SEXTA FEIRA
O almoço na casa de Mateus foi um contraste enorme com o que eu estava sentindo por dentro. As paredes claras, o cheiro de comida caseira e a música baixa de fundo davam a impressão de um ambiente tranquilo, quase acolhedor. Mas, dentro de mim, tudo parecia um turbilhão. A dor ainda pulsava no meu estômago pelos socos de Arthur, e as palavras dele ainda ecoavam na minha mente. Como ele poderia ser tão cruel? E o pior: o que eu deveria fazer agora?
Mateus parecia ter percebido que algo estava errado, mas não insistiu até o momento em que já estávamos na sala, terminando de comer. O silêncio entre nós dois estava carregado de tensão. Eu sabia que ele queria saber o que tinha acontecido, mas eu estava evitando o assunto, me protegendo. No entanto, naquele momento, algo dentro de mim quebrou. Eu não conseguia mais segurar.
Eu olhei para ele, respirando fundo, e a voz saiu fraca, quase como um sussurro.
— Mateus, eu… Eu não sei como te dizer isso, mas… Arthur… — minha voz falhou um pouco, e eu precisava engolir a seco antes de continuar. — Ele está me fazendo um inferno na escola. Ele me empurrou para dentro de uma cabine no banheiro hoje, me sufocou, me deu socos no estômago, e me ameaçou… Ele disse que vai tornar minha vida um pesadelo, que não vai deixar eu viver em paz. Disse que você se afastou dele por minha causa,e eu não sei o que fazer. Não sei como parar isso.
Eu olhei para Mateus e vi a reação dele. Seus olhos se abriram de surpresa, mas logo eles se encheram de raiva. A mudança em sua expressão foi instantânea, e eu pude ver a dor refletida em seu rosto, como se ele estivesse sentindo o que eu estava sentindo. Ele estava furioso.
— Isso não vai ficar assim, Pedro. — Mateus disse, com a voz cheia de determinação. — Não vou deixar esse maluco fazer o que bem entende com você. Eu vou resolver isso.
Eu olhei para ele, sentindo uma mistura de alívio e medo. Eu queria acreditar que Mateus poderia fazer alguma coisa, mas ao mesmo tempo, a ideia de que ele poderia se envolver e piorar ainda mais a situação me assustava. Mas, vendo a forma como ele estava agindo, com aquela firmeza em sua postura, eu sabia que ele estava decidido. E, por mais que isso me aterrorizasse, uma parte de mim sentia que talvez ele fosse a única pessoa capaz de me ajudar.
— Mateus, eu… — comecei a falar, mas ele me interrompeu, não querendo me ouvir.
— Não vai ser fácil, mas eu não vou deixar ele te machucar. Eu vou resolver isso. E, se ele tiver algum problema com isso, o problema vai ser dele, não seu.
Ele se levantou abruptamente, como se estivesse pronto para ir atrás de Arthur agora mesmo, mas logo se controlou. Seus olhos estavam queimando de raiva, e eu sabia que ele estava tentando se manter calmo, mas não conseguia esconder a indignação.
Eu não sabia se o que ele estava dizendo era algo que ele realmente poderia fazer ou se estava apenas tentando me dar algum tipo de consolo. Mas, de qualquer forma, as palavras dele me atingiram de um jeito inesperado. Eu estava começando a perceber que, talvez, eu não estivesse mais sozinho. E isso, de alguma forma, trazia um conforto, uma pequena faísca de esperança em meio a tanto sofrimento.
— Mateus, obrigado... — eu disse, minha voz quase quebrando. — Obrigado por estar aqui para mim.
Ele me olhou, o olhar agora mais suave, mas com a mesma determinação.
— Você não precisa me agradecer, Pedro. Eu vou te proteger, custe o que custar. E quando esse idiota perceber que mexeu com a pessoa errada, ele vai se arrepender.
Eu não sabia o que viria a seguir, mas uma coisa era certa: algo dentro de mim estava mudando. Eu não estava mais sozinho, e talvez, com a ajuda de Mateus, eu pudesse encontrar uma forma de seguir em frente e não deixar Arthur me dominar.
O almoço continuou, mas o peso da conversa ficou no ar. Eu sabia que, a partir daquele momento, as coisas seriam diferentes. E eu não tinha certeza do que isso significava para o futuro, mas, pelo menos, agora eu tinha alguém ao meu lado que realmente se importava.
E, talvez, isso fosse o suficiente para me dar forças para lutar.
A viagem até a minha casa foi silenciosa, com o ronco da moto preenchendo o ar entre nós. Eu me sentia um pouco aliviado por finalmente ter falado sobre o que estava acontecendo, mas, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de me perguntar sobre as ações de Mateus. Ele sempre esteve por perto, sempre fez parte do grupo, mas até hoje nunca tinha se oposto a Arthur ou mostrado o que estava sentindo. Agora, de repente, ele estava disposto a me ajudar, disposto a enfrentar o amigo dele para proteger alguém como eu.
Quando Mateus parou em frente à minha casa, o barulho da moto cessou e ele tirou o capacete, jogando o cabelo para trás, como sempre fazia. Mas, dessa vez, ele parecia diferente. A expressão dele estava carregada, como se ele estivesse tentando controlar algo, e eu percebi que estava com a mente cheia de perguntas que não podia mais deixar para depois.
— Obrigado pela carona, Mateus — disse, tentando disfarçar o que estava realmente pensando.
Ele me olhou por um momento, como se soubesse que eu tinha algo mais para dizer. Eu sabia que ele queria me ajudar, mas antes de entrar em casa, decidi perguntar o que realmente estava me consumindo.
— Mateus, eu preciso saber uma coisa — falei, minha voz saindo mais tensa do que eu esperava. Ele me olhou, ainda em pé ao lado da moto. — Por que você está fazendo isso agora? Quero dizer, por tanto tempo você ficou junto do Arthur, mesmo que fosse de um jeito diferente, e me tratava... bem, não da melhor forma. Por que a mudança de repente? Você sabia o que ele fazia, sabia de tudo, mas nunca fez nada antes. Por que agora, quando as coisas ficaram mais difíceis pra mim?
A pergunta saiu sem que eu pudesse segurar, e, assim que as palavras saíram da minha boca, eu senti uma mistura de frustração e insegurança. Eu queria entender, mas ao mesmo tempo, não queria forçar nada. Talvez eu só precisasse de uma explicação que me desse algum tipo de clareza.
Mateus ficou em silêncio por um momento, me encarando com uma expressão que parecia tentar encontrar as palavras certas. Eu sabia que ele estava refletindo sobre o que eu havia dito, pensando se deveria contar a verdade ou simplesmente manter as coisas como estavam.
Finalmente, ele suspirou e passou a mão pelos cabelos.
— Eu sei que não posso voltar atrás e corrigir tudo, Pedro — disse, com um tom mais baixo. — Mas, durante todo esse tempo, eu me senti meio preso... Sabe, eu estava sempre com Arthur, mas não sabia exatamente por que eu estava lá. Ele me fazia sentir que, se eu não estivesse ao lado dele, eu também seria alvo. Talvez eu estivesse com medo de ser isolado, de ser ridicularizado como você, mas eu não percebia o quanto estava errado até agora. Aí, eu vi o que ele estava fazendo com você e percebi que eu não sou como ele. Nunca fui. Eu só estava com medo de fazer algo diferente, mas agora eu vejo que estava fazendo a coisa errada, e não dá mais pra me esconder atrás disso.
Eu o olhei com mais intensidade, tentando entender o que ele estava dizendo. Era difícil acreditar que alguém como Mateus, tão próximo de Arthur e tão ciente das coisas, nunca tivesse parado para pensar em como aquilo estava afetando as pessoas ao redor.
Ele deu um passo à frente, colocando a mão no meu ombro com uma expressão mais sincera.
— Pedro, eu sinto muito por tudo o que aconteceu. Eu deveria ter visto isso antes. Deveria ter visto como Arthur estava te tratando e feito algo. Mas agora, eu não posso mais ignorar. Não vou deixar ele fazer o que quer com você, nem com ninguém. Eu não sei o que te motivou a me contar, mas eu vou fazer tudo o que eu puder para te proteger, mesmo que tenha demorado pra eu perceber. Eu me arrependo de não ter feito nada antes.
Eu fiquei em silêncio, absorvendo as palavras dele. Eu queria acreditar, mas também não sabia o que esperar. Por muito tempo, Mateus foi apenas mais uma figura na sombra de Arthur, e agora, de repente, ele estava tentando mudar tudo, tentando ser alguém diferente. Mas, ao mesmo tempo, a sinceridade nos olhos dele me dava uma pequena faísca de esperança. Talvez, ele realmente estivesse arrependido. Talvez, ele realmente quisesse fazer as coisas de maneira diferente.
Eu suspirei, mais aliviado do que eu pensava que ficaria.
— Eu não sei o que esperar disso tudo, mas... obrigado, Mateus. Sei que pode ter sido difícil pra você fazer isso, mas eu... — parei por um momento, não conseguindo continuar sem sentir uma leve pressão no peito. — Eu realmente espero que você não me deixe sozinho com isso. Eu não posso mais ficar sozinho nesse tipo de situação.
Mateus assentiu e, ao ver a vulnerabilidade nos meus olhos, ele deu um pequeno sorriso. A tensão parecia ter diminuído, e eu finalmente senti que talvez eu tivesse alguém com quem contar.
— Não vou te deixar, Pedro. Não mais.
O silêncio entre nós se estendeu por alguns segundos, mas era um silêncio diferente. Não havia mais aquela tensão pesada que me fazia querer correr para longe. Eu ainda estava tentando processar tudo o que Mateus tinha me dito, tentando entender se ele realmente estava se esforçando para ser alguém diferente, mas, de repente, algo inesperado aconteceu.
Mateus, que até então estava tão sério, fez algo que me pegou de surpresa: ele me abraçou.
O abraço foi repentino, mas forte. Suavemente, ele me envolveu nos braços, e, por um momento, tudo ao meu redor desapareceu. O mundo ao meu redor parecia desaparecer, como se aquele instante fosse único, apenas para nós dois. Eu não sabia o que pensar, não sabia o que dizer, mas eu me senti... seguro. Protegido, como nunca antes. O abraço foi tão genuíno, tão acolhedor, que senti uma onda de emoções me inundando.
Eu queria falar algo, perguntar por que ele estava fazendo isso, mas a verdade é que naquele momento, eu não queria pensar em mais nada. Eu só queria ficar ali, naquele abraço, sentindo a presença de Mateus. Era como se todas as minhas inseguranças e medos evaporassem naquele gesto, como se ele tivesse, de alguma forma, tirado o peso do mundo dos meus ombros.
Por fim, Mateus se afastou lentamente, seus olhos ainda fixos nos meus, mas dessa vez havia algo diferente neles. Algo mais suave, mais caloroso. Ele parecia aliviado, como se tivesse tomado uma decisão importante.
Antes de se afastar por completo, ele beijou minha testa. Foi um beijo tão simples, mas ao mesmo tempo tão profundo. Um beijo de cuidado, de carinho, e eu senti meu coração acelerar de forma inexplicável. Quando ele se afastou, parecia que o tempo tinha parado, e eu fiquei lá, parado, absorvendo o gesto, sem saber como reagir.
— Eu… eu vou embora, Pedro — ele disse, com um sorriso tímido, ainda com o olhar suave. — Mas não se esqueça, vou estar por aqui. Sempre que você precisar, é só chamar.
Eu fiquei parado ali, meu corpo ainda quente pelo abraço, minha mente rodando com o que acabara de acontecer. Mateus virou-se para a moto, e antes de subir, ele me olhou uma última vez.
— Cuide de si, Pedro. Até logo.
E então, ele foi embora, deixando um rastro de sensações que eu não conseguia entender completamente. Fiquei ali, sozinho, com o coração ainda batendo acelerado, como se estivesse em um daqueles momentos que não se sabe se é real ou um sonho.
Aquele beijo na testa, aquele abraço inesperado, tudo aquilo me deixou nas nuvens. Eu não sabia como processar o que sentia. Talvez fosse uma mistura de confusão e felicidade, ou talvez fosse algo que eu nunca havia experimentado antes. O que eu sabia era que, depois daquele momento, algo em mim tinha mudado. E eu não conseguia parar de pensar em Mateus.
Eu ainda estava lá, parado na frente de casa, absorvendo tudo o que tinha acontecido, tentando processar cada palavra, cada gesto. Mas logo que entrei pela porta e fechei atrás de mim, a realidade me atingiu com todo o peso que eu havia tentado ignorar.
A casa estava silenciosa, mas, de repente, ela parecia ainda mais vazia. Cada canto, cada objeto parecia me lembrar de algo que eu já não tinha mais. Quando minha mãe estava aqui, ela fazia tudo parecer menos pesado. Eu tinha um ponto de apoio, alguém para conversar, alguém que me entendia. Agora, eu estava sozinho de uma maneira que nunca imaginei que poderia ser possível.
Fui até o sofá e sentei, tentando respirar fundo. Mas não conseguia. A sensação de sufocamento foi tomando conta de mim, como uma onda prestes a me engolir. Eu olhava em volta e tudo parecia tão insignificante agora, tão solitário. O vazio que sempre estava ali, de alguma forma, agora se ampliava, me consumia por dentro.
Fechei os olhos, tentando me acalmar, mas foi quando as memórias começaram a surgir com força. Lembrei da minha mãe, com seu sorriso gentil, das vezes em que ela me acalmava quando eu estava preocupado, das conversas que tínhamos sobre a vida, sobre o futuro. Mas ela não estava mais aqui. O peso de sua ausência era esmagador, como se todo o ar fosse retirado dos meus pulmões.
E então veio o bullying. Lembrei do rosto de Arthur, das palavras cruéis, dos olhares desdenhosos, das risadas que me atormentavam todos os dias. Era como se cada ofensa fosse uma lâmina que cortava mais fundo, mais fundo ainda. Eu tinha tentado ser forte, tentado ignorar, mas agora, não conseguia mais segurar tudo dentro de mim.
Eu me encolhi no sofá, as lágrimas começaram a cair sem eu conseguir evitar. Eu queria ser forte, mas não era. Não agora. A pressão no peito era tão intensa, como se eu estivesse sendo esmagado por todo o peso do mundo, e o ar parecia denso demais para eu conseguir respirar direito.
Levantei-me rapidamente, os olhos turvos de lágrimas, e corri até o quarto. Fechei a porta atrás de mim, mas, mesmo assim, o som do silêncio era ensurdecedor. Eu caí no chão, de joelhos, com o peito apertado, sentindo cada batida do meu coração como um golpe. Minhas mãos tremiam e eu tentei abafar o choro, mas não conseguia. As lágrimas eram implacáveis, uma após a outra, caindo sem cessar.
Meu peito se contraiu de dor. Eu não sabia como lidar com tudo aquilo. A saudade da minha mãe, a solidão que me consumia, o bullying que me corroía, o vazio que parecia nunca ter fim... Era demais para mim. Eu só queria gritar, mas minha voz estava presa, meus pensamentos em pedaços. Tudo o que eu queria era que alguém me abraçasse e dissesse que tudo ficaria bem. Mas eu estava sozinho.
Chorei mais, sem parar, até que minha visão ficou embaçada e minhas forças começaram a se esvair. Eu não tinha mais o controle da situação. O medo de ser engolido por esse turbilhão de sentimentos era tão grande que eu mal conseguia respirar. Eu queria que tudo fosse diferente. Eu queria voltar no tempo, não sentir mais essa dor, não enfrentar mais esse vazio tão constante. Mas, no fundo, eu sabia que não poderia.
O choro foi aos poucos diminuindo, mas a sensação de impotência e tristeza não passava. Eu me arrastei para a cama, ainda sentindo os batimentos acelerados e as lágrimas que teimavam em cair. Eu estava exausto, mas não conseguia relaxar. O peso de tudo ainda estava lá, e eu não sabia como sair disso. O medo de não ser capaz de lidar com tudo o que estava acontecendo me deixava ainda mais apavorado.
Eu sabia que, no fundo, nada ia mudar até que eu enfrentasse tudo. Mas, por agora, eu só queria descansar, fechar os olhos e tentar esquecer, mesmo que por alguns segundos. Porque, naquele momento, era tudo o que eu conseguia fazer.
Continua ...
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