A semana foi cheia e o tempo parecia não passar. A obra na clínica estava prestes a ser iniciada, fiz a mudança para o prédio comercial onde a clínica ia funcionar, e segui com os atendimentos e o meu acompanhamento psicológico. Chegou a sexta-feira e eu me sentia completamente exausta de tudo.
Precisei parar o carro no estacionamento do colégio porque cheguei um pouco antes do horário, avisei para Júlia e fiquei esperando. Quando ela e as crianças entraram no carro, eu estava tão perdida nos meus pensamentos que até me assustei. Meu humor não estava dos melhores e acho que a gatinha logo percebeu, porque me deu de cara um beijo mais longo que o normal.
Kaique e Milena estavam elétricos, conversando sem parar sobre o jogo que havíamos assistido no dia anterior. Nos pênaltis, o Flamengo se classificou para as quartas de finais da Libertadores. Eles estavam super animados, me contando como zoaram os colegas, e eu tentando disfarçar o meu aparente desânimo.
Em outros tempos, eu certamente teria sido a primeira a puxar assunto sobre o jogo. A empolgação dos meus filhos com a classificação teria me contagiado imediatamente, e eu não perderia a oportunidade de rir das histórias sobre como eles zoaram os amigos. Eu sempre incentivava esse tipo de brincadeira saudável, achando graça em como as rivalidades podem ser tão intensas. Teria entrado na brincadeira, dado algumas sugestões engraçadas sobre como continuar com as brincadeiras e adverteria, com uma flamenguista traumatizada, que a qualquer momento o sonho poderia acabar. Mas naquele dia, eu não consegui encontrar forças para me envolver da mesma forma e, apesar de querer compartilhar daquele momento, o meu desânimo me impedia de reagir. Algo dentro de mim parecia distante, como se eu estivesse desconectada daquela leveza que é característica minha e costumava sempre me acompanhar.
— Que foi, mãe? Por que tá assim? — Perguntou Milena, ao perceber.
Pelo visto, eu não estava conseguindo esconder.
— Nada, filha... Só quero chegar em casa logo. Estou bem cansada — Expliquei.
— Mas e o Jiu-jitsu? — Kaká perguntou.
Eu tinha esquecido completamente. Até o caminho que peguei era mais longo.
— Droga, nem estava lembrando — Falei e massageei as têmporas.
— Tá tudo bem, tá em tempo ainda, amor — Disse Juh, passando a mão no meu braço em forma de carinho.
Segui em direção à academia e eles foram treinar.
— Quer ir para casa? Não tem problema, eu espero eles terminarem e pego um Uber — Sugeriu a gatinha.
— Não, não... Quero descansar com minha muiezinha — Falei e dei vários selinhos nela, que sorriu de forma linda, como sempre.
— Quer que eu vá com você? Aí, daqui a uma hora, volto — Propôs Juh.
— Não, amor, tá tudo bem... Já estou aqui, vamos esperar — Concluí.
Descemos do carro e atravessamos para ficar em um banco de uma charmosa pracinha. Deitei sobre a coxa de Júlia e ela soltou o meu cabelo para fazer cafuné com mais liberdade.
Uns minutinhos ali desfrutando daquele carinho e, de repente, ouvi o sensei me chamar e fazer sinal com as mãos.
Estava ele, Milena, Kaique e mais duas crianças. Ao me aproximar, percebi que meu filho estava com uma carinha de choro, na verdade, prendendo o choro. Logo pensei: "Mais problemas."
— Oi, o que houve? — Perguntei.
— Ele acabou estourando a orelha — O sensei respondeu.
Só então eu reparei na orelha levemente inchada.
Os amiguinhos estavam em divergência de opiniões. Um achava maneiro e parabenizava Kaká, dizendo que agora sim ele era um jiujiteiro, e o outro ria, acusando-o de "faixabranquisse". Milena estava visivelmente brava. Achei que era porque ela não poderia julgar os rolas que o professor tinha prometido.
Kaká estava calado, grudado em Juh. Como eu conheço minha peça, sabia que era porque, se ele abrisse a boca ali, ia chorar na frente dos colegas, coisa que ele não gosta. Nós nos despedimos do pessoal e fomos para casa.
No carro, Milena deitou Kaique, que agora chorava, no colo dela e começou a falar mal dos dois colegas que acompanharam Kaká até a frente da academia.
— Eu falei com você que eles não eram seus amigos. Um é imbecil de achar isso bonito e o outro estava rindo de você. Eles não são seus amigos, Kaique, não são! — Ela exclamou, bem brava, enquanto o irmão chorava.
Eu fiquei impressionada, nunca a tinha visto daquela maneira. Achei engraçado o jeito que Milena agiu e olhei para Juh erguendo a sobrancelha e prendendo os lábios.
— Pelo que seu professor disse, essas coisas podem ocorrer. Nunca aconteceu com você? — Juh perguntou.
— Não, eu tenho técnica! — Ela respondeu, irritada, com o dedinho erguido, mas com um olhar tranquilo.
Eu não aguentei e Juh também não. Nós explodimos de dar risada. Não que Milena não tivesse técnica, mas a maneira segura como ela falou foi muito cômica.
Kaique levantou do colo dela, revoltado, chorando mais do que nunca, bem na hora em que parei no hospital.
— Milena tá me humilhando! — Exclamou, se encostando o máximo que podia na porta, longe da irmã.
Eu clamava para a minha maturidade voltar para o corpo, mas eu simplesmente não conseguia parar de rir.
— Não, filho, não foi isso... — Foi a única coisa que eu consegui dizer antes de voltar a rir.
— Kaká, eu não tô te humilhando ou tirando onda com sua cara... Você só acabou de entrar, é normal não saber de tudo, nem eu sei tudo ainda... Mas eu já te falei que você é bom, você vai aprender tudo... Eu quero te ensinar tudo... — Milena falou e conseguiu acalmá-lo.
— Bom, vamos descer para resolver isso. Em casa a gente conversa melhor — Disse-lhes.
— Não vou descer. — Pontuou meu filho.
— Filho, por favor... — Tentou Juh.
— Não vou, mamãe. — Falou novamente, cruzando os braços.
— Kaique, você se machucou e precisa cuidar disso. Lembra que eu disse que estou cansada? Eu estou mesmo e, mesmo assim, recolhi a paciência que eu não estou tendo para te trazer aqui pensando no seu cuidado.
Ele ficou em silêncio.
— Não vai descer? — Perguntei.
Kaká acenou que não com a cabeça. Milena tentou convencê-lo, mas ele decidiu assim.
— Tá bom então, eu resolvo em casa... Só não ache que esse mau comportamento não terá consequência. — Finalizei e fomos em silêncio por todo o caminho.
Assim que chegamos, Juh me chamou de canto.
— Amor... Deixa que eu corrijo, você não tá bem para passar por mais estresse hoje... — Ela disse.
Fiquei pensativa e... Júlia tinha razão. Eu poderia pesar a mão e Kaique não tinha culpa alguma de tudo que eu estava passando naquele momento. Ter essa percepção não me fez tão bem. Na verdade, ultimamente nada estava caindo legal.
Me senti culpada por existir a probabilidade de cometer alguma injustiça com meu filho. Comecei a questionar minhas reações, enquanto me higienizava e separava os materiais, e percebi que era mais uma coisa que eu deveria tomar cuidado dali para frente: não deixar que meu atual estado influenciasse nas minhas ações com quem me rodeia. Mesmo sem querer, por impulsividade, poderia ter agido de maneira errada, exacerbada, deixando de lado a compreensão que sempre ando de mãos dadas com quem não tem culpa de nada do que estou vivendo. Era como se tivesse falhado em um instinto que geralmente é natural, como se eu não fosse mais suficiente para exercer o meu papel de mãe. E, mesmo sabendo que Juh notou isso e conseguimos evitar, essa reflexão não me deixou em paz.
Exagero... Talvez pareça, neste exato momento em que eu escrevo também enxergo assim, porque de certa forma, era mesmo.
Exagero porque eu estava vivendo em um pico de estresse, onde até o menor problema se transformava rapidamente em uma tempestade. Um simples evento do dia a dia, mas, devido ao acúmulo, minha mente começava a amplificar esses pequenos incômodos, criando uma sensação de caos e descontrole. Meu emocional estava sobrecarregado, fazendo com que qualquer pequena coisa se tornasse algo gigantesco, gerando um estado de bagunça interna em que me sentia impotente e sobrecarregada na maior parte do tempo.
— Amor, já conversei com ele, tirei o futebol como a gente combinou — disse Juh ao me abraçar.
Eu já havia esquecido o que estava fazendo ali.
— Vamos comigo... — A chamei após alguns selinhos.
Kaique estava sentado no sofá balançando um dos pés de forma frenética, aparentemente nervoso.
Assim que sentei ao lado dele, carinhosamente recebi um abraço.
— Desculpa, mãe — Ele pediu, em tom melancólico.
— Desculpo... Não faz mais esse tipo de coisa, você já é um rapazinho... Fica feio... — Falei e ele ia confirmando com a cabeça.
Dei um beijo no topo da cabeça e pedi que ele sentasse, expliquei como ia fazer a drenagem e vi o bichinho ficando com medo.
— Não vai doer, amor... Eu acho... — Disse-lhe Juh, que logicamente não o tranquilizou.
— Ahhh, vai doer um pouquinho, sim... Se fosse no hospital, teria um anestésico, mas aqui... Só tem carinho de mamãe, serve? — Perguntei e ele soltou um risinho tímido.
Limpei a orelha, que agora estava bem mais inchada, e comecei a aspiração. Comprimi o máximo que consegui, enquanto Kaká chorava.
— Pronto, pronto, pronto... Agora vamos fazer uma compressa e vai parar de doer rapidinho — Falei e mostrei a seringa para ele.
— Mãe, a senhora não é médica de verdade, não é? — Milena me perguntou, com um olhar confuso.
Eu entendi basicamente o que ela queria dizer, mas resolvi brincar.
— Milena tá me humilhando! — Falei, imitando o jeito que Kaique havia falado anteriormente, e eles riram.
— Não, não, não... A senhora não é médica dessas coisas, só de cabeça — Minha filha se explicou.
— Deve ser porque a orelha fica na cabeça, ué — Respondeu Kaká, foi a primeira vez que ele interagiu com ela desde o carro.
Juh e eu rimos, e eles não estavam entendendo.
— Isso aqui qualquer pessoa faz, até o pessoal da sua academia deve fazer quando acontece com os adultos. O certo é procurar um hospital, né? Mas se popularizou dessa forma. — Expliquei.
— Huuuum, mas a senhora é médica de conversar com as pessoas, não é? — Kaká perguntou.
Eu achei fofo o interesse repentino na minha profissão e tentei explicar de forma lúdica para eles.
— Imagine que nossa mente é como uma casinha, cheia de cômodos e muitos brinquedos. Às vezes, dentro dessa casinha, algumas coisas podem ficar bagunçadas ou um brinquedo pode quebrar. Aí, a mamãe, como uma amiga muito especial, vai lá visitar e ajuda a consertar e organizar os brinquedos, deixando tudo em ordem novamente para que a pessoa se sinta bem novamente. Converso com os amigos para entender o que está acontecendo e, se for preciso, dou um remedinho que ajuda a deixar a mente mais leve, forte e saudável, igual um remédio para dor de cabeça, entenderam? — Perguntei, finalizando, e as crianças me olhavam encantadas, não só elas, a mãe delas também.
— Huuuum, que tal um banho? — Perguntou Juh, e eles foram correndo.
— Cuidado! — Alertei, mas nem me deram bola.
— Nossa, amor... — Júlia subiu em cima de mim e me beijou. — Você explicou tão perfeitinho — me deu um selinho. — Achei lindo! — E concluiu, encaixando seu rosto no meu pescoço.
Eu estava gostando tanto daqueles beijinhos, queria que ela continuasse, mas talvez não fosse o melhor momento.
— Sabia que eu te amo? — Perguntei e fomos deitando, de forma bem desengonçada, mas incrivelmente confortável.
Senti a necessidade de partilhar meus últimos pensamentos. Eu não estava contando tudo que sentia para a gatinha, nem acho correto que isso seja feito, mas era algo que podia atingir diretamente o nosso relacionamento e também a minha relação com nossos filhos. Eu sabia que precisava resgatar a capacidade de parar e avaliar as situações com mais clareza antes de reagir, se eu conseguiria sempre, já eram outros quinhentos.
Quando falei sobre a minha confusão e minhas inseguranças, a garota, a menina, a mulher mais incrível do meu mundo me mostrou que o copo estava meio cheio e não meio vazio.
— Você está esquecendo de enxergar o lado bom, amor... Hoje nós conseguimos evitar, não aconteceu nada que não deveria. Kaique fez uma birra tola e recebeu o castigo por isso. Você não passou dos limites, nós duas decidimos como lidar com a situação e deu tudo certo. — E Júlia disse isso da forma mais tranquilizante possível.
Era um fato, eu estava me preocupando demais, fazendo de um pingo d'água uma tempestade. Meu sistema nervoso, já em estado de alerta devido ao estresse, ativou um padrão automático de pensamento que não me permitiu uma análise mais racional ou equilibrada da situação, me fazendo enxergar gravidade em uma situação cotidiana.
— Catastrofização — Falei, um pouco desligada, tentando raciocinar.
Juh me olhou sem entender por um tempo, mas assimilou bem rápido.
— Para de se analisaaaaaaar! — Ela disse, sacudindo meu rosto.
Eu ri da reação dela, que foi corretíssima, e também porque... Ahhhh, eu gostei de "ter" algo mais palpável nas mãos!
— Queria enfiar minha cabeça em um balde com gelo — Falei, ao senti-la fervilhar.
— Tenho uma ideia melhor... — Juh disse misteriosamente e me levou para o quarto.
Óbvio, claro e evidente que eu fui animada, jurando que minha gatinha ia me jogar na cama e arrancar minha roupa, contudo, ela me convidou para um banho. Enfim, pelo menos eu ia estar despida e ela também.
Brincadeiras a parte, foi um banho bem geladinho, que é como uma declaração de amor, visto que Júlia odeia água fria, mas ela sabe que me acalma e me alivia. Ela lavou o meu cabelo, secou, cuidou da minha pele e durante todo esse zelo comigo, nós conversamos, rimos e eu roubei uns beijos bem bons.
Minha cabecinha ficou leve, leve. Permaneci deitada um tempo, e Milena e Kaique bateram na porta. Falei para entrarem e eles pediram para assistir a um filme. Eu não estava a fim de descer mais, então coloquei o filme no quarto mesmo.
— Mãe, a senhora não tá com um pouco de dor de cabeça para a gente pedir pizza, não? — Perguntou Kaká, soltando um riso descarado.
— Não sei se você tá merecendo... — Brinquei.
— Mas eu tô dodói, olha como tá a minha orelhinha — E tirou a compressa para me mostrar. Agora ele tinha um olhar cheio de charme, quase que suplicante.
— Não tem um pingo de vergonha na cara, não é, moço? — Perguntei, e ele riu.
— E o meu bracinho? Todo quebradinho... — Tentou Milena também.
— Nem vem... — Fingi que estava irredutível, mas no fundo, nós três sabíamos que não.
— Por favor, por favor, por favor!!!! — Eles começaram a pedir juntos, com as mãos postas.
— Quer dizer... Milena mais ou menos, né?! — Falei, rindo.
— Olha, se a mamãe concordar, por mim tá ok, vão pedir para ela — Disse-lhes, e eles correram até Juh.
Eu sabia que ela concordaria, porém a confirmação veio pelos gritos de alegria. Os três subiram junto, festejando, acompanhados de Brad, que não estava entendendo nada, coitado.
A sensação que eu tinha era que a cabeça dele ficava em looping assim: "Que família doida eu caí, meu pai!" Mas eu também nunca achei ele muito certo, estava tudo bem.
Com uns 40 minutos do pedido feito, começamos a discutir quem iria pegar a pizza. Geralmente, sofro a injustiça de ter que ir pegar sempre, então fui a primeira a ser indicada.
— Com o cabelo assim? Vou assustar não só o entregador, mas o porteiro e os vizinhos — Me justifiquei, meu cabelo estava seco, nas alturas.
— Se eu for, as pizzas caem — Falou Mih, e nós rimos.
— Sobraram vocês dois... — Disse, em tom irônico.
— Eu estou dodói, mamãe — Kaká falou, convencido.
— Eu vou, eu vou... — Confirmou Juh, sem ter para onde correr.
E ela foi. Quando voltou, os guris, lógico, foram os primeiros a atacar a pizza.
Brinquei que a pizza estava parecendo eles dois, faltando um pedacinho aqui e outro ali. A gente mais conversou do que assistiu, e foi uma noite divertida.
Em dado momento, rolou um quebra-pau no filme, a gente não fazia ideia do porquê. Milena ficou de pé na cama e disse:
— Quando eu tirar esse gesso, aquele bobão que fez isso contigo vai sofrer, Kaká!
— Que história é essa? — Juh perguntou.
— No tatame, mamãe, eu vou resolver no tatame — Ela respondeu, convencida.
— Não estou gostando desse papo... — Falei.
— Não vou fazer nada demais, só vou pedir para rolar com ele... — Me respondeu, tranquilamente.
— Acho que vou começar a assistir melhor esses treinos, conversar com o professor se esse tipo de comentário é correto... — Disse-lhe, e ela apenas sorriu.
— Mas eu só vou defender o meu irmão — Mih rapidamente tentou se explicar.
Olhei para Kaique buscando a reação dele, e o bichinho já estava dormindo.
— É melhor você ir dormir também, prefiro acreditar que seja o sono usando sua boquinha — Falou Juh.
E Mimi encostou a cabeça no meu braço.
— Esquece essa história de vingança, tá? Aconteceu e a gente já resolveu... — Falei.
— A senhora acha que vai ficar feia depois? — Me perguntou.
— Eu acho que fiz um bom trabalho, apesar de não ser meeeedica, médica — Brinquei, e ela sorriu.
Júlia também apagou, e fiz cafuné na cabecinha da minha filha até que ela caísse no sono. Nem sei quando dormi, mas, no meio da madrugada, fui obrigada a carregá-los para os seus quartos. A cama é enorme, porém o mal dormir desses meninos, sempre fora do comum, e agora com um pouco mais de altura, piorou.
Essas pequenas interações cotidianas melhoravam absurdamente o meu dia, mesmo quando surgiam situações não tão agradáveis. Júlia, Milena e Kaique me proporcionavam acolhimento, carinho, momentos engraçados e boas risadas. Eles são o meu abrigo, meu refúgio e minha alegria, e eles conseguiam tornar meus dias mais leves.