O telefone tocou às três e meia da madrugada. O nome de Aldebaran piscava na tela com a insistência de um náufrago prestes a se afogar.
Atendi sem dizer nada. O silêncio do outro lado me disse tudo.
— Você bebeu de novo? — perguntei, seco. Nem me dei ao trabalho de fingir paciência.
— Me desculpa, Leo… eu tentei… — a voz dele era arrastada, vulnerável. — Foi o Pedro. Ele apareceu no passeio. Com ela. Com meus filhos. Eles... eles riram de uma piada dele. Como se ele fosse o pai.
Fechei os olhos por um segundo. A imagem de Aldo, desequilibrado, tentando se segurar na própria sombra, era quase patética. Quase.
— Estou indo.
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Mais cedo naquele dia, eu o havia encontrado no centro de treinamento. Ele estava suando no tatame, com o tipo de concentração que só a culpa dá.
— Você devia levar sua família pra passear — sugeri, jogando a provocação como quem joga carne pra um cão ferido.
— Passear? — Ele me olhou, desconfiado.
— Isso. Sair do ringue por um instante. Vai a um parque. Faz de conta que é um pai funcional. Pode ser que até se convença disso.
— Você fala como se eu fosse um lixo.
— Não. Lixo é reciclável. Você, no máximo, é material orgânico em decomposição.
Ele deu dois passos em minha direção, o peito estufado, mas hesitante.
— Você não sabe o que é… ver sua filha feliz com outro cara.
— E você não sabe o que é ser um segredo de infância. Meu pai só me reconheceu depois dos dez. Antes disso, eu era o erro da amante. Cresci em Paraisópolis, sem sobrenome, sem quarto, sem nada.
Aldo empalideceu. A postura caiu.
— Paraisópolis? Eu também…
— Olha só, mais uma coincidência trágica. Devíamos escrever um livro: "Do barraco ao fracasso".
Ele riu, sem graça, e abaixou o olhar.
— Talvez eu leve eles pra sair… tentar alguma coisa diferente.
— Faça isso. Quem sabe você convence sua filha de que ainda serve pra alguma coisa além de escândalos.
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Ele tentou. Me mandou uma foto brega dos três no parque, sorrisos tortos, roupas mal combinadas. Mas claro que a paz não duraria.
Pedro Moraes apareceu. O novo namorado da ex-mulher. O lutador limpinho da televisão. Camila, a filha de Aldo, tirou uma foto com ele. Sorrisos genuínos.
O mundo de Aldo desabou. E, como de costume, ele caiu na garrafa.
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O apartamento era um retrato do caos: garrafas no chão, um pote de sorvete vazio, cheiro de álcool e derrota.
— Você é previsível demais, Aldo. Devia colocar alarme de recaída no celular.
— Não começa, Leo…
— Não vou começar. Vou terminar. Essa farsa de redenção, esse teatrinho de pai arrependido… você é só um covarde com complexo de mártir.
Ele me encarou, olhos vermelhos. Então me empurrou contra a parede, o braço bloqueando minha fuga. Estávamos cara a cara, com ódio e frustração escorrendo entre nós.
— Você me humilha como se fosse melhor. Mas você é tão quebrado quanto eu.
— A diferença é que eu sou funcional. Você é uma bomba-relógio molhada: não explode, só fede.
Ele vacilou. A respiração pesada. E então… chorou. Não discretamente. Desabou como um prédio mal projetado. Eu me afastei, peguei minhas chaves e saí sem olhar para trás.
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Na manhã seguinte, ele me ligou. Voz trêmula, devastada.
— Me perdoa, Leo… por tudo. Eu vou mudar. Eu juro.
Desliguei. Eu não acreditava. Mas talvez… acreditasse um pouco.
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Com a cabeça ainda quente, resolvi avançar na investigação sobre minha querida irmã Luiza e o canalha do Felipe. Vasculhei conversas, mensagens, rastros digitais. E ali estava: Felipe, o moralista, enrolado com a filha de um cliente importante da Luiza. A garota, rica, entediada e cheia de caprichos, vivia visitando o escritório com desculpas esfarrapadas e depois saía para longas tardes com Felipe. Clichê de novela ruim, mas real o suficiente pra ser útil.
Delícia de podre, não?
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No fim da tarde, alguém bateu à minha porta. Uma batida aflita, de gente sem dignidade.
Abri e encontrei Olga, tremendo, olhos esbaforidos e maquiagem borrada como se tivesse brigado com um furacão.
— Ele me mandou abortar, Leo! Disse que eu era pobre, que eu não era nada perto da princesinha Luiza Sampaio! — cuspiu as palavras com raiva, quase me empurrando ao entrar.
— Calma. Senta. Me conta tudo com detalhes. — Fui até a cozinha buscar um copo d’água. Quando voltei, ela ainda tremia.
— Eu continuei com ele, Leo. Mesmo depois daquela confusão. Mesmo depois de você ter dado um jeito de salvar ele do meu marido. — Ela respirou fundo. — Eu sou uma idiota, eu sei. Mas… eu me apaixonei. E agora eu tô grávida.
— Tem certeza que é dele?
— Meu marido fez vasectomia faz cinco anos. E Felipe foi o único… o único nesses últimos meses. — A voz dela se quebrou. — Ele me tratou como lixo. Disse que era só diversão. Que Luiza era o futuro dele, e eu… eu era só entretenimento barato.
— Polaca dos infernos… — murmurei, balançando a cabeça. — Você se meteu com o diabo e agora quer que eu te traga água benta?
— Não quero milagre. Quero vingança. Quero ver ele rastejar.
Suspirei, sentando de frente pra ela.
— Então você veio à pessoa certa.
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À noite, fui até o centro de treinamento. Aldo estava com um grupo de adolescentes, ensinando técnica de clinch como se estivesse salvando o mundo com cada golpe.
Quando me viu, o clima entre nós oscilou.
— Vim com uma proposta — falei. — Centro de treinamento em Paraisópolis. Projeto social. Você no comando. Eu na gestão. Sem escândalos. Sem recaídas.
— Isso é sério?
— É. Porque mesmo a merda pode virar adubo, se bem trabalhada.
Ele hesitou. Mas dessa vez, não fugiu.
— Vamos fazer isso direito, então.
Sorri.
— Uma chance. Só uma. Não desperdiça.