Acordei engasgado no próprio ar. O cheiro era de mofo, de urina velha, de suor seco e medo. Tentei me mexer e bati o ombro na parede. O outro lado também era parede. Na verdade… tudo era parede. Concreto frio, úmido, esmagando meu corpo contra o chão duro como se eu fosse só mais um erro esquecido aqui embaixo.
Me sentei num pulo, o coração batendo descompassado, os olhos tentando se adaptar à penumbra. Tinha uma abertura pequena no alto da porta de ferro, mas não deixava passar quase nenhuma luz. O lugar era tão estreito que se eu esticasse os braços, dava pra tocar os dois lados. Não tinha colchão, nem privada, só um buraco no canto que eu nem queria me aproximar. O chão gelado parecia puxar meu calor, como se quisesse me apagar.
“Cadê eu?!” gritei, a voz batendo nas paredes e voltando mais fraca. Ninguém respondeu. “Alô?! Tem alguém aí?!”
Nada.
Tentei lembrar o que aconteceu antes de acordar aqui, mas minha mente era um emaranhado de imagens partidas: um guarda gritando, o som de algo batendo, depois escuro. Total. Como um corte de luz na alma. Mas não fazia sentido… Eu não tinha feito nada pra estar na solitária. Nada que justificasse isso. A última coisa que lembro era estar deitado na minha cela, cansado, mas em paz.
Deitei de novo, mas o chão parecia cuspir minha coluna pra fora do corpo. E foi aí que veio.
O cheiro. O buraco. O medo.
**[Flashback]**
Era noite. Chuva fraca caía sobre os telhados da favela como dedos de vidro. Eu tinha 14 anos, magro feito vara de pescar, roupa rasgada e o coração batendo como tambor de guerra. Corri sem olhar pra trás. Sabia quem vinha. Sabia o que faziam com quem devia. E eu devia.
Cem reais. Um celular velho. Um corre que deu errado. E agora eu era caça.
Me enfiei por vielas, escorregando na lama, escutando vozes grossas me chamando de “rato”. Eu tremia, mas não podia parar. Vi uma casa inacabada, uma obra largada no topo da ladeira, e corri pra lá. Tinha um buraco no canto da sala, perto do chão, onde pareciam guardar entulho. Me joguei ali sem pensar. Abaixei o corpo, cobri minha boca com a mão e tentei não respirar.
Minhas pernas estavam presas entre tijolos. O cimento esfarelado arranhava minha pele. Do lado de fora, vozes.
“Ele passou por aqui!”
“Procura direito, desgraça!”
Senti a urina escorrer por mim, involuntária, quente de vergonha e pavor. Meus dentes batiam, não sabia se era de frio ou de puro desespero. Um deles chutou a parede da casa. O barulho foi um trovão. Se entrassem, eu tava morto.
Minutos pareceram horas.
Horas pareceram dias.
E então, silêncio.
Silêncio que doía nos ouvidos.
Demorei ainda uns vinte minutos até conseguir sair do buraco, os músculos duros, os olhos secos. Fugi. Fugi até a alma sair do corpo.
**[Fim do flashback]**
Voltei pro agora com os olhos marejados. O buraco era outro, mas a sensação era a mesma. Preso. Pequeno. Sozinho. O passado e o presente se fundindo numa única agonia.
Me encolhi no canto, abraçando os próprios joelhos, a testa encostada nas pernas. A prisão tinha vários tipos de castigo. Mas a solidão... a solidão apertada no concreto era o pior de todos.
E eu ainda nem sabia por quê estava ali.
O tempo não existia ali dentro. Não sabia se era dia, se era noite, se fazia calor lá fora ou se o mundo ainda girava. Aquela cela de concreto apertada era uma prisão dentro da prisão — e eu era só uma sobra, um erro esquecido.
Minhas mãos tremiam, sujas de poeira e raiva. Comecei a bater nas paredes com força, os punhos doendo a cada impacto.
— ME TIRA DAQUI! — berrei, socando o concreto. — EU NÃO FIZ NADA, CARALHO!
As batidas ecoavam abafadas, como se a cela engolisse minha voz. Chutei a porta, esmaguei o ombro contra o ferro.
— EU TÔ FICANDO LOUCO AQUI! ABRE ESSA MERDA!
A dor crescia, irradiando dos ossos. O pânico se enroscava em mim como uma cobra, apertando, apertando... até a sanidade escapar por entre os dedos. Olhei as paredes em volta, respirei fundo, e antes de pensar, corri contra uma delas com a cabeça.
Um estrondo. Um clarão. Depois, escuridão.
***
Acordei com uma voz distante, como se estivesse debaixo d’água.
— Levanta, ô. Tá ouvindo? Bora. Sai daí.
Aos poucos, o mundo foi voltando. Meu corpo doía inteiro. A cabeça latejava como se estivesse dividida ao meio. A luz que invadia a cela feriu meus olhos.
— Vambora, Pietro. Anda.
Era um guarda. Um dos duros. Me puxou com firmeza, e minhas pernas quase não responderam. Saí do buraco tropeçando, tonto, sentindo cada centímetro do corpo protestar. Não sabia se eu tava vivo, ou se aquilo era o inferno. O chão sob meus pés parecia girar. O corredor era longo demais. A luz branca demais. As vozes em volta pareciam vir de outro plano.
Passei pela ala em silêncio, com os olhos vidrados. Os presos me encaravam, alguns cochichavam, outros fingiam não ver. A dor era física, mas o que me matava mesmo era por dentro. Aquilo me quebrou. Aquilo me desmontou.
Cheguei ao pátio cambaleando, os olhos procurando um refúgio — qualquer coisa que me dissesse que eu ainda era eu.
E então vi.
Bola.
Sentado na área da lavanderia, dobrando roupas com os braços grossos, concentrado, como se o mundo fosse apenas aquele monte de sabão e calça molhada. Meus olhos marejaram de imediato. Fiquei parado, sem saber se era real, se era alucinação.
Mas era ele.
Sem pensar, corri.
As pernas foram sozinhas. O corpo foi antes da razão.
Joguei os braços em volta dele e desabei.
— Caralho, Bola… eu… eu… — A voz travou. O choro saiu grosso, rasgando o peito. — Eu achei que eu nunca mais ia te ver, mano. Eles me deixaram lá... sozinho… eu achei que ia morrer, véi!
Bola me abraçou de volta. Firme. Forte. Do jeito que só ele sabia. Sem perguntar nada. Sem julgar. Só segurando. E aquilo bastou. Aquilo me salvou.
Chorei tudo que não chorei na vida.
Naquela hora, no meio da lavanderia fedendo a sabão velho e suor, eu chorei como um menino.
— Eu não fiz nada, Bola… nada. — minha voz tremia enquanto a gente ainda estava sentado atrás da lavanderia. — Só lembro de estar na minha cela… depois, acordei naquele buraco. Achei que tava morto, irmão. De verdade.
Bola olhou pra mim, sério, como se tivesse esperando o momento certo pra falar.
— Foi o João.
— O quê?
— Ele falou com os guardas. Disse que tu tava causando, que tava ameaçando os outros. Eles acreditaram. Jogaram tu lá direto.
Fiquei em silêncio por um segundo. O nome ecoou na minha cabeça como um soco. João.
Sem esperar mais nada, levantei num impulso e caminhei firme até a cela. Cada passo parecia bater mais forte no chão, como se o próprio concreto me impulsionasse. Cheguei lá e encontrei ele rindo de alguma piada com o Fábio. Quando me viu, ficou sério.
— Seu desgraçado! — gritei, empurrando ele com tudo contra a parede de ferro. — POR QUÊ, JOÃO?! POR QUE VOCÊ FEZ ISSO COMIGO?!
Ele me encarou com desprezo e segurou meus braços com força, como se quisesse me lembrar quem era o dominante ali. Antes que eu reagisse, ele me deu um tapa seco com as costas da mão. Minha visão piscou. Um zunido ficou preso nos meus ouvidos. Vi estrelas.
— Tu tava se achando demais, Pietro — ele disse, com a voz baixa e firme. — Te metendo com gente que não devia, andando por aí de peito estufado… Eu só quis te ensinar. Te mostrar teu lugar.
Meu coração batia descompassado. Tentei me soltar, mas ele me prensou contra a parede. Cheguei a sentir o peso dele, a aproximação sufocante, a ameaça no ar.
— Tu tem esse corpo bonito aí… acha que ninguém repara? Eu reparei. E quero. Mas pra isso, tu precisa ser amaciado. Precisa entender quem manda.
— Você é doente, seu lixo! — cuspi, tentando sair da pressão dele. — Não vai botar a mão em mim nunca mais, ouviu?! NUNCA!
João riu. Um riso frio, cruel. Mas naquele momento, mesmo com a dor, com o medo, com tudo girando dentro de mim, eu jurei pra mim mesmo: isso não ia ficar assim.
Ele podia ser maior, mais forte, ter influência ali dentro. Mas eu não ia me curvar. Eu já tinha sobrevivido ao pior.
Claro. Aqui está o novo capítulo, mantendo o tom intenso, dramático e centrado no sofrimento psicológico e físico do Pietro, sem glorificar a violência, mas destacando o ambiente opressor da prisão:
Saí da cela com o rosto ardendo e o peito em brasa. Meus passos eram trôpegos, meu orgulho em frangalhos. A raiva ainda queimava, mas o medo começava a falar mais alto. Eu precisava sair dali, respirar, pensar… Qualquer coisa.
Foi quando virei o corredor e dei de cara com Mimosa.
— Olha só quem voltou do buraco — ela disse, com um sorriso debochado, mas os olhos cheios de veneno. — O reizinho da solitária.
Nem tive tempo de responder.
— FINGINDO DE MACHÃO, NÉ? — gritou ela, me empurrando. — ACHA QUE É MELHOR DO QUE A GENTE?
O tapa veio seco. Um, dois, três. O rosto virou de um lado pro outro. Tentei levantar os braços, mas meu corpo já não obedecia direito. Cai no chão. A poeira subiu. Tudo girava.
— PARA! — gritei, mais por reflexo do que por força. — CHEGA!
Mas não teve trégua.
Antes que eu pudesse respirar, senti os dedos duros do guarda afundarem nos meus cabelos.
— DE NOVO VOCÊ, VERME?! — berrou ele.
Puxou com tanta força que meu couro cabeludo pareceu rasgar. Tentei gritar, mas o soco no estômago tirou meu ar. Me encolhi como um bicho, engasgando com a própria saliva.
— VOCÊ ACHA QUE AQUI TEM LEI?! — o guarda rugia, enquanto me arrastava pelo chão como um saco de lixo. — VAI APRENDER DO JEITO MAIS DIFÍCIL!
— ME SOLTA! ME SOLTA, POR FAVOR! — supliquei, a garganta falhando, os olhos embaçados.
Os outros presos olhavam. Alguns viravam o rosto. Outros riam.
Ninguém ajudava.
Fui arrastado de volta pela ala, sentindo o chão áspero rasgar meus braços. A cada esquina, um puxão. A cada passo, mais dor.
E então, o portão de ferro se abriu com aquele som maldito.
A solitária.
Fui jogado lá dentro como um animal doente. A porta se fechou atrás de mim com um estrondo, e o silêncio voltou a reinar.
Só o som da minha respiração entrecortada. Meu rosto latejando. Os ossos clamando por descanso.
Me encolhi no canto frio da cela, abraçando os joelhos, tentando não desmoronar.
Mas eu já tava quebrado.
Por dentro e por fora.
E, no escuro, a única coisa que me restava era o eco da minha própria voz, repetindo baixinho:
— Isso não pode ser pra sempre… isso não pode ser pra sempre…
Continua...