Minha cabeça dói. Parece que um trator passou por cima de mim.
Abro os olhos devagar e vejo um teto de madeira. O cheiro de café forte invade minhas narinas. Tento me mover, mas um peso gigantesco parece ter grudado no meu corpo.
— Ele tá acordando! — a voz de Túlio ecoa ao meu lado.
Ouço passos apressados e, de repente, Eduardo surge no meu campo de visão, de braços cruzados e cara de poucos amigos.
— Se acovardou de novo, hein?
— Quê? — Minha voz sai fraca.
— Desmaiou que nem um saco de batatas. De novo. — Ele revira os olhos.
— Eu desmaiei?
— Depois que o Raimundo surtou com a história do galo encantado.
— Nossa… — Tento sentar, mas minha cabeça gira. — Então não foi um pesadelo?
— Infelizmente não.
— A gente achou que você tava morto! — Túlio se joga numa cadeira ao lado da cama. — Eu até pensei em dividir suas roupas…
— Seu desgraçado!
— Bom, se tá vivo, levanta. Porque tem trabalho. — Eduardo puxa meu cobertor de uma vez.
— Ah, não! Hoje não!
— Hoje sim. O galo sumiu, mas as vacas continuam cagando, as galinhas continuam botando ovo e os porcos continuam fedendo.
Solto um longo gemido e me arrasto para fora da cama, ainda me sentindo meio zonzo.
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A manhã começa com a gente levando ração pras vacas. Parece fácil, mas não é.
O saco de ração pesa uma tonelada e, no meio do caminho, um dos bois decide que eu sou uma ameaça e começa a correr na minha direção.
— AI, CARALHO!
Saio correndo, jogando o saco no chão, enquanto Eduardo e Túlio morrem de rir.
— Para de correr! Ele só quer brincar! — Raimundo grita.
— EU NÃO QUERO BRINCAR!
Pulo por cima da cerca no último segundo, enquanto o boi para e me encara como se estivesse debochando.
— Tá amarelado, hein, André! — Eduardo debocha.
— Vai se ferrar!
Passamos as próximas horas limpando o curral, espalhando feno e tentando não ser pisoteados. Depois disso, Raimundo nos arrasta para outro trabalho infernal: consertar um pedaço da cerca que estava caindo.
— Eduardo, segura essa madeira aí!
— Segura você!
— Você que tá mais perto, porra!
— E você que tem dois braços!
— SEUS MERDAS, ALGUÉM SEGURA ESSA MADEIRA LOGO! — Raimundo explode.
Eduardo me encara, eu encaro ele, e, no final, ninguém segura nada. A madeira cai e quase acerta Túlio.
— Filhos da puta!
Depois de muito xingamento, suor e farpas no dedo, finalmente terminamos. Mas claro que a paz dura pouco.
Enquanto voltamos para casa, Eduardo começa a implicar.
— O que foi aquilo mais cedo, hein? Fugindo de boi? Não sabia que você era tão cagão.
— Ah, Eduardo, vai tomar no cu.
— Ihhh, estressadinho!
— Você não faz nada e ainda quer falar merda.
— Eu não faço nada? Eu faço muito mais que você!
— Ah, claro! Sentado na sombra, né?
— Pelo menos eu não desmaio por causa de um galo desaparecido!
Isso é a gota d’água. Me viro e empurro Eduardo no peito.
— Para de encher o saco!
Ele me empurra de volta.
— Ou o quê?
— Ou eu vou te enfiar a porrada!
Túlio pula no meio.
— CALMA, CALMA! Não sejam idiotas!
Mas já era tarde. Num segundo, Eduardo me soca no ombro. No outro, eu dou um chute na canela dele.
O resultado? Nós dois caímos no chão, rolando na poeira, tentando nos matar enquanto Raimundo aparece correndo.
— VOCÊS TÃO DOIDOS?!
Ele separa a briga na base do grito e da força.
— Dois marmanjos se batendo no meio do terreiro, parecem duas crianças!
Eduardo e eu ainda trocamos olhares cheios de ódio, mas estamos cansados demais para continuar.
— Agora chega de frescura e voltem pro trabalho! — Raimundo rosna.
E assim, sujos, machucados e irritados, voltamos à rotina.
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O dia segue sem mais tragédias até que, ao entardecer, Raimundo aparece correndo, esbaforido.
— Venham ver isso! Agora!
O desespero na voz dele nos faz largar tudo e correr atrás. Ele nos leva para uma parte isolada da propriedade, perto da mata fechada.
— Olha ali…
No meio da vegetação, parcialmente coberto por folhas e terra, há um corpo.
Congelo no lugar. Túlio fica pálido. Eduardo franze a testa.
— Quem é esse? — minha voz sai baixa.
Raimundo engole seco.
— Eu não sei…
O homem está de bruços, roupas sujas e rasgadas, um braço esticado como se tivesse tentado rastejar para fora da mata.
— Ele… ele tá morto? — Túlio gagueja.
Eduardo se aproxima com cautela e cutuca o corpo com um galho.
O silêncio paira no ar. Meu coração martela no peito.
Então, o corpo se mexe.
Solto um grito e dou um pulo para trás. Túlio faz o mesmo. Eduardo segura a respiração.
Lentamente, o homem vira o rosto na nossa direção. Ele está ferido, fraco, mas vivo.
Seus lábios se abrem, e com uma voz rouca, ele sussurra:
— Me… ajudem…
Aterrorizado, olho para os outros.
Ninguém sabe o que fazer.
Mas uma coisa é certa: o dia que já parecia estranho está prestes a ficar muito pior.
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O homem é trazido de volta para a casa, com Túlio tentando aparar seus ferimentos. Raimundo, que já estava nervoso, começa a dar ordens, com a autoridade de quem nunca tem um momento de descanso.
— Acelera, galera! Preciso de mais lenha, mais água e alguém vai cuidar desse homem!
Enquanto isso, Eduardo se aproxima de mim, rindo baixinho.
— Acho que tu perdeu o posto de 'garoto bonito' por hoje, hein? Esse aí tem cara de quem manda no pedaço.
Olho para o homem, que parece estar se recuperando com a ajuda de Túlio. Ele é forte, de altura mediana, mas tem um charme natural, daqueles que não pedem licença. E, para minha surpresa, ele parece estar me encarando com um interesse que não sei decifrar. Eduardo continua, rindo.
— Cuidado, André. Esse aí pode estar interessado em "conhecer" a fazenda de mais perto.
Dou um tapa na sua nuca.
— Para de falar besteira, Eduardo.
Mas uma parte de mim não consegue deixar de pensar na estranha conexão que acabou de se formar ali, naquele momento. Eu sou só um cara normal, mas aquele homem parece ter algo de especial.
Raimundo, ainda sem saber o que fazer com a situação, começa a olhar para o novo homem de um jeito curioso.
— Eu não vou pagar pela visita de ninguém, hein!
A conversa continua, com o clima tenso se espalhando, e os desentendimentos entre eu e Eduardo não diminuem.
À medida que o homem se recupera, ele passa mais tempo conversando com Túlio e, mais recentemente, até com Raimundo. Eles parecem ter um entendimento natural, como se já se conhecessem de algum lugar. Enquanto isso, eu e Eduardo tentamos esconder nosso desconforto, mas é impossível não notar o jeito que ele olha para mim.
Num momento em que eu e Eduardo estamos lavando as ferramentas do dia, o homem chega até nós com um sorriso simpático.
— Obrigado por me ajudarem, de verdade. Não sei o que teria feito sem vocês.
Eu tento sorrir, mas Eduardo responde antes de mim.
— Não precisa agradecer. Estamos aqui para ajudar quem precisa. — Ele se aproxima um pouco demais do homem, como se quisesse chamar atenção para si. O olhar de Eduardo é de pura competitividade, mas o homem não parece se importar. Ao contrário, ele me lança um sorriso, o que faz Eduardo olhar para o lado, desconfortável.
— Eu sou Lucas, por acaso vocês têm alguma dica sobre como lidar com as vacas por aqui? Eu vi uma hoje e… como posso dizer… ela não me deu a menor bola.
O jeito que ele sorri para mim faz com que eu me sinta estranho, mas Eduardo não perde tempo.
— Ah, as vacas? Você tem que ser firme com elas, sabe? Não adianta dar mole, elas sabem quando você está com medo. — Eduardo quase dá uma risadinha, mas a forma como ele fala é um pouco tensa, como se estivesse tentando mostrar superioridade.
— Hum… — Lucas olha Eduardo, e então me encara. — Acho que vou precisar de mais ajuda, então, né?
Eduardo bufou e saiu para pegar algo na cozinha, murmurando algo sobre "vacas de merda". De repente, fiquei sozinho com Lucas, e a conversa entre nós virou uma troca de olhares, como se o mundo inteiro tivesse desaparecido. Eu até me esqueço por um momento de onde estou, e é Lucas quem quebra o silêncio.
— Então… o que você faz por aqui, André?
Eu penso um pouco antes de responder, mas a minha resposta sai rápida demais:
— Ah, faço de tudo. Cuido da fazenda, mas também tento não enlouquecer no processo.
Lucas ri, mas não é uma risada qualquer, é uma risada suave, cheia de empatia.
— Eu entendo, deve ser bem difícil, né? Mas acho que deve ter seus momentos bons também.
De repente, Eduardo retorna, e o clima muda instantaneamente. Ele parece ter ficado mais irritado, como se tivesse notado a troca de olhares entre nós.
— Eu não sei, acho que as vacas já estão mais felizes do que o André com esse tal de Lucas. — Ele força uma risada, e vejo claramente a raiva nos olhos dele.
Lucas, percebendo a tensão, muda de assunto rapidamente.
— Enfim, preciso me acomodar melhor por aqui. Já que estamos todos na mesma página, quem sabe não marcamos de fazer uma pequena rodada de pesca depois?
O clima entre Eduardo e eu fica ainda mais pesado. Eu, tentando ignorar a situação, vejo que ele se afasta, claramente incomodado.
Enquanto ele vai embora, Lucas me lança um olhar cúmplice, mas eu não sei mais o que pensar. A tensão está no ar e, mais do que nunca, me sinto dividido entre a amizade e as inseguranças de Eduardo.
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Nos dias seguintes, Lucas começa a ajudar com os trabalhos no campo, mas sempre acaba se aproximando de mim. Eduardo, por outro lado, fica cada vez mais insuportável. Ele começa a implicar, tentando me mostrar que é ele quem sabe mais sobre a vida rural. Em cada tarefa, ele tenta, sem sucesso, atrapalhar as tentativas de Lucas de se integrar.
Em um desses dias, quando estamos todos no campo consertando cercas, Eduardo começa a provocar, de novo.
— Puxa, André, que bom ver você tão atencioso com o Lucas. Parece que vocês viraram amigos rapidinho, hein?
O tom de sarcasmo é evidente, mas Lucas, sem perceber, sorri para Eduardo.
— Eu e o André estamos apenas tentando manter as coisas organizadas aqui. — Ele olha para mim e me dá uma piscadela.
A reação de Eduardo é imediata. Ele se vira para Lucas, com os olhos estreitados.
— Claro, claro. Mas você não pode confiar em tudo que ele diz… Ele tem um jeitinho… — Eduardo interrompe, fazendo questão de dar um sorriso malicioso.
Mas o que ele não sabe é que, no fundo, o jogo que ele tenta jogar, Lucas já percebeu.
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Os dias passaram, e a presença de Lucas no campo se tornou cada vez mais constante. Ele ajudava com os trabalhos pesados, mas sempre parecia encontrar um jeito de se aproximar de mim. Às vezes, parecia que Eduardo estava se afastando, como se ele fosse uma sombra atrás de mim, observando tudo, mas sem dizer nada.
Naquela tarde, depois de um longo dia de trabalho, estávamos todos reunidos na cozinha, tentando aproveitar um pouco de descanso. O clima estava tenso, e eu sentia como se houvesse algo não dito pairando no ar. Eduardo parecia mais quieto do que o normal, e, quando nossos olhares se cruzaram, vi algo nos seus olhos que não consegui interpretar.
Foi Lucas quem quebrou o silêncio, como sempre fazia.
— E aí, galera, o que acham de fazer um churrasco hoje? Acho que todo mundo merece uma pausa.
Todos concordaram, menos Eduardo, que apenas mexeu a faca no prato com mais força do que o necessário.
Quando Lucas saiu para pegar a carne na despensa, eu percebi que Eduardo ainda estava com a cara fechada.
— Eduardo, você tá estranho… — eu disse, tentando puxar conversa de um jeito leve.
Ele suspirou, olhando para o prato.
— Não sei, André… Eu só… Eu não sei mais o que pensar. Parece que sempre que você e o Lucas estão juntos, fica tudo mais fácil, né? Vocês dois, trabalhando juntos, rindo… Parece que ele tem mais o que eu posso oferecer. E isso… me deixa mal.
Eu fiquei em silêncio, tentando digerir aquelas palavras, que me pegaram de surpresa. Era raro Eduardo se abrir assim, tão vulnerável.
— Eu… não sabia que você se sentia assim. — Minha voz saiu mais baixa do que eu queria. — Eu gosto de você, Eduardo. Você sabe disso. Mas você tem que parar de pensar que precisa competir com ele ou com qualquer outra pessoa. Eu estou com você, não com ele.
Ele levantou os olhos e, pela primeira vez em dias, a expressão de ciúmes que ele carregava começou a desaparecer. Mas, ao invés de relaxar, ele se aproximou de mim, quase com um impulso.
— Eu sei que você está, André. Mas é difícil, sabe? Ver você tão à vontade com ele, como se… como se eu não fosse o suficiente.
O tom de sua voz estava carregado de insegurança, e eu pude ver o sofrimento que ele tentava esconder.
Sem dizer mais nada, me aproximei dele e coloquei minha mão na sua, sentindo a tensão nos seus músculos.
— Você é mais do que suficiente, Eduardo. Eu nunca precisei de mais ninguém além de você. — Respondi com firmeza, olhando em seus olhos.
Ele me olhou por um instante, e, em um gesto impulsivo, me puxou para perto. O silêncio entre nós dois se quebrou no instante em que nossas bocas se encontraram, como se o mundo todo tivesse se dissipado ao nosso redor.
O beijo foi lento, cheio de significado, como se ambos estivéssemos tentando transmitir tudo o que não dizíamos com palavras. Eu sentia sua respiração tremendo contra a minha, e eu sabia que ele estava se entregando a algo que tinha medo de admitir: ele precisava de mim tanto quanto eu dele.
Quando finalmente nos afastamos, seus olhos estavam molhados, e eu pude ver a vulnerabilidade que ele tanto tentava esconder.
— Eu… — ele começou, a voz embargada. — Eu não sei o que faria sem você, André. Desculpa por ser tão ciumento, por ter feito tudo parecer mais difícil do que realmente é.
— Não precisa pedir desculpas, Eduardo. Eu entendo. Eu também sou inseguro às vezes. Mas, acredite, você é tudo o que eu preciso. — Respondi, sentindo o peso de suas palavras me tocar profundamente.
Aquele momento de fragilidade foi como um alicerce para nossa relação. Eu sabia que ainda tínhamos nossos altos e baixos, mas, naquele instante, percebi que as palavras e os gestos de carinho eram o que realmente importavam. E, de alguma forma, isso nos aproximou ainda mais.
Enquanto o churrasco começava a ser preparado lá fora, eu e Eduardo ficamos ali, lado a lado, sentindo que, apesar das dificuldades, estávamos mais fortes juntos.
Continua...