Bati na porta do quarto e Júlia nada respondeu. Tentei entrar, mas, obviamente, estava trancada.
— Amor? — tentei.
— Lorena, eu não quero conversar agora ou nós vamos brigar. Também não quero isso — ela me respondeu. Pela sua voz, percebi que chorava.
— Vou respeitar seu tempo. Porém, saiba que precisamos dialogar. Nem tudo que você acha que aconteceu realmente aconteceu — falei, e o silêncio reinou entre nós.
Pensei em descer, pensei em deitar em outro quarto para descansar, pensei em me recolher na casa dos meus sogros. Contudo, toda a situação chata gerada não me deixou sair da porta daquele quarto. Eu não me sentia culpada, mas sabia que a pessoa que eu amo estava ali naquele cômodo, passando por um momento difícil, machucada e se sentindo traída. Sentei ao chão e coloquei uma playlist para tocar. Felizmente, meu fone estava no bolso.
Após algum tempo, ela abriu a porta e se assustou ao me ver ali.
— Você ficou aí todo esse tempo? Eu ia te chamar para dormir, caso você quisesse... — disse-me Juh, em um tom de voz não muito amigável.
Seus olhos e seu rosto estavam bem avermelhados e inchados.
— Estava à sua espera. Será que a gente pode conversar? — perguntei, ao me levantar.
— A minha cabeça tá... — ela começou a falar e tocou as têmporas, sem terminar o raciocínio.
— Tudo bem, amanhã conversamos. Pode ser? — perguntei, a abraçando pela cintura.
Mas, em um gesto sutil, Júlia se desvencilhou de mim. Se jogou no seu lado da cama e ficamos nos encarando.
— Amor... — recomecei, passando a mão em forma de carinho em seu rosto. Porém, ela o enfiou no travesseiro. — Não quer contato comigo? — perguntei, e ela balançou a cabeça positivamente.
Doeu, mas me recolhi. Juh voltou a me olhar, agora seus olhos estavam úmidos.
— Deixa eu te contar, por favor... — pedi, e ela aceitou.
— Eu realmente não lembrava mais de nada disso... Te juro! Quando estávamos no trânsito, conversamos sobre diversas coisas, e Sarah entrou no assunto sobre não poder gerar, que inspirada em nós duas, Lorenzo e ela já conversam sobre adoção... Seus pais começaram a fazer perguntas, pareciam curiosos, e eu brinquei se eles tinham a intenção de me dar um cunhadinho. Falei completamente sem pretensão. Nem Sr. José nem D. Jacira responderam nada, o que me levou a pensar que eles realmente tinham esse desejo. Imediatamente, questionei se você sabia, e eles negaram. Esse foi o papo!
— Então até a Sarah sabia? — Júlia me perguntou, agora com novas lágrimas no rosto.
Por força do hábito, me aproximei mais um pouco para enxugar, mas lembrei que ela não queria. Então apenas enrosquei nossos dedos mindinhos, em uma tentativa não invasiva de tocá-la.
— Amor... Aconteceu tanta coisa boa nesse dia. Com certeza, assim como eu, ela também esqueceu. E até seus pais serem habilitados, olha quanto tempo passou... Tenta entender que o erro não está na gente... — falei, e depositei um beijinho nos nossos dedos.
Juh recomeçou a chorar e dizia repetidamente:
— Eu não acredito que isso está acontecendo... Tá doendo tanto... Por que isso tá acontecendo comigo?
Passei a mão em suas costas, tentando acalmá-la. Contudo, ela seguia sem querer os meus toques.
— Você me perdoa por ter esquecido? — perguntei, voltando a beijar nossos dedinhos.
Júlia acenou positivamente.
— Mas eu ainda preciso de um tempo. Estou bem chateada — ela falou entre soluços.
Eu concordei. Não estava sendo fácil para Juh e, por mais que eu me julgasse isenta de culpa, estava disposta a aguardar que aquele machucado se cicatrizasse.
Foi uma noite bem difícil para mim e mais ainda para ela. Nós somos acostumadas a dormir bem juntinhas, e como essa turbulência nos afetou, demoramos a dormir. Apenas ficamos em silêncio por horas. O tempo parecia não passar, o sono nunca dava sinal, e só quando o sol já iluminava o quarto consegui dormir um pouco. Acordei t r ê s horas depois, mais ou menos, e Juh já não estava mais ao meu lado.
Desci para a área externa, onde meus sogros estavam tomando café, e após cumprimentá-los, perguntei por Júlia. Eles disseram que ainda não a haviam visto naquele dia. Achei estranho e verifiquei o carro — estava estacionado onde deixei. Peguei um dos quadriciclos dos guias da pousada e fui à procura da minha gatinha.
Depois de muito rodar, avistei um carro próximo de uma imensa árvore e resolvi ir até lá para pedir informações. Porém, ao me aproximar, reconheci o carro e percebi que as duas pessoas deitadas com a cabeça sobre um tronco eram bem conhecidas: Victor e Júlia.
Os dois estavam completamente bêbados. Várias garrafinhas de catuaba vazias e vários fardos fechados; eles estavam bebendo em temperatura ambiente.
— O que vocês estão fazendo? Meu Deus do céu!!! — exclamei.
— Sua irmã está uma fera, me deixando maluco, e seu pai mandou eu dar uma volta para ela não me matar — disse meu cunhado, rindo sem controle.
E Júlia só fazia chorar. Aliás, beber e chorar.
— Amor... Isso não vai te fazer bem... — falei, indo até ela.
— Desde que a gente veio para cá que ela está assim e não fala nada — disse-me Victor.
— Ela não está bem. Não deveria estar bebendo, muito menos essa quantidade e a essas horas — constatei.
— O que Júlia tem? — ele quis saber.
Fiquei em silêncio. Não sabia se Juh ia gostar de compartilhar o assunto.
— Meus pais inventaram que vão ter mais um filho — ela falou, séria, virando o último gole da garrafa e já tentando alcançar outra.
— Acho que já está bom de álcool por hoje — falei, impedindo-a e jogando o fardo aberto um pouco mais para longe.
— Você não manda em mim! — Juh exclamou, tentando se levantar, mas caiu bem nos meus braços.
Eu a apertei bem forte em um abraço, e ela beliscava a minha cintura, agora chorando muito.
— Você me traiu, sabia? Você não devia ter se deixado esquecer. Era algo importante, você deveria ter me contado!!!! — Júlia dizia essas palavras em um tom carregado de raiva.
— Já te pedi desculpas, mas aconteceu. Eu esqueci... — falei, ainda a abraçando. Eu queria tentar acalmá-la.
Juh se afastou de mim bruscamente e agachou o máximo que conseguiu para vomitar, dessa vez caindo sobre a grama.
Victor parecia estar em Nárnia, quase dormindo acordado e com um sorriso no rosto.
— Eu sou pai de dois bebês — o ouvi dizer, abraçado com duas garrafas e um sorriso imenso nos lábios.
— Precisamos ir embora — falei para os dois.
Carreguei Juh e arrastei Victor até a caminhonete. Eles estavam tão moles, parecendo dois bonecos de posto, que resolvi pôr o cinto de segurança.
No caminho, fui pensando em como evitar os meus sogros. Eles não iam curtir nadinha ver a filha naquela situação. Como ainda estavam na pousada, arrisquei ir para a casa deles, mas não deu certo. É tudo muito próximo e o barulho da caminhonete me denunciou.
Entreguei a chave do quadriciclo para o guia, indiquei o lugar onde deixei o outro e pedi que ele levasse um colega para buscar. Também disse para eles fazerem o que desejassem com a bebida. Os dois ficaram felizes da vida.
Assim que desceram do carro, eles começaram a vomitar. O estado de Júlia era pior, então a levei para o banho primeiro. A contragosto e com muito trabalho fui tirando a roupa dela, e Júlia continuava a vomitar quantidades exorbitantes de líquido roxo.
Em dado momento, minha gatinha começou a chorar novamente e me abraçou forte — coisa que ela estava se recusando a fazer.
— Eu te amo tanto... Era para você ter me contado — Juh disse em um desabafo.
— Eu também te amo. Mas eu esqueci... Desculpa por isso, amor... — respondi, mesmo sem ter certeza de que ela se recordaria desse momento depois.
Aproveitei e também tomei um banho. Ao sair, prendi bem a minha toalha e fui segurando bem a dela. As condições de Júlia eram deploráveis. Eu troquei nossas roupas e ela permaneceu deitada.
Nisso, meus sogros chegaram. Eles já haviam nos visto quando chegamos. Acredito que deram um tempo para que a situação se estabilizasse e então vieram ver como os dois estavam.
Victor cismou que não queria tomar banho, porém o aspecto dele também era de sujo. Não tinha como atender a solicitação do bebum. Eu o tranquei no banheiro e falei que só abriria depois que ele aparecesse limpo. Deu certo.
Após toda aquela pauleira, sentei, e o Sr. José e a D. Jacira me pediram conselhos.
— Lore, o que você acha que nós devemos fazer agora? Desistimos depois de tudo? — perguntou minha sogra.
Bom... Eu tinha minhas opiniões sobre toda a situação, porém era uma coisa que eu não achava e nem queria me envolver diretamente. A minha preferência era que eles se resolvessem.
Fiquei em silêncio, como se estivesse pensando na melhor resposta.
— Vou lá falar com ela — disse o meu sogro, ao levantar-se.
— Sr. Zé, melhor deixá-la descansar... Ela bebeu muito. Não acho que buscar um diálogo nessas condições seja a melhor opção — falei, e ele sentou, levando as mãos à cabeça.
— Era pra gente ter conversado antes... — refletiu D. Jacira.
Eu pensei: "Exatamente!"
— A adoção é um gesto lindo, é um desejo que brota da alma e um amor que transborda pelo coração. Acho lindo o que os senhores estão fazendo, um gesto nobre. Seguindo a maioria dos comentários que ouvimos por aí, não existia a necessidade de adotar, já que Júlia é filha de vocês e está sempre presente. Mas, mesmo assim, vocês fizeram essa opção, sabendo que podem mudar a vida de alguém, dar carinho, amor, cuidado, segurança e condições melhores. Isso é valioso. A criança ou o adolescente que adentrar essa família será sortudo, muito feliz de ter pais tão bons, tão generosos e com um coração amoroso — comecei falando, e eles se emocionaram — O que eu acho que faltou, minha sogra já observou, foi uma comunicação com a Juh... Ela não poderia impedir vocês de tomarem a decisão, porém acredito que, se ela soubesse pelo menos do desejo sentido por vocês, seria mais fácil digerir — concluí.
Tentei tomar o máximo de cuidado possível nas palavras que usei. Houve um erro da parte deles, porém seria injusto invalidar o ato de amor e ficar apenas no que não foi feito.
Como eu já disse muitas vezes, a caminhada até a adoção é um pouco solitária. Quando você é habilitado, é a primeira vez que sente algo concreto, sabe que vai pra frente de alguma maneira. Então, eles não tiveram tempo de curtir essa conquista. Eu só quis demonstrar que estava muito feliz por eles também.
— Vou preparar algo pra ela e o Victor comerem. Beberam isso tudo sem nada no estômago — disse a minha sogra, secando as lágrimas e se dirigindo à cozinha.
— Acho que essa atitude é o caminho que os senhores devem tomar. Na cabecinha dela está passando um monte de coisas novas, nunca sentidas ou imaginadas nas perspectivas dela. Então, saber que o sentimento, amor e cuidado de vocês com ela não vai mudar vai ser importante — falei.
~ Ai, gente... E isso porque eu não gosto de me meter, viu?!
Não sei se dá para me entender, eu realmente não gosto, mas não vi saída. Eles estavam perdidos. Quando, por si só, minha sogra lançou a luz no fim do túnel, eu enxerguei a oportunidade de dar um empurrãozinho.
Então os dois foram ao quarto da Juh levar um suco com alguns pães e bolos. Minha sogra logo voltou, disse que ela estava acoada no canto da cama, mas pelo menos o suco estava bebendo.
Victor já estava bem melhor (em questão de náuseas, só se manteve alegre demais e abobado). Minha sogra deu um café bem forte e o revigorou.
Enquanto estávamos ali conversando, ouvimos gritos vindo do quarto. Meu sogro e Juh já estavam a sós há algum tempo.
— SUA FILHA TINHA N O V E ANOS E DEU UMA AULA DE COMO ACOLHER UM IRMÃO! — esbravejou o meu sogro.
Minha sogra e eu imediatamente nos levantamos e fomos até lá.
— A MIH QUERIA UM IRMÃO, IMPLORAVA POR UM. ELA DESEJAVA ISSO! EU NUNCA PEDI DROGA DE IRMÃO NENHUM! — respondeu Júlia, novamente chorando. Seu tom de voz era de cortar o coração.
— TEM COISAS QUE NÃO DEPENDEM DO SEU QUERER OU NÃO, ENTENDA ISSO! — continuava o Sr. José.
Quando entrei no cômodo, me assustei com a cena que vi, pois meu sogro segurava firme no pulso da Juh e apontava o dedo no rosto dela.
Sem pensar duas vezes, nos metemos no meio dos dois.
— Lore, eu quero ir pra casa agora — ela pediu, chorando muito.
— Nós vamos — eu confirmei, a olhando por cima do ombro enquanto mantinha meus braços esticados.
Nesse momento, acredito que caiu a ficha de Sr. Zé sobre o que ele tinha feito.
— Desculpa... Desculpa, eu... — ele começou a dizer, desesperado.
— Nunca mais eu volto aqui. Sejam felizes com a nova família de vocês — Juh falou, saiu e já foi se dirigindo ao nosso carro.
Minha sogra ficou muito preocupada, mas, nesses momentos, ela prefere se manter ao lado do marido, e foi o que ela fez. Fui atrás de Júlia, que já estava sentada no banco do carona, completamente desolada.
— Pera aí, eu vou com vocês — falou Victor, tirando animação não sei de onde.
No caminho, para nível de comparação, eu era o Shrek e ele o Burro, viajando para o reino. A minha paciência era mínima, e ele não ajudava.
— Você tá assim porque seus pais vão adotar uma pessoa? Eu estaria soltando fogos pelo cú se meus pais decidissem fazer isso! Iam parar de pegar no meu pé. Juh, tenta enxergar o lado bom. Na verdade, pra mim, só tem lado bom! — ele falou, se esticando no banco de trás.
— Cala a boca, Victor! — nós falamos juntas.
— Você não tá ajudando, véi... — completei.
Mas ele estava conversador demais pra nos escutar. Graças a Deus, pelo menos mudou o rumo da conversa. Começou a falar dos bebês e que não iria beber até eles nascerem.
Eu duvidei no momento, achei que era o porre falando por ele, mas realmente aconteceu.
O deixei na casa de Loren e fomos para a nossa.
— Não vai assistir ao jogo? — Juh me perguntou.
— Não... Qualquer coisa assisto aqui mesmo. Não quero sair de perto de você, amor... — falei e tentei um abraço, que infelizmente não durou muito.
— Vai... É melhor você ir. Se você não for, vão querer trocar o jogo pra cá. E olha pra mim... Tá visível que eu não tô bem, não vou saber disfarçar e todos vão ficar preocupados... Não quero isso, não quero conversar com ninguém — Júlia disse e se jogou na cama.
— Juh... Mas você não está bem. Eu não vou me sentir bem sem você e sabendo do seu estado — disse-lhe, sentando ao seu lado e fazendo carinho em seu cabelo.
— Você pode, por favor, fazer o que eu estou pedindo?! — ela disse rispidamente, arrancando minha mão dela.
Eu não queria, mas me chateei com a atitude. Não disse mais nada e apenas fui para a casa da minha irmã assistir à final do mundial entre Flamengo e Liverpool.
Continua...🔥
PS: Eu esqueci de contar no capítulo anterior, porém nós levamos as nossas malas e a de todos já para o final de ano, para a pousada.