*Ponto de vista do Túlio*
O sol estava se pondo, pintando o céu de tons alaranjados e roxos, enquanto a água do rio refletia suavemente a luz do fim de tarde. Eu estava caminhando em direção ao ponto onde o rio se alargava, levando comigo a sensação de que precisava de algo mais naquele dia. Miguel estava comigo, como sempre, quieto e observando os arredores. Ele parecia em paz, mas algo dentro de mim estava em desordem. Uma turbulência que eu não sabia mais como esconder.
Quando chegamos ao rio, tiramos nossas roupas e mergulhamos na água fria. O contato com a água gelada foi o primeiro alívio para a tensão que eu sentia. A correnteza estava tranquila, e, ao entrar mais fundo, eu me senti como se pudesse limpar minha alma, como se a água pudesse purificar não só o corpo, mas também a mente.
— Sabe, Miguel... tem um monte de coisa na minha cabeça ultimamente— falei, a voz baixa, quebrando o silêncio. A água fazia ecoar o som das minhas palavras, e eu fiquei olhando para as ondas suaves.
Miguel virou a cabeça para me olhar, e seu olhar estava atento. Ele sabia que algo estava pesando no meu peito, mesmo sem eu precisar dizer. Ele não dizia nada, mas seus olhos eram como uma porta aberta, dispostos a me ouvir.
— Eu... eu fui um idiota. Eu sei disso agora.— Comecei a falar, sem conseguir me conter. — Eu sempre fui tão fechado, tão preconceituoso. Eu falava mal das pessoas, julgava sem saber, fazia piada de quem não se encaixava nos padrões que eu acreditava serem certos. E tudo isso... tudo isso estava errado.
Fui me afastando um pouco da margem, flutuando lentamente na água, sentindo o peso das minhas palavras se esvaindo na correnteza. Miguel se aproximou um pouco mais e, com um gesto silencioso, me indicou para que falasse mais, me oferecendo um espaço seguro.
— Eu via vocês, André e Eduardo, e não entendia...— continuei, minha voz carregada de um arrependimento que me fazia querer me afogar naquele rio. — Vocês sempre juntos, sempre felizes. Eu vi aquilo e, no fundo, achava que era errado. Eu via a maneira como olhavam para os outros, e me sentia incomodado, como se aquilo fosse algo fora do lugar. Mas... eu vejo agora, Miguel... vejo o que eu estava fazendo.
A água estava fria, mas parecia que o calor da vergonha me consumia. Miguel nadou um pouco mais perto de mim, ficando ao meu lado, e colocou uma mão em meu ombro.
— Túlio...— Ele falou com calma, seu tom sempre suave. — Não é fácil admitir os erros, mas isso já é um passo importante. O que importa é que você percebeu, e agora você tem a chance de mudar, de ser melhor.
Ele olhou nos meus olhos, e suas palavras, apesar de simples, pareciam carregar um peso que eu precisava ouvir. Eu estava realmente começando a mudar, a perceber que tudo o que eu construí até aquele momento, com ódio, preconceito e distância, era um erro. E agora, a dúvida que me rondava era: como eu poderia me redimir?
Fiquei em silêncio por um tempo, sentindo a água envolver meu corpo e a tranquilidade que Miguel parecia transmitir. Mas a verdade era que, mesmo com ele me oferecendo conforto, uma parte de mim ainda sentia o peso da culpa. Olhei para ele, ainda absorto nos meus pensamentos.
— Eu não sei se posso mudar, Miguel. Sinto que... não mereço ser perdoado. — A dor era mais forte do que eu imaginava.
Ele me olhou de forma intensa, e dessa vez não falou nada. Ele se aproximou mais e, antes que eu pudesse entender, ele me beijou. Suavemente, com a mesma intensidade com que suas palavras haviam tocado meu coração. O beijo, inesperado, tirou o peso de dentro de mim, como se, naquele simples gesto, toda a angústia fosse diluída.
Quando ele se afastou, ele sorriu com um olhar reconfortante.
— Você já está mudando, Túlio. Não é o que você fez no passado que importa, é o que você faz agora.— Ele disse com suavidade.
Eu fiquei parado, sentindo a água bater em meu corpo, tentando absorver tudo o que estava acontecendo. Eu nunca pensei que seria capaz de mudar, que seria capaz de aceitar a mim mesmo, mas ali estava Miguel, me ajudando, me fazendo ver que eu tinha o direito de ser uma pessoa diferente.
— Obrigado, Miguel. Eu não sei o que faria sem você.— Eu disse, agora com um sorriso sincero no rosto. Eu me sentia mais leve, mais em paz.
Miguel me olhou, e a forma como ele sorriu fez meu coração bater mais rápido. Era como se a confusão que eu sentia tivesse se dissipado naquele beijo, naquela conversa. Ele estava certo.
O beijo de Miguel ainda queimava nos meus lábios, e eu estava tentando processar tudo o que acabara de acontecer. O silêncio se instalou entre nós, mas não era um silêncio desconfortável. A água corrente, que fluía serenamente ao redor de nós, parecia ser o único som que quebrava a quietude do momento. Miguel, agora com os pés fixos no fundo do rio, me observava com um olhar suave e determinado. Ele não disse nada, mas eu sabia que ele esperava que eu falasse, que eu me abrisse. Ele sempre foi assim: paciente, calmo e disposto a ouvir.
Tirei os olhos da água e encarei Miguel, que estava bem na minha frente, os cabelos molhados caindo sobre a testa e os olhos brilhando com uma sinceridade que me fez sentir um turbilhão de emoções.
— Miguel...— Comecei, ainda com a voz um pouco trêmula, mas com uma necessidade imensa de me abrir. — Eu... não sei o que pensar sobre isso, sobre você e sobre mim. Tudo é tão novo, tão... confuso.
Miguel me olhou com empatia, e então ele fez algo que me tocou profundamente. Ele não interrompeu. Ele apenas esperou, com paciência, até que eu me sentisse pronto para continuar.
— Eu... não esperava isso, Miguel. Não esperava que... que algo assim acontecesse, sabe?— Dei uma risada nervosa, sentindo o peso da confusão em cada palavra. — Eu gosto de você!
As palavras saíram mais pesadas do que eu imaginava. Havia uma dor na minha garganta, como se eu tivesse soltado uma verdade que me acompanhava há muito tempo. Miguel continuou me olhando, mas seu olhar não era de julgamento. Era de compreensão. Ele deu um passo mais perto de mim, e dessa vez, sua mão tocou levemente meu braço, o gesto simples, mas cheio de significado.
— Túlio...— Miguel começou, sua voz baixa, mas firme. — Eu entendo, cara. Eu sei que você estava perdido. E sei também que a ideia de tudo isso — de nós — pode ser assustadora, mas... eu só quero que você saiba que eu estou aqui. E eu... eu sinto o mesmo por você.
Eu quase não consegui respirar. A confissão dele me atingiu como um golpe, não de dor, mas de uma felicidade inesperada, algo que eu não tinha coragem de imaginar. Miguel sempre teve essa maneira de ser simples e sincero, sem rodeios, sem complicação. Ele me olhava nos olhos com a mesma tranquilidade que ele sempre teve, mas dessa vez havia algo mais. Algo profundo.
—Você sente... o mesmo? — Eu gaguejei, quase sem acreditar.
Ele assentiu, sem hesitar. O sorriso dele se alargou, mas agora havia uma vulnerabilidade que eu nunca tinha visto antes. Ele estava ali, naquele rio, comigo, e parecia tão seguro de si, tão disposto a me esperar, a me dar espaço.
— Eu sei que tudo isso é novo para você, Túlio. Eu não quero forçar nada, eu só... só quero que você saiba que estou aqui. Quando você estiver pronto, eu vou estar ao seu lado. Mas não se pressiona. Vai com calma.
As palavras dele me tocaram de uma maneira que eu não sabia como expressar. O que ele estava me oferecendo era algo tão puro, tão genuíno, que eu me senti envergonhado pela minha própria inexperiência. Eu nunca soube o que fazer com algo assim.
— Eu não sei como lidar com isso, Miguel. Nunca fiz nada disso antes... nunca pensei que fosse sentir isso por alguém como você.— Eu admiti, meu tom mais vulnerável do que eu queria. — A verdade é que eu estava tentando me convencer de que podia esquecer... esquecer de você. Mas... a cada dia que passava, eu percebia que não podia. E, depois de tudo, isso me fez sentir ainda mais confuso.
Miguel se aproximou mais e, dessa vez, ele me abraçou, com um abraço apertado, mas cheio de cuidado.
— Eu entendo. E você não precisa entender tudo de uma vez. Só me dá tempo, e eu vou te ajudar a descobrir o que você sente. — Ele sussurrou, com uma voz suave, quase como se fosse uma promessa.
Eu me deixei envolver naquele abraço, me sentindo mais tranquilo, mas ao mesmo tempo, com uma sensação de inquietação que não sabia de onde vinha. Miguel tinha razão. Eu não podia forçar nada. Era preciso ir com calma. Eu ainda estava me conhecendo, ainda estava me aceitando, e o que quer que fosse que existisse entre eu e Miguel, eu sabia que não poderia ser apressado.
Nos afastamos um pouco, e o silêncio voltou a tomar conta de nós dois, mas não um silêncio desconfortável. Era um silêncio de entendimento, de aceitação. A água do rio continuava fluindo, trazendo uma sensação de paz que, aos poucos, me invadia.
— Eu só não queria ter perdido tanto tempo.— Eu disse, quebrando o silêncio mais uma vez.
Miguel olhou para mim e deu um sorriso suave.
— Você não perdeu tempo, Túlio. Você estava no seu caminho. E agora você está pronto para seguir em frente.
E, pela primeira vez, senti que talvez fosse verdade. Talvez eu tivesse demorado para chegar até aqui, mas eu estava finalmente pronto para tentar. E, com Miguel ao meu lado, talvez fosse mais fácil do que eu imaginava.
O dia estava se apagando, e nós ficamos ali, na beira do rio, com um silêncio confortável entre nós, mas agora não mais confuso. Eu sentia que estava começando a entender o que tudo isso significava. Eu e Miguel. Talvez houvesse algo mais do que eu imaginava. Algo que só o tempo e nossa confiança poderiam revelar.
Continua...