O dia estava abafado, nem parecia que pela manhã havia feito frio, agora tava aquele tipo de calor que gruda na pele como se o sol tivesse descido pra morar no nosso pulmão. Mesmo assim, o pátio da prisão estava cheio de gente. Alguns andando de um lado pro outro, outros encostados nas grades enferrujadas, parecendo sombras à espera de um milagre que nunca vinha. Eu estava sentado no canto, conversando com Rafael.
Rafael era... diferente. Tinha um jeito calmo, quase etéreo.O rosto sereno contrastava demais com aquele cenário de concreto e desespero. Ele parecia um anjo exilado por engano. Tinha uma fala tranquila, uma voz que dava vontade de escutar com os olhos fechados, como se fosse música. Falávamos de coisas bobas – da vida antes dali, da comida horrível do refeitório, do barulho que os ratos faziam à noite. E por um instante, só um instante, esqueci onde estávamos.
Foi quando aconteceu.
Um barulho seco.
Um gemido que cortava o ar.
Depois, o som do arrastar.
Virei o rosto e vi um homem no chão, se arrastando, a perna completamente torta num ângulo impossível. Ele chorava, soluçava, gritava como uma criança perdida. A voz dele era alta, doía no ouvido, doía no peito.
— Socorro, pelo amor de Deus... alguém... alguém me ajuda... — ele implorava.
Mas ninguém se mexia.
Nem uma alma.
Nem uma sombra.
Nem Rafael.
Todos seguiram com suas conversas, seus olhares vazios, suas costas viradas. Foi como se ele fosse invisível. Como se não estivesse ali.
— Isso tá errado — murmurei, já me levantando.
Dei dois passos na direção do homem quando senti uma mão forte no meu braço. Virei de supetão. Era o Bola.
— Vem cá, moleque — ele disse entre os dentes, puxando meu braço com força. — Não se mete onde não deve.
— Ele tá machucado! Tá chorando, tá gritando! A perna dele... — tentei argumentar, mas Bola me puxava com pressa, firme, ignorando meu protesto.
— Anda, Pietro. Agora.
Fomos pro fundo do pátio, atrás do velho muro que separava a ala dos que mandavam na prisão dos que apenas obedeciam. O sol parecia ainda mais quente ali, o concreto fervia. Quando paramos, Bola me soltou e encostou na parede. Ficou em silêncio por um instante, olhando pros lados, como se checasse se estávamos mesmo sozinhos.
— Aquele cara... — ele começou, passando a mão na barba mal feita — ...tentou roubar do Fábio. Pegou cigarro, sabão e até uma camisa do cara. Achou que ninguém ia descobrir.
— Mas por isso... por isso tão deixando ele assim?
— Não tão deixando, Pietro. Tão fazendo ele pagar. Essa prisão tem regras. E o Fábio é quem manda aqui. Quem mexe com ele... morre ou fica aleijado.
Eu senti um calafrio me percorrer as costas. O grito do homem ainda ecoava, como uma lâmina arranhando minha mente. Eu engoli seco, o estômago embrulhado, o peito apertado.
— Isso é doentio... isso é crueldade!
— É sobrevivência. Aqui, ou você aprende a fechar os olhos... ou vai ser o próximo a gritar no chão.
Eu levei a mão ao rosto, tentando processar, tentando entender como alguém podia apenas assistir aquilo. Minha respiração acelerou. O grito do cara continuava — mais longe agora — mas ainda presente. Eu senti a bile subir na garganta.
Bola me olhou com seriedade, com um olhar que, por mais duro que fosse, parecia... preocupado.
— Pietro... olha pra mim.
Eu hesitei, mas obedeci.
E foi aí que aconteceu.
Ele segurou meu rosto com as duas mãos. As mãos grandes, calejadas, sujas de vida dura. E me fez olhar nos olhos dele. Olhos castanhos, intensos, cheios de histórias que eu nem imaginava.
Por alguns segundos, tudo parou.
O grito lá fora virou um sussurro distante.
O calor deixou de incomodar.
O ar ficou mais pesado.
E dentro do meu peito, algo diferente aconteceu.
Era como se o mundo tivesse virado fumaça, e só existisse aquele olhar. E um calor estranho, denso, começou a se espalhar pelo meu corpo. Subiu pelas veias, queimando sem machucar, esquentando sem doer.
Eu me perdi ali. Por um momento.
— Não se deixa quebrar, Pietro — ele disse num tom mais baixo, quase íntimo. — Nem todo mundo aqui é mau. Mas se você vacilar... vai acabar igual aquele cara. E eu não quero isso pra você.
Meu coração batia rápido, meio confuso com tudo aquilo. O toque dele, o olhar, a voz... era tudo intenso demais. Quase perigoso.
— Por que... por que você se importa? — consegui perguntar.
Ele me encarou por mais um segundo antes de soltar meu rosto devagar.
— Talvez porque eu já fui como você. E ninguém me segurou antes da queda.
E então, ele virou as costas e começou a andar de volta pro pátio.
Eu fiquei ali, parado, com o corpo pegando fogo e a mente um caos. O grito do homem tinha sumido agora. E eu não sabia se era porque ele tinha desmaiado... ou porque, enfim, tinha parado de lutar.
Quando voltei pro pátio, o sol já começava a se inclinar pro lado oeste, queimando menos, mas deixando um dourado estranho no concreto. Aquele dourado melancólico, que parece pintar tudo com um aviso silencioso: a noite vem aí, e com ela, o pior.
O cara do chão não estava mais lá.
Nenhum rastro de sangue. Nenhum gemido.
Sumiu.
Só o vazio dele ficou no ar, como uma lembrança amarga que ninguém ousava comentar.
As conversas no pátio continuavam. Os risos, as provocações, o barulho das cartas sendo embaralhadas, os passos no cimento, tudo como se nada tivesse acontecido. A prisão era um mundo à parte, onde a dor era rotina e o silêncio era mais cruel que qualquer grito.
Olhei em volta. Rafael também tinha sumido. Estranho. Quase como se tivesse evaporado junto com aquele grito que ecoava na minha cabeça. Me perguntei pra onde ele teria ido, se ele também fazia parte daquele jogo silencioso de sobrevivência onde cada passo era uma escolha entre viver... ou ser esquecido.
Meus olhos foram parar em Bola.
Ele tava encostado num canto, conversando com dois caras de aparência dura, mas rindo. Rindo alto. Tentando parecer despreocupado.
— E aí, rolha de poço, perdeu o ralo de novo? — gritou um dos detentos que passava.
— Se tapar o buraco, o presídio vaza! — disse outro, arrancando gargalhadas de quem estava por perto.
Bola riu junto. Aquele riso exagerado, aberto, como quem tenta mostrar que não se importa. Mas eu vi. Eu vi nos olhos dele. Tinha algo ali. Uma sombra. Um corte que não sangrava por fora, mas tava vivo dentro dele.
Por um instante, pensei em mim.
Pensei que ele, mesmo com o jeito bruto, a força, o medo que metia em todo mundo... ele tava tentando me proteger.
À maneira dele.
Me puxando pra longe da merda, segurando meu rosto, me fazendo olhar nos olhos dele como se dissesse: “acorda, moleque, antes que seja tarde.”
E eu sabia... eu **sabia** que precisava fazer alguma coisa por ele.
Mas o quê?
Aqui, qualquer demonstração de cuidado vira fraqueza.
E fraqueza, aqui dentro, é sentença de morte.
Suspirei, cansado demais pra pensar em solução.
Foi aí que ouvi uma confusão leve do outro lado do pátio. Um zum-zum divertido, meio debochado. Virei e vi.
Mimosa.
Um carinha afeminado, magro como vara verde, cheio de trejeitos e um rebolado que desafiava todas as regras daquela cadeia. Todo mundo o chamava de Mimosa, e ele parecia gostar. Usava até um lacinho improvisado na cabeça, feito com um pedaço de pano rosa-choque.
Dessa vez, ele tava se esfregando em João. Sim, **o** João. O armário de músculos, olhar de poucos amigos e cara de quem matou mais de um.
— Ai, João, para de bancar o difícil... sei que cê sonha comigo nas suas noites solitárias — dizia Mimosa, arrastando a voz e tocando o braço dele com delicadeza.
João empurrou Mimosa de leve, tentando disfarçar o desconforto com uma risada sem graça, enquanto os outros detentos riam alto, se divertindo com a ousadia.
Eu ri também. Não dava pra negar que a cena era engraçada. Mimosa não tinha medo de nada — ou fingia muito bem.
Mas, depois que a risada passou, fiquei olhando pra João. Forte, respeitado, temido. Se ele falasse, o pátio calava. Se ele batia, ninguém revidava.
E então me deu um estalo.
Eu precisava que João comesse na minha mão.
Era isso.
Na cadeia, você só é respeitado quando tem alguém grande do seu lado.
Alguém que assuste mais do que você.
Alguma coisa dentro de mim... um instinto, uma chama, sei lá... me empurrava pra frente. E era exatamente isso que eu fazia agora: me aproximava do perigo com a calma de quem já entendeu que não adianta correr.
Mimosa tava sentada num degrau do pátio, balançando o pé descalço, falando alto com umas amigas imaginárias enquanto olhava de canto pra João, que tava encostado na parede de braços cruzados, como uma muralha de carne.
Me aproximei devagar.
Mimosa me viu primeiro e abriu um sorriso doce, quase infantil.
— Olha só quem chegou... o bonitinho novo — disse, ajeitando o lacinho improvisado na cabeça. — Veio se juntar à irmandade?
— Vim fazer uma correção — falei, com a voz baixa, quase num sussurro.
Me aproximei de João, o corpo dele parecia feito de pedra. A tensão no ar era tanta que dava pra cortar com um caco de unha.
Passei a mão no peito dele, com os dedos abertos, sentindo os músculos firmes sob o tecido da camisa cinza e suada.
— Eu sinto muito, Mimosa... — murmurei, sem tirar os olhos dos de João. — Mas o João, atualmente, só pensa em mim.
O silêncio caiu no pátio como uma bomba.
Mimosa arregalou os olhos e soltou um gritinho teatral de choque, levando as mãos ao peito.
Os outros presos pararam por alguns segundos, e até as cartas nas mesas ficaram suspensas no ar.
João não se mexeu. Nem um músculo.
Me encarou. Firme. Um misto de surpresa e confusão.
Mas não disse nada.
Dei um leve tapinha no peitoral dele e me afastei, deixando a cena pra trás como se não fosse nada. Como se fosse só mais uma tarde qualquer.
Mas dentro de mim, o coração batia tão forte que parecia querer fugir pela garganta.
Voltei pra cela me sentindo o próprio rei do presídio.
Me joguei na cama de casal com os braços abertos, rindo sozinho, olhando pro teto rachado como se tivesse acabado de vencer um campeonato invisível.
“Ele vai comer na minha mão”, pensei. “É só questão de tempo.”
Fechei os olhos, saboreando o gosto daquela ousadia.
Mas então senti.
Um silêncio denso.
Um peso estranho no ar.
Abri os olhos e percebi.
Fábio tava ali.
Sentado no canto da cela, meio na sombra. Os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas. E os olhos... vermelhos. Vermelhos de raiva ou de alguma coisa que ele não deixava transbordar.
— Que foi? — perguntei, tentando manter o tom casual.
Ele não respondeu de imediato. Só ficou ali, me encarando como se quisesse furar minha pele com o olhar.
— Por que tá me olhando desse jeito? — insisti.
Ele soltou um riso curto, quase sem som, e disse:
— Tem gente achando que eu sou idiota.
Aquilo me travou por dentro.
Mas ele não parou.
— Gente achando que pode brincar de fazer teatro nessa cadeia... achando que manda aqui. Só tão esquecendo de uma coisa.
— O quê? — perguntei, com a garganta seca.
— Que quem manda aqui... sou eu. — A voz dele veio baixa, firme, perigosa.
Tentei disfarçar o nervosismo. Estiquei os braços por trás da cabeça, voltando a fitar o teto.
— Você anda paranoico, Fábio. Ninguém tá brincando com você. Cada um cuida da sua vida, né?
Ele se levantou devagar, os olhos ainda queimando em vermelho.
— Cuida da sua, então, Pietro. Porque eu vou cuidar da minha... e da parte que acham que podem tirar de mim.
Aquela frase ficou no ar como faca.
E, por um momento, tudo dentro da cela pareceu ficar menor. As paredes mais próximas. O teto mais baixo. O ar mais denso.
Ele saiu logo depois, sem dizer mais nada.
O clima da cela ainda carregava o peso da presença de Fábio.
As palavras dele ecoavam na minha cabeça como um tambor distante, mas ameaçador. Eu tentava me concentrar, respirar fundo, deixar aquela tensão evaporar no ar quente da prisão. Queria me convencer de que ainda estava no controle, de que tudo fazia parte do plano.
Mas o barulho dos passos pesados vindo pelo corredor me puxou de volta pro mundo real.
A porta da cela bateu com força.
João entrou.
Não disse nada no começo. Apenas me olhou. Um olhar duro, sombrio. O tipo de olhar que atravessa a carne e vai direto na alma. Eu me levantei da cama, tentando manter a postura, o charme, a segurança. Mas ele já vinha em minha direção, e eu senti um frio cortante subir pela espinha.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, João me agarrou pelo pescoço. Forte. Seus dedos grossos apertavam minha pele com raiva contida. Me encostou contra a parede com brutalidade. Meu coração batia feito louco.
— Qual é a tua, hein? — ele rosnou, os olhos quase encostando nos meus. — Ao mesmo tempo que se faz de difícil, me dá aquela cena lá fora, na frente de todo mundo?
Tentei responder, mas ele apertava mais. Não ao ponto de me sufocar, mas o suficiente pra mostrar que quem mandava ali, naquele momento, era ele.
— Tu acha que eu sou otário? — ele continuou. — Tu acha que vai me deixar igual cachorro atrás de osso, querendo atenção? Que vai me deixar doido e depois sair rindo por aí?
Meu corpo tava tenso, minhas mãos tentavam segurar os braços dele, mas não com força — era mais um reflexo. No fundo, eu sabia que aquilo podia ser perigoso. Mas eu também sabia que, de algum jeito torto, aquilo era poder.
João me soltou de repente, me deixando respirar de novo, mas não se afastou.
— Escuta bem o que eu vou te dizer — a voz dele agora vinha baixa, firme, e cruel. — Eu não vou te dar tudo o que tu quer. Se é isso que tu tá pensando, pode tirar o cavalinho da chuva.
Ele se aproximou mais, e eu senti o calor da respiração dele contra meu rosto.
— Tu pode até ganhar umas migalhas minhas... Um sabonete... um perfume barato— ele sussurrou. — Talvez meu corpo, de vez em quando. Quando eu quiser. Mas não vai passar disso. Não vou te idolatrar. Não vou comer na tua mão.
As palavras dele me cortaram. Não pela grosseria, mas pelo jeito como ele me via. Como se eu fosse só mais um joguete, mais um corpo entre as grades. Como se ele soubesse de todos os meus planos e, mesmo assim, estivesse dois passos à frente.
Antes que eu pudesse reagir, ele me empurrou com força, me jogando de costas na cama. Meu corpo caiu no colchão com um baque surdo, por causa da maciez!
Fiquei ali, de olhos arregalados, tentando entender o que tinha acabado de acontecer.
João me encarou por mais um segundo.
Seu olhar era de fúria contida, mas também de desejo. Um desejo que ele odiava sentir. Um desejo que ele queria negar a qualquer custo.
Ele virou as costas e saiu da cela!
E eu fiquei deitado, o peito subindo e descendo rápido, o pescoço ainda ardendo.
Chocado.
Não só com a violência.
Mas com o fato de que, apesar de tudo... parte de mim tinha gostado.
E isso era perigoso.
Continua...