Nunca pensei que meu nome um dia fosse ecoar por uma sala de audiência com tanta frieza. *Pietro Andrade .* Assim o juiz me chamou, sem olhar nos meus olhos, como se eu fosse só mais um número no sistema. Preso em flagrante, sem tempo pra entender tudo que tinha acontecido, me vi sentado diante de uma autoridade que tinha nas mãos o poder de decidir meu destino.
O promotor foi direto, quase cruel. Relatou que, após a abordagem, os policiais localizaram minha casa e encontraram grande quantidade de drogas embaladas para venda, balança de precisão e anotações típicas do tráfico. Disseram que não havia dúvidas: eu não era apenas usuário — eu estava abastecendo a região.
— Há indícios suficientes de autoria e materialidade — disse o juiz, folheando o processo com tédio ensaiado. — E o crime imputado ao réu, *tráfico de drogas*, tem pena elevada, o que, somado à prova da existência do crime e ao risco de reiteração delitiva, **justifica a prisão preventiva**.
Ele se recostou na cadeira, cruzou os braços e continuou:
— Diante da gravidade concreta do delito, da quantidade de entorpecentes apreendidos e do risco à ordem pública, **decreto a prisão preventiva de Pietro Fernandes, por tempo indeterminado**, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal.
Foi como se eu deixasse de existir ali. Não houve apelação, nem clemência. Só um aceno seco com a cabeça e um carimbo no papel.
Horas depois, o camburão me levou até a penitenciária. Lá dentro, nada do que eu conhecia fazia sentido. Fui revistado da cabeça aos pés, mandaram que eu tirasse toda a roupa e entregasse meus pertences. Me deram um uniforme encardido e me mandaram direto pro banho.
Banho frio.
A água caiu sobre mim como uma sentença. Gelada, cortante, suja. Nem olhei pro lado. Ninguém olha. Todo mundo sabe que ali, fraqueza é um convite.
Depois disso, vieram os procedimentos: exame médico, entrevista com o setor psicossocial, foto de registro. Tudo seguindo os protocolos da Lei de Execução Penal. Eu era só mais um ali dentro, sem nome, sem passado, sem ninguém.
Quando abriram a tranca da cela, meu coração disparou. O agente penitenciário olhou pra mim e disse sem muita paciência:
— Vai dividir com mais dois. Comporte-se.
Entrei devagar, sentindo o cheiro forte de suor, cigarro e cimento úmido. Um dos detentos estava deitado, com o rosto parcialmente coberto pela sombra. Quando ele se sentou e olhou pra mim, senti o impacto: era bonito, bonito de um jeito que quase incomodava. Tinha o maxilar marcado, olhos escuros que pareciam analisar tudo, e uma tatuagem tribal que começava no braço e subia até a Porém ele tava claramente fora do peso, sua barriga caia em dobras sobre sua virilha!Não disse nada, só manteve o olhar fixo por alguns segundos e voltou a deitar.
O outro era um moreno magrelo, de cabelo raspado e olhos desconfiados. Sentado no canto, ele me observou como quem mede perigo. Cruzou os braços e não disse palavra, mas o olhar já deixava claro: ali dentro, confiança não era algo que se dava fácil.
Uma beliche ocupava quase metade do espaço. Entendi logo que não ia rolar convite pra dividir espaço. Me restava o chão.
Espalhei o cobertor fino e rasgado no canto da cela. Era pouco, quase nada, mas era o que eu tinha. Me deitei encolhido, sentindo o frio do chão atravessar os ossos. Tentei me aquecer com o próprio corpo, mas o cimento era gelado demais. Aos poucos, comecei a tremer. Primeiro os pés, depois as mãos… quando percebi, meu corpo todo estava sacudindo.
Foi então que ouvi a voz rouca do cara da tatuagem:
— Ô, novato… vai morrer aí de frio, é?
Levantei um pouco a cabeça e vi ele me olhando, deitado, com uma expressão meio cansada.
— Sobe aqui… deita de cabeça pra baixo. Se a gente se apertar, cabe.
Hesitei. Mas o frio tava demais. Me levantei e subi com cuidado. Fiz como ele mandou: me deitei no lado contrário ao dele, os pés dele perto da minha cabeça e os meus perto da dele. E, por incrível que pareça, coube. Era apertado, desconfortável, mas quente. E naquele momento, era tudo o que eu precisava.
Acordei com o barulho do ferro batendo. Alguém gritou:
— Café da manhã! Bora!
Levantei com o corpo todo dolorido. O cara da tatuagem bocejou alto e disse, com um tom mais leve:
— Dormiu, hein? Achei que ia virar picolé ali embaixo. Sou o Bola. E o magrelinho desconfiado ali é o Palito.
Palito só resmungou um “bom dia” seco e voltou a amarrar o cadarço de um tênis velho.
Fui com os dois pro refeitório, seguindo o fluxo de detentos. Quando chegou minha vez, me entregaram uma caneca de plástico com algo fumegante dentro. Tinha um cheiro forte, meio estranho. Sentei num banco de cimento e dei o primeiro gole.
Mingau. Ralo. Tão aguado que parecia mais água com farinha. E o pior: tinha gosto de alho.
Fiz careta e ouvi Bola rir ao meu lado.
— Aqui é assim, irmão. Se acostuma ou morre reclamando.
Engoli seco. Literalmente. Meu estômago ainda tentava entender se aquilo era comida ou castigo. Mas no fundo, eu sabia… aquele era só o começo da minha adaptação.
Depois daquele mingau ralo com gosto de alho, meu estômago ainda revirava. Fui com Bola e Palito pro banheiro da ala. Um corredor estreito, cheio de azulejos manchados, cheiro de mofo e urina no ar. Peguei um pedaço de sabonete que tinham deixado num canto sujo da pia. Nenhuma escova, nenhum creme dental — nada além daquilo.
Molhei o sabonete, esfreguei nos dedos e tentei improvisar. Esfregava os dentes com aquele gosto amargo e químico invadindo minha boca. O gosto me fez fechar os olhos com força. E foi aí que a realidade pesou.
Ali, encostado na pia rachada, com aquele gosto nojento na boca, o peito apertou de um jeito que não deu pra segurar. Comecei a chorar baixinho. Sem barulho, só lágrimas caindo enquanto eu fingia que era a espuma do sabonete.
Chorei por tudo. Pela cela fria, pelo chão duro, pelo mingau, por estar ali. Por ter estragado minha vida.
Depois de me recompor, enxaguei a boca e me virei rápido, tentando sair dali antes que alguém notasse. Ia em direção ao pátio, pra o tal banho de sol, quando me bati de frente com um cara imenso. Enorme mesmo. Ombros largos, braços que pareciam troncos de árvore, olhos escuros que me atravessaram como faca.
Antes que eu conseguisse pedir desculpas, ele já tinha me agarrado pelo pescoço com uma força brutal.
— Tá cego, novato? — rosnou, apertando mais.
Meus pés quase saíram do chão. A mão dele era pesada, quente, e eu sentia o sangue subir pra cabeça. Os olhos dele ardiam de raiva, ou talvez só queriam testar meu medo.
Fiquei sem ar por um instante. Não sabia se gritava, se me soltava, ou se só aceitava que aquele lugar não tinha espaço pra fraqueza.
O braço do brutamonte me soltou de repente, e eu caí no chão, tossindo, tentando recuperar o fôlego. Ele se afastou devagar, lançando um último aviso:
— Abre o olho, novato. Aqui, um passo em falso pode ser o último.
Me deixei ali por alguns segundos, com a respiração descompassada, tentando entender onde exatamente eu tinha me metido. Levantei devagar e segui com os outros pro pátio. Banho de sol. Um cercado de concreto com o céu por cima, cercado de grades por todos os lados.
Fiquei parado num canto, sentindo o sol bater no rosto, mas sem paz nenhuma por dentro. Eu não fazia ideia de como agir ali, quem evitar, quem respeitar, quem temer. Tudo era código. Tudo era tensão.
Foi quando um homem se aproximou. Branco, forte, de cabelos escuros e olhos negros como carvão. Olhar fixo, firme. Não tinha expressão de raiva nem de simpatia. Só analisava.
— E aí, novato… já tem dono? — perguntou, direto.
— Dono? — perguntei, franzindo a testa.
— É. Aqui dentro, se não quiser virar alvo, precisa ter alguém que te proteja. Alguém que diga que você é “dele”. Em troca… — ele deu uma pausa, olhando direto nos meus olhos — você paga com o corpo.
Engoli em seco, tentando manter a expressão firme. Não sabia o que dizer, o que responder. Meu estômago embrulhou. Não era o tipo de conversa que eu tava pronto pra ter, ainda mais ali, tão exposto.
Antes que eu pudesse reagir, uma voz surgiu do outro lado do pátio. Grossa, sensual, firme. Uma daquelas vozes que chamam atenção sem esforço.
— Esse aí? — disse a voz com deboche — Nem pra ser depósito ele serve.
Virei o rosto, tentando identificar quem tinha falado. Um sujeito encostado na parede, braços cruzados, barba cerrada e sorriso torto no rosto. O olhar era de escárnio, como se estivesse se divertindo com a situação.
O homem que tinha falado comigo soltou um leve riso pelo nariz, deu um tapinha leve no meu ombro e disse:
— Quero ser seu dono!
Fiquei ali, parado, tentando digerir as palavras do homem dos olhos pretos, ainda sentindo o peso do deboche vindo da sombra. O sol parecia menos quente agora, como se até ele tivesse medo daquele lugar. Meu corpo estava tenso, os pensamentos embaralhados, quando ouvi passos pesados se aproximando.
— E aí, campeão… — disse uma voz conhecida, carregada de ironia. — Tá fazendo turismo no pátio, é?
Virei o rosto e vi Bola se aproximando, a tatuagem tribal reluzindo sob o sol, com um meio sorriso nos lábios e um olhar que misturava provocação e autoridade.
O homem branco virou pra ele, sério, mas sem dar um passo atrás.
— Só trocando uma ideia com o novato — disse, com a voz calma.
Bola deu uma risada seca, balançando a cabeça devagar.
— É mesmo? Então escuta bem, príncipe… o novato é minha putinha. Tá entendendo? Minha. Então é melhor você dar meia-volta e ir procurar outra distração por aí.
O clima ficou denso por um segundo. O homem dos olhos pretos sustentou o olhar, mas depois deu um leve sorriso de canto e se afastou sem dizer mais nada. Talvez porque já tivesse visto o suficiente de Bola pra saber que ele cumpria o que dizia.
Eu fiquei sem palavras. Ainda sem saber se me sentia aliviado ou humilhado. Mas quando olhei pra Bola, ele me lançou um olhar rápido, firme, como se dissesse “tá tudo sob controle”. E eu, mesmo sem entender direito, agradeci com o olhar. Porque naquele lugar onde tudo era ameaça, alguém ter me escolhido — por mais estranho que fosse — significava, no mínimo, alguma chance de continuar inteiro.
Continua...