O que começou como um emprego temporário tornou-se algo muito maior.
No início, Miguel ainda tentava manter um pé em cada mundo. No restaurante, ele era Aurora, a princesa perfeita, com sua postura impecável, sua voz suave e seus gestos delicados. Mas, ao sair dali, voltava a ser Miguel, vestindo roupas masculinas, apagando a maquiagem e guardando o figurino como se fosse apenas uma fantasia.
Só que, com o passar das semanas, essa divisão começou a parecer artificial. Algo dentro dele já não queria voltar a ser como antes.
Tudo começou de maneira sutil.
Primeiro, foi a escolha da roupa íntima.
Ele percebeu que, nos dias em que trabalhava como Aurora, sentia-se mais confortável, mais completo. E essa sensação não vinha apenas do figurino, mas também das peças que usava por baixo. A delicadeza da lingerie feminina, o toque suave da renda contra a pele, a maneira como a calcinha envolvia sua cintura com um elástico fino e discreto, tudo isso fazia com que ele se sentisse mais… ele mesmo.
Então, decidiu levar isso para além do trabalho.
No começo, era algo discreto. Sob as roupas masculinas, começou a usar calcinhas rendadas, pequenos sutiãs sem bojo, meias finas que acariciavam sua pele sob a calça jeans. Era um segredo só dele, mas toda vez que sentia o toque do tecido feminino contra sua pele, um arrepio delicioso percorria seu corpo.
A barreira havia sido quebrada.
E então veio o momento da primeira compra.
Ele passou dias reunindo coragem até finalmente entrar em uma boutique de lingerie. O coração acelerava, as mãos suavam, o rosto esquentava só de pensar na possibilidade de alguém perceber que aquelas peças eram para ele.
Mas, ao cruzar a porta da loja, algo inesperado aconteceu.
A vendedora o recebeu com um sorriso doce.
— Seja bem-vinda! Como posso te ajudar?
A naturalidade na voz dela fez seus ombros relaxarem. Ela o chamou de "bem-vinda" sem hesitação.
— Eu… queria algumas peças novas. — disse, tentando parecer confiante.
— Claro! Gosta de renda? Cetim? Alguma cor específica?
Ele não sabia o que responder. Tinha passado tanto tempo escondendo esse desejo que nunca realmente pensou no que gostava. Mas, ao olhar ao redor, viu um conjunto de calcinha e sutiã em renda lilás, delicado, etéreo. Era tão bonito.
— Esse é lindo… — murmurou, quase sem perceber.
A vendedora pegou a peça e a colocou em suas mãos.
— Sinta o tecido. Você vai adorar o toque.
E era verdade. A renda era incrivelmente macia, quase sedosa, e ele soube, naquele instante, que jamais voltaria atrás.
Saiu da loja com uma sacola discreta, mas dentro dela estava algo muito maior do que apenas lingerie. Estava um pedaço da sua nova identidade.
Os dias passaram e, com eles, a transformação foi se aprofundando.
Primeiro, foi apenas a lingerie. Mas, logo, as calças começaram a parecer pesadas demais, largas demais. Ele queria algo mais delicado, mais fluido, mais confortável.
Foi então que começou a usar saias discretas dentro de casa. No início, apenas quando estava sozinho. Mas, em pouco tempo, passou a se sentir tão confortável, tão correto, que não via mais sentido em se esconder.
Os vestidos vieram logo depois. Tecidos leves, cores suaves, cortes delicados que deslizavam pelo corpo. Quando colocou seu primeiro vestido e viu o reflexo no espelho, sentiu um nó na garganta.
Era ele. Era real.
A maquiagem, que antes usava apenas no restaurante, começou a fazer parte de sua rotina. No começo, algo leve: um batom discreto, um rímel sutil, um toque de blush para dar cor às bochechas. Mas, com o tempo, seu rosto tornou-se uma tela onde ele pintava sua verdade.
Os cabelos, antes sempre curtos e disciplinados, começaram a crescer. Cada centímetro a mais era uma pequena vitória. Até que, um dia, olhou-se no espelho e percebeu que já não precisava mais da peruca para se sentir completo.
A transição foi acontecendo de forma natural, até que um dia Miguel percebeu que não havia mais roupas masculinas em seu armário.
Tudo havia sido substituído por vestidos florais, saias rodadas, blusas delicadas com rendas e fitas. Havia lingerie de todos os tipos: conjuntos de renda preta para os dias que queria se sentir poderosa, babydolls de cetim para as noites mais suaves, camisolas rendadas que o faziam se sentir abraçado pela própria feminilidade.
Os sapatos de couro deram lugar a sandálias de salto fino, sapatilhas elegantes, botas de cano alto.
E os acessórios?
Antes, nunca havia dado atenção a eles. Mas, agora, tinham se tornado essenciais. Pequenos brincos brilhantes, pulseiras delicadas que tilintavam ao menor movimento, colares com pingentes sutis que caíam sobre seu colo. Cada detalhe fazia parte da mulher que agora vivia dentro dele.
E com as roupas, vieram os trejeitos.
O andar tornou-se mais leve. Os gestos, mais suaves. A maneira de falar, mais doce.
Ele aprendeu a brincar com o cabelo enquanto conversava, a sorrir de forma mais cativante, a cruzar as pernas delicadamente quando se sentava. Cada pequena mudança o aproximava mais de quem sempre foi.
Houve um momento em que Miguel olhou para trás e percebeu que não havia mais Miguel.
Os clientes do restaurante já não viam apenas um ator interpretando Aurora. Eles viam Aurora.
Os amigos não questionavam mais a forma como ele se vestia, como se portava, como falava. Era natural.
E, o mais importante…
Ele próprio já não via Miguel no espelho.
Porque, no final das contas, ele nunca foi um príncipe tentando ser uma princesa.
Ele sempre foi uma princesa esperando para ser descoberta.