SÁBADO
O cursor piscava na tela, e eu piscava de volta, tentando ignorar o aperto no estômago. O trabalho de geografia estava quase pronto, mas minha cabeça insistia em lembrar do que aconteceria se não terminasse a tempo.
Gabriel e Thales deixaram bem claro que se eu não entregasse tudo pronto na segunda-feira, eu ia me arrepender. Eles não precisavam detalhar o que fariam – a lembrança do soco na barriga ainda estava bem viva.
Respiro fundo, esfrego o rosto com as mãos e tento me concentrar. Desmatamento, poluição, mudanças climáticas… Tudo se mistura na minha mente, junto com o silêncio pesado da casa. Meu pai está trabalhando, como sempre. Estou sozinho, como sempre.
Pego o celular por impulso, sem saber bem o que espero encontrar. Talvez só precise de uma distração, qualquer coisa que me tire dessa espiral de ansiedade.
Uma notificação do Instagram me faz franzir a testa.
**Mateus:** *E aí, nerd. Bora correr no parque?*
Meu coração dá um pulo estranho. Mateus nunca me mandou mensagem antes. Desde a carona de moto e a cena no vestiário, eu vinha tentando entender o que exatamente ele queria comigo.
**Pedro:** *Tô ocupado…*
Quase envio só isso, mas hesito. Talvez se ele soubesse que eu estava atolado de coisa pra fazer, desistisse.
**Pedro:** *Fazendo um trabalho da escola.*
A resposta chega em segundos.
**Mateus:** *Deixa isso pra depois. Bora sair da toca um pouco. Te pego aí em 15 minutos.*
Quinze minutos?! Eu nem disse que ia!
**Pedro:** *Mas eu nem corro tanto assim, sou lento na maioria das vezes*
**Mateus:** *Ótimo, então vai ser divertido ver você sofrendo.*
Solto um riso pelo nariz, surpreso por estar sorrindo em um dia que tinha tudo pra ser uma merda. Olho para a tela, hesito por um segundo e, antes que possa mudar de ideia, digito:
**Pedro:** *Beleza. Vou me trocar.*
Meu coração bate mais forte enquanto me levanto e vou até o quarto procurar uma roupa. Ainda não entendo muito bem o que Mateus quer comigo… Mas, pela primeira vez em muito tempo, a ideia de sair de casa parece melhor do que ficar aqui sozinhoO vento fresco bate no meu rosto enquanto a moto de Mateus corta a estrada em direção ao parque. Minhas mãos estão firmes em sua cintura, não porque eu quero, mas porque ainda não confio totalmente nessa moto – e porque ele mandou eu segurar forte.
— Tá com medo, nerd? — ele grita por cima do barulho do motor.
— Cala a boca e foca na estrada! — respondo, apertando um pouco mais.
Sinto a risada dele vibrar no peito antes de acelerar um pouco mais, só para me provocar.
Quando finalmente chegamos, eu desço meio desajeitado, tentando recuperar a compostura. Mateus tira o capacete e bagunça o próprio cabelo, parecendo despreocupado como sempre.
— Você já tá ofegante antes de correr. Isso é preocupante — ele debocha.
— Eu devia ter ficado em casa — resmungo, mas no fundo sei que não queria ter ficado.
O parque está movimentado, com algumas pessoas correndo, casais andando de mãos dadas e crianças brincando no gramado. Mateus começa a alongar e eu o imito, meio sem jeito.
— Você é todo travado, hein? — ele comenta, observando meu alongamento desengonçado.
— Se eu me soltar demais, você foge de medo — retruco, sem pensar.
Ele para o que está fazendo e me encara por um segundo. Meu rosto esquenta. Por que diabos eu disse isso?
Mas, para minha surpresa, Mateus apenas sorri de canto.
— É mesmo? — Ele se aproxima um pouco mais, e eu sinto minha garganta secar.
— Eu tava brincando… — murmuro, desviando o olhar.
— Sei — ele responde, ainda com aquele sorriso estranho no rosto.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que ele estala os dedos.
— Bora correr antes que eu desista dessa ideia.
Ele sai na frente, e eu o sigo, já arrependido. Não sou acostumado com isso, e em poucos minutos estou sem fôlego, enquanto ele continua correndo como se fosse a coisa mais fácil do mundo.
— Espera… — peço, parando perto de uma árvore e me dobrando para recuperar o ar. — Eu vou morrer.
Mateus ri e se encosta na árvore ao meu lado, respirando fundo.
— Você precisa sair mais. Parece um velho.
— Se ser sedentário fosse crime, eu já tava preso faz tempo — brinco, e ele sorri de novo.
Ficamos ali por um momento, olhando o movimento do parque. Meu coração ainda está acelerado, e não só por causa da corrida. Mateus está perto, mais perto do que deveria. Quando me viro para ele, nossos olhares se encontram.
Ele me observa de um jeito diferente. Como se estivesse decidindo algo.
— O que foi? — pergunto, sentindo minha voz um pouco mais baixa.
Mateus não responde. Em vez disso, ele simplesmente chega mais perto e… me beija.
É rápido, mas intenso. O toque dos lábios dele me pega tão de surpresa que, por um segundo, esqueço de respirar. Meu corpo fica tenso antes de, instintivamente, relaxar. Eu nunca tinha sido beijado antes. E agora, de repente, Mateus está aqui, me segurando pela nuca como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Mas, antes que eu possa reagir de verdade, ele se afasta bruscamente.
— Merda… — ele murmura, desviando o olhar.
— Mateus…? — Minha voz sai incerta.
Ele dá um passo para trás, como se estivesse prestes a sair correndo.
— Eu… eu preciso ir.
E então, sem mais nenhuma palavra, ele vira e se afasta.
O barulho do motor da moto de Mateus já tinha sumido na distância, mas minha cabeça ainda ecoava o som daquilo que eu não entendia. O beijo. A forma como ele saiu correndo sem dizer nada. Como se tivesse feito algo errado. Como se eu fosse algo errado.
Andei até o ponto de ônibus mais próximo e esperei, tentando organizar os pensamentos. Mas não adiantava. Meu peito ainda estava apertado quando finalmente cheguei em casa.
Abri a porta e dei de cara com meu pai sentado no sofá, uma lata de cerveja na mão e a TV ligada em algum programa que ele provavelmente nem estava assistindo de verdade. Ele me olhou de cima a baixo assim que entrei.
— Chegou tarde. Onde tava?
— No parque — respondi, tentando soar normal.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— No parque? Você nunca sai de casa.
— Resolvi sair um pouco — dei de ombros, tirando os tênis para evitar sujar o chão.
— Com quem? — Ele tomou um gole da cerveja, me analisando.
Minha garganta secou. Eu podia mentir. Mas sabia que, de um jeito ou de outro, a conversa já estava indo para um caminho que eu não queria.
— Com um amigo da escola — falei, tentando não parecer nervoso.
Ele riu pelo nariz.
— Sei. E essa história de amigo aí? Não tem nenhuma menina interessada, não? Tá na hora de aparecer com uma namoradinha, hein?
Senti meu estômago revirar.
— Não tô preocupado com isso agora.
— Tá, mas também não vai demorar demais, né? Homem que fica muito tempo sem mulher acaba pegando gosto por outra coisa.
O jeito que ele disse aquilo, como se fosse uma piada, me deu vontade de sair dali na hora. Ele riu sozinho e balançou a cabeça.
— Brincadeira, rapaz. Mas é sério, toma cuidado. Não quero filho meu virando bicha, não.
Meu corpo ficou tenso. Segurei o ar por um segundo, tentando fingir que aquelas palavras não doíam tanto.
— Vou pro quarto — falei, me virando antes que ele visse qualquer reação no meu rosto.
— Isso, vai estudar, que pelo menos serve pra alguma coisa.
Ignorei. Ignorei porque era o que eu sempre fazia. Mas, dessa vez, parecia mais difícil.
Assim que fechei a porta do quarto, me joguei na cama e encarei o teto. Meu coração ainda batia rápido. Não sabia se era por causa do beijo ou por causa do que meu pai disse. Talvez pelos dois.
Talvez porque, pela primeira vez, a vontade de sumir fosse maior do que qualquer outra coisa.
Continua...