Se tinha uma coisa na fazenda que eu realmente evitava lidar, eram os gansos. Diferente do meu cachorrinho , que só queria carinho, ou dos cavalos, que tinham certa dignidade, os gansos eram criaturas do mal. E, para minha infelicidade, hoje a tarefa de alimentar aquelas pragas recaiu sobre mim e Túlio.
— Por que eu tenho que ir contigo? — ele resmungou, cruzando os braços como se fosse uma criança contrariada.
— Porque Raimundo mandou, e se eu vou sofrer, você sofre junto — respondi, pegando um balde cheio de milho.
Túlio bufou, mas me seguiu até o cercado. Os gansos já estavam lá, enfileirados como uma gangue prestes a cometer um crime. Um deles, maior e mais feio que os outros, parecia o líder da bandidagem.
— Eles tão encarando demais pro meu gosto — Túlio murmurou ao meu lado.
— É só jogar o milho e sair de fininho — falei, fingindo confiança.
Peguei um punhado e joguei no chão, esperando que corressem pra comer. Mas não. O líder dos gansos nos olhou, analisou a situação e, do nada, soltou um grito de guerra infernal antes de disparar na nossa direção.
— CORRE! — gritei, largando o balde e disparando em disparada.
Túlio demorou um segundo a mais pra reagir, e foi o suficiente para o ataque começar de verdade. De repente, não era só um ganso, eram vários, todos gritando e correndo atrás dele.
— SAI PRA LÁ, DESGRAÇA! — ele berrava, se debatendo no meio da confusão.
Eu já estava longe, observando a cena de um lugar seguro, quando vi Túlio finalmente tentar fugir. Mas aí o destino resolveu sacanear ainda mais com ele.
Ele tropeçou.
E caiu.
No chiqueiro.
O barulho da queda foi alto, um splash nojento. Por um segundo, tudo ficou em silêncio.
E então Miguel explodiu em gargalhadas do outro lado da cerca.
— Ai… ai, caralho… — ele tentava falar, mas estava curvado, segurando a barriga de tanto rir.
Eu, claro, não consegui segurar o riso também. Túlio, por outro lado, estava parado no meio da lama, os olhos arregalados e a cara de puro ódio.
— Não ri, seus filhos da puta! — ele gritou, tentando se levantar.
Miguel, ainda rindo, começou a se contorcer de tanto rir, e então de repente parou.
— Puta que pariu… — ele sussurrou, arregalando os olhos.
— O que foi? — perguntei, ainda rindo.
Miguel hesitou, depois confessou, quase sem voz:
— Eu me mijei.
Eu congelei. Túlio também. Então olhei para o Miguel, que estava com a expressão de quem tinha cometido um erro grave, e pronto.
Eu simplesmente caí no chão de tanto rir.
— Ah, não. Eu passei por isso tudo, e esse otário se mijou de tanto rir de mim?! — Túlio berrou, ainda coberto de lama e bosta.
Miguel tentava recuperar o fôlego, mas não conseguia.
— Valeu cada gota!
Túlio, furioso, pegou um punhado de lama e jogou na direção dele, errando por pouco.
— SEU DESGRAÇADO!
Eu já não conseguia mais me segurar. Era impossível. Eu ria tanto que quase fiquei sem ar.
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Depois do desastre com os gansos e do Túlio fedendo a chiqueiro por horas, achei que a gente merecia um momento de paz. Então, quando Lucas sugeriu que fôssemos pescar no rio, aceitei na hora. Qualquer coisa era melhor do que passar mais um minuto ouvindo o Túlio praguejar sobre vingança contra Miguel.
Pegamos as varas e um balde com iscas e seguimos até o rio, que ficava um pouco afastado da fazenda. O caminho era tranquilo, cercado por árvores e pelo barulho dos grilos. Túlio, ainda emburrado, chutava pedrinhas na estrada.
— Ainda não acredito que aquele idiota se mijou de rir de mim — resmungou.
— Já passou, Túlio. Relaxa. O importante é que a gente vai se divertir agora — Lucas tentou animá-lo.
— O importante é que você vai pegar um peixe, porque se depender do André, a gente passa fome — Túlio debochou.
Revirei os olhos.
— Só porque da última vez minha linha arrebentou…
— Da última vez, você jogou a vara na água junto! — ele corrigiu, rindo.
Lucas gargalhou junto e eu só bufei, tentando manter minha dignidade.
Quando chegamos ao rio, nos acomodamos em uma parte mais rasa, onde as pedras formavam uma espécie de banco natural. Cada um preparou sua vara e lançou a linha na água. O silêncio do lugar era relaxante, apenas o som dos pássaros e do movimento da correnteza.
Ficamos ali por um tempo, trocando piadas e conversando sobre besteira. Até que ouvimos passos na trilha.
— Quem será a essa hora? — Lucas perguntou, olhando por cima do ombro.
Foi então que Miguel apareceu.
E, pra nossa surpresa — ou melhor, *pra desgraça do Túlio* — ele estava só de cueca.
O desgraçado vinha caminhando tranquilamente, como se aquilo fosse normal, os cabelos bagunçados, a pele brilhando sob o sol. Estava suado, provavelmente tinha acabado de terminar algum trabalho pesado. Quando nos viu, abriu um sorriso preguiçoso.
— E aí, que sorte, achei que ia ter que tomar banho sozinho.
Túlio travou.
Lucas ergueu uma sobrancelha e segurou um sorrisinho.
Eu só observei a cena, já sentindo que aquilo ia ser bom.
Miguel chegou até a beira do rio, esticou os braços, alongando o corpo inteiro — e sim, eu notei quando Túlio desviou o olhar, engolindo em seco — e então entrou na água sem pressa, deixando a correnteza cobrir seu corpo aos poucos.
— Nada como um banho depois de um dia puxado — ele comentou, jogando um pouco de água no rosto.
Túlio ainda não tinha dito nada. Ele segurava a vara de pesca com tanta força que parecia que ia partir ao meio.
— A gente veio pescar, não pra ver desfile de cueca — ele resmungou, finalmente, sem olhar diretamente para Miguel.
Miguel sorriu.
— Relaxa, Túlio. Não sabia que você era tão tímido.
— Não sou tímido! — ele rebateu rápido demais.
Lucas segurou o riso, e eu fiz o mesmo.
Miguel deu de ombros e mergulhou, sumindo por um momento antes de emergir e passar as mãos pelo cabelo molhado. A água escorria pelo corpo dele e, por um segundo, vi Túlio observando. Mas foi só um segundo.
Ele desviou o olhar rápido, respirando fundo, como se tentasse convencer a si mesmo de que não tinha visto nada.
— Acho que já deu de pesca por hoje. Vou subir antes que algum idiota resolva nadar pelado também — ele disse, se levantando de repente.
Lucas e eu trocamos olhares, segurando o riso.
— Já? Nem pegamos nada ainda — falei, só pra provocá-lo.
— Não tô com paciência.
Sem esperar resposta, ele pegou as coisas e começou a subir a trilha de volta pra fazenda.
Miguel observou ele se afastar e depois olhou pra gente.
— O que foi isso?
Lucas riu.
— Isso, meu caro Miguel, foi o início de um colapso existencial.
Eu gargalhei.
Talvez aquele banho tivesse sido mais interessante do que Túlio gostaria de admitir.
Depois de Túlio se afastar, a cena no rio parecia ter deixado uma estranha tensão no ar. Lucas e eu ficamos observando Miguel se afastar para terminar o banho, e eu sabia que ele estava se divertindo com a situação.
— Acho que a cara do Túlio já diz tudo — Lucas comentou, ainda com um sorriso travesso. — Ele nem olhou pra Miguel depois daquela cena toda.
— Ele só está tentando esconder o quanto está morrendo de vergonha — respondi, mantendo a expressão séria, mas com um sorriso escondido.
Era engraçado como Túlio sempre tentava se mostrar tão durão e seguro de si, mas qualquer coisa fora do seu controle fazia ele parecer um adolescente desconcertado.
Miguel voltou do banho, se vestindo com uma calma irritante e nos olhando com aquele sorriso tranquilo, como se não tivesse a menor ideia do impacto que tinha causado. Ele se aproximou e se deitou na grama ao nosso lado, já recuperado da "nuvem de testosterona" que havia pairado sobre o rio.
— Tá vendo como ele não me aguenta? — Miguel disse, se referindo a Túlio. — Faz de conta que não percebe, mas é só um pouco de... “competição”, acho.
Lucas riu.
— Ele tem vergonha do seu corpo, Miguel, não sei se você percebeu.
Miguel deu uma risadinha, se espreguiçando.
— Não faz sentido. É só o corpo. Todo mundo tem.
Eu tentei me concentrar na pesca, mas, de repente, não consegui mais parar de pensar na reação de Túlio. Será que ele realmente estava tão incomodado por Miguel? Aquelas expressões rápidas, o jeito que evitava olhar pra ele... Eu sabia que havia algo ali, algo mais do que só um simples embate entre dois homens da fazenda.
Lucas parecia perceber que eu estava perdido nos meus pensamentos.
— E você, André? Fica aí quietinho, como se não tivesse visto nada — ele provocou.
Eu o encarei, tentando ignorar o calor subindo pela minha face.
— Não sei do que você está falando — disse, tentando parecer despreocupado.
Mas Lucas sabia bem o que estava fazendo. Ele não perdia uma oportunidade de me incomodar.
Em um momento de silêncio, o som do rio e das árvores ao redor se tornaram a única coisa que restava. E então, o que poderia ser um dia tranquilo de pesca, acabou se tornando uma série de acontecimentos desconfortáveis, como se o rio, aquele lugar tão simples, tivesse se tornado um campo de batalhas internas para todos nós.
Eu e Lucas ficamos por ali, pescando mais um tempo, enquanto o Miguel voltou a se banhar na parte mas abaixo do rio, até que o sol começou a se pôr, deixando o ambiente mais fresco e confortável.
— Então, qual vai ser a do Túlio agora? — Lucas perguntou, jogando mais uma isca na água. — Vai fingir que nada aconteceu ou vai enfrentar o Miguel de uma vez por todas?
Eu encarei Lucas, já sabendo o que ele queria dizer. Ele estava empolgado com a ideia de ver a tensão explodir entre eles.
— Talvez, só talvez, ele precise de mais tempo — falei, tentando parecer calmo. — Vai que ele tem algo na cabeça, e não quer admitir.
Lucas levantou uma sobrancelha.
— Você acha que ele vai se render tão fácil assim?
Eu sorri, olhando o horizonte.
— Não estou dizendo que ele vai se render. Só estou dizendo que ele precisa entender o que está acontecendo. E, por mais que Túlio tente negar, acho que ele já sabe.
Lucas riu baixo, se espreguiçando.
— Isso vai ser divertido de assistir, sem dúvida.- O celular do Lucas apitou - Preciso ir agora! - Disse ele se levantando e me deixando com alguns peixes e com a companhia distante do Miguel!
Enquanto o sol se punha lentamente, me dei conta de que, no fundo, estávamos todos esperando por algo — uma mudança, uma briga, uma confissão. Algo que colocasse um fim naquelas tensões não ditas.
Eu não sabia exatamente o que aconteceria com Túlio e Miguel, mas podia sentir que, de uma forma ou de outra, as coisas iam se desenrolar em breve. E quando isso acontecesse, a fazenda, ou pelo menos nossa pequena bolha ali, nunca mais seria a mesma.
Continua ...