você sempre corre assim? — perguntou ele, soprando o café quente.
— É um hábito antigo — respondi. — Ajuda a manter a cabeça no lugar.
— Te entendo. Eu jogo futebol na praça pelo mesmo motivo.
Assenti e tomei um gole do café, sentindo o calor tomar meu corpo. Maiconsuel parecia tranquilo, diferente de qualquer pessoa que eu havia conhecido nos últimos tempos. Ele não parecia ter segundas intenções, só gostava de conversar. Mas minha cabeça ainda estava presa à noite anterior.
Antes de dormir na noite anterior, eu me peguei pensando no meu pai. Fazia anos que eu não o via, aí do nada vi ele ontem, e um turbilhão de pensamentos tomaram conta da minha cabeça . Sim, eu sabia que ele ainda estava na cidade, mas nunca tive coragem de procurá-lo. Será que ele sentiria orgulho do que me tornei? Ou continuaria me desprezando, como fez a vida inteira? A lembrança dele ainda pesava em mim como uma sombra impossível de ignorar.
— Terra chamando Pedro — a voz de Maiconsuel me trouxe de volta.
— Oi, o que foi?
— Perguntei se quer outro café.
— Não, obrigado. Já preciso ir para a sorveteria.
Maiconsuel sorriu e fez um gesto de despedida. Eu saí da padaria sentindo algo estranho. Talvez fosse só o café forte demais, ou talvez fosse o fato de que, pela primeira vez em muito tempo, alguém conversou comigo sem que houvesse segundas intenções.
...
O dia estava fresco, o vento balançava as árvores do parque, e eu aproveitava aquele momento de tranquilidade para caminhar e colocar a conversa em dia com Sofia pelo WhatsApp.
Pedro:Mulher como pode essa cidade ter crescido tanto, obviamente não é uma São Paulo da vida, mas eu tô passado!
Sofia: Você vive chamando a cidade de cidadezinha, o que mudou ?
Pedro: Sei lá ... Eu ando tão com a cabeça cheia, que nem tinha reparado totalmente na cidade!
Sofia:Meu querido nós já temos até museu!
Ri sozinho, digitando uma resposta.
Pedro: Espero que tenha um bar com gogoboys gostosos e suados!
Sofia mandou um emoji de tapa na cara e eu ri novamente. Continuamos conversando enquanto eu andava distraído pelo parque, até que um movimento incomum no canto da trilha chamou minha atenção.
Dois caras estavam entre as árvores, encostados um no outro. Até aí, nada demais, mas, ao focar melhor, percebi que as coisas estavam ficando… intensas. Tipo, muito intensas.
Arregalei os olhos, sentindo o rosto esquentar.
— Ah, pelo amor de Deus…
Virei o rosto rápido, tentando agir como se não tivesse visto nada, e foi aí que o destino resolveu brincar comigo.
Antes que eu pudesse desviar o caminho, trombei com algo sólido. Não, alguém sólido.
Alguém muito sólido.
A pancada me jogou meio para trás, e, quando levantei os olhos, precisei inclinar a cabeça para cima. O cara na minha frente era enorme, devia ter quase dois metros de altura, ombros largos, braços fortes e uma expressão divertida no rosto.
— Caramba, cara, tá cego? — ele disse, dando um passo para trás e colocando as mãos na cintura.
Minha boca abriu e fechou sem som por um segundo. Ele era bonito. Muito bonito. Pele levemente bronzeada, barba por fazer e olhos escuros que me analisavam com um misto de curiosidade e diversão.
— Eu… foi mal — murmurei, tentando recuperar minha dignidade.
— Sem problemas — ele sorriu. — Eu me chamo Flávio.
Ele estendeu a mão, e eu apertei, ainda um pouco desnorteado.
— Pedro.
Flávio cruzou os braços, me analisando.
— Você parece meio perturbado. Viu um fantasma ou algo assim?
Eu ri, coçando a nuca.
— Pior que quase isso. Só… vi algo que não deveria ter visto.
Flávio arqueou uma sobrancelha.
— Ah, agora fiquei curioso.
Revirei os olhos, dando um meio sorriso.
— Confia em mim, não quer saber.
Ele riu.
— Se você diz. Mas olha… se precisar de uma distração pra esquecer o que quer que tenha visto, eu ia no cinema esse fim de semana. Não gosto muito de ir sozinho, então… quer me fazer companhia?
Pisquei, surpreso com a proposta direta.
— Você tá me chamando pra sair?
Flávio deu de ombros.
— Bom, se você quiser considerar um encontro, não vou reclamar.
Minha boca se curvou em um sorriso involuntário.
— Depende. Você paga a pipoca?
— Só se você escolher um filme decente.
— Fechado, então.
Trocamos números e marcamos o dia. Quando Flávio se afastou para continuar sua corrida, fiquei parado por alguns segundos, tentando entender o que diabos tinha acabado de acontecer.
Olhei para o celular. Uma nova mensagem de Sofia.
Sofia:Por que sumiu? Foi atropelado por uma manada de elefantes?
Pedro: Quase. Mas, dessa vez, foi por um cara de quase dois metros. Literalmente.
Sofia:Tá brincando?
Pedro:Não! E agora tenho um encontro no cinema.
Esperei alguns segundos pela resposta, até que o celular vibrou de novo.
Sofia:VOCÊ O QUÊ?!
Sorri e continuei minha caminhada, sentindo que o dia tinha ficado bem mais interessante.
Mais tarde, fui ao supermercado fazer compras para a sorveteria. Precisava repor alguns ingredientes e organizar melhor o estoque. Empurrando o carrinho pelos corredores, revisava mentalmente a lista para não esquecer de nada. Estava focado nisso quando ouvi uma risada atrás de mim.
Uma risada que eu reconheceria em qualquer lugar.
— Não acredito. Então o nerdzinho voltou mesmo? — A voz carregada de escárnio me fez parar. Como aquele idiota tinha me reconhecido!
Virei devagar e dei de cara com Gabriel, o terror da minha adolescência. Ele estava do mesmo jeito de sempre: olhar arrogante, sorriso cruel. O tempo não havia mudado nada nele, exceto talvez algumas entradas no cabelo e uma expressão cansada de quem percebeu que a vida não foi tão generosa quanto ele achou que seria.
— Pedro, quanto tempo, hein? Não achei que teria coragem de pisar aqui de novo — ele disse, cruzando os braços.
Meu coração acelerou, mas não de medo. De ódio. Eu não era mais aquele garoto indefeso que ele humilhava na escola. Mantive minha expressão neutra.
— Gabriel — respondi, sem dar mais assunto.
Ele olhou para o meu carrinho e riu.
— Sorveteria? Então resolveu vender doce pra criança agora? Ah, cara, que decadência. Depois de todo o show que você dava na escola, achei que ia ser algo melhor. Sei lá, um advogado, um médico... Mas um vendedor de picolé? Patético.
Cruzei os braços e encarei ele nos olhos.
— Prefiro vender sorvete do que ser um fracassado como você.
Gabriel riu mais alto, mas algo em sua expressão mudou. Uma hesitação. Ele não estava acostumado com essa minha versão.
— Olha só, o nerd aprendeu a responder. Mas continua fraco. Você pode ter mudado por fora, Pedro, mas por dentro... continua o mesmo moleque chorão. E um dia vai voltar a ser tratado como um.
Respirei fundo e sorri de lado. Se era isso que ele queria, um jogo de palavras, eu ia acabar com ele.
— Interessante você falar sobre fracasso, Gabriel. Você sempre foi o valentão da escola, o cara que se achava o centro do universo. E agora? Um pobre coitado trabalhando como frentista em um posto de gasolina, ganhando salário mínimo, voltando para casa num aluguel que mal consegue pagar, com um futuro brilhante... de um bosta qualquer.
A risada sumiu do rosto dele.
— Cuidado com o que fala, moleque...
— Ah, vai me bater, Gabriel? Como fazia quando eu tinha quinze anos? Engraçado como naquela época você precisava de três amigos pra me segurar. E agora, sozinho, nem coragem tem pra levantar a mão. Sabe o que é isso? É medo. Você sabe que, se tentar alguma coisa, eu acabo com você.
O rosto dele ficou vermelho.
— Você tá se achando só porque fez academia, né? Continua um viado inútil.
Eu ri.
— E você continua um homofóbico frustrado. Mas sabe o que me intriga? Homens como você geralmente são os primeiros a se interessar quando ninguém está olhando. Não me admira nada se, no fundo, toda essa raiva for porque você tem inveja de quem pode viver livremente. Quem sabe você mesmo não tem seus segredinhos, Gabriel?
Ele tentou responder, mas as palavras morreram na boca. Ele estava sem ar, os olhos arregalados.
— Mas fique tranquilo, eu não vou espalhar. Afinal, quem se importaria? Você é um ninguém. Ninguém quer saber da sua vida, ninguém se importa com seus problemas. E daqui a dez anos, quando estiver mais acabado ainda, vai olhar pra trás e perceber que foi isso. Seu grande legado: um idiota que gastou a juventude atormentando os outros e acabou sem nada.
Gabriel abriu a boca, mas ao invés de falar, engasgou no próprio ar. Seus olhos ficaram vidrados, ele deu um passo para trás, tropeçou no próprio pé e... desabou no chão.
Desmaiado.
O supermercado ficou em silêncio por um segundo, até que algumas pessoas correram para ajudá-lo. Eu apenas observei, sem expressão, depois empurrei meu carrinho até o caixa.
— Vai querer pagar no débito ou crédito? — perguntou a atendente, meio atordoada pelo que tinha acabado de ver.
Sorri.
— Débito.
Saí do supermercado ainda sentindo o gosto da vitória. Gabriel tinha desmaiado bem na minha frente, e eu não podia negar o quão satisfatório foi vê-lo desmoronar diante de cada verdade que cuspi na cara dele. Mas, ao mesmo tempo, um incômodo crescia dentro de mim. Algo naquilo parecia errado. Como se eu tivesse puxado um fio solto e agora não soubesse até onde ele levaria.
Deixei esses pensamentos de lado assim que entrei na sorveteria. O lugar ainda estava em silêncio, já que o movimento era menor naquele horário. Mas, ao caminhar pelo balcão, um detalhe chamou minha atenção de imediato: o jeito desleixado com que as coisas estavam sendo feitas.
Havia sorvete derretendo na máquina, uma pilha de copos descartáveis jogados de qualquer jeito e uma bagunça evidente no caixa. O responsável? Mateus, que estava encostado no balcão, mexendo no celular, como se estivesse em um dia de folga.
Fechei os olhos por um segundo, respirei fundo e me aproximei.
— Mateus — chamei, com a voz firme.
Ele levantou a cabeça e fez uma cara de quem estava pouco se importando.
— O que foi?
Cruzei os braços.
— Você pode me dizer o que diabos está acontecendo aqui?
Ele olhou ao redor como se não visse nada de errado.
— Tá tudo certo.
— Certo? Você tem ideia do quanto essa bagunça tá errada? Sorvete derretendo, balcão imundo, caixa desorganizado… Você tá achando que aqui é sua casa, onde você pode fazer as coisas de qualquer jeito?
Mateus revirou os olhos.
— Nossa, que drama. Eu ia arrumar depois.
Dei uma risada sarcástica.
— Depois? Depois, quando? Quando os clientes forem embora porque perceberam que essa sorveteria tem um funcionário incompetente que não sabe fazer o básico?
Ele bufou.
— Para de exagero, Pedro. Eu faço meu trabalho.
— Você faz um trabalho de merda, isso sim. Sabe quem não faz um trabalho de merda? Wellington. Ele é pontual, organizado, não fica no celular em horário de serviço e, principalmente, não age como um moleque mimado quando recebe um puxão de orelha.
Mateus apertou os punhos.
— Por que você não demite logo, então?
Me aproximei mais, sem perder a postura.
— Porque eu gosto de ver você engolindo o próprio orgulho. Eu gosto de ver você sabendo que, entre você e Wellington, ele é mil vezes melhor. Você foi contratado porque eu permiti, mas nunca foi minha primeira opção. E cada erro que você comete só prova que você não passa de um irresponsável, que nunca vai chegar a lugar nenhum.
O rosto de Mateus ficou vermelho de raiva, e por um segundo achei que ele fosse me enfrentar. Mas ele desviou o olhar e voltou ao balcão, tentando fingir que não se importava.
— Arruma essa merda agora — ordenei, antes de sair e deixar ele sozinho com a própria frustração.
Saí da sorveteria sentindo o sangue ainda fervendo. Eu precisava esfriar a cabeça.
Foi então que aconteceu.
No momento em que pisei na calçada, um carro surgiu do nada, em alta velocidade. Não tive tempo de reagir. O impacto veio forte, me jogando no chão com violência. A dor explodiu em todo meu corpo antes que tudo ficasse escuro.
Quando abri os olhos novamente, estava em um hospital. As luzes brancas machucavam minha visão, e minha cabeça latejava como se tivesse sido esmagada.
Tentei me mexer, mas uma dor aguda atravessou meu corpo, me fazendo gemer.
Foi quando ouvi vozes. Médicos conversavam ao fundo, e uma TV ligada em volume baixo exibia um jornal local. Foi a manchete que me fez congelar.
**"FUNCIONÁRIO DE POSTO É ASSASSINADO A SANGUE FRIO."**
Meu coração disparou.
Virei a cabeça com dificuldade para olhar a tela. A imagem de Gabriel apareceu. A legenda dizia tudo o que eu precisava saber.
**"GABRIEL, FOI EXECUTADO COM TRÊS TIROS NO PEITO ENQUANTO TRABALHAVA. A POLÍCIA INVESTIGA O CRIME."**
Meu estômago revirou. Meu peito ficou apertado. Gabriel… morto? A sangue frio?
O pânico tomou conta de mim. Isso não podia estar acontecendo. Alguma coisa estava errada. Muito errada.
E, pela primeira vez, eu me senti verdadeiramente assustado.
Continua...
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