Felipe estava recostado no sofá do meu apartamento, com aquele sorriso idiota de sempre e um olhar que parecia escavar minha alma.
— Você anda estranho, Leo. O que está tramando? — perguntou, casual, como quem oferece café.
— Tramar? — sorri, encostando na bancada com um copo de uísque na mão. — Estou ocupado demais limpando a bagunça que você e sua amante deixaram na imprensa.
— Não precisa mentir pra mim. Eu te conheço. — Ele se aproximou, olhos cravados nos meus. — Você pode não admitir, mas ainda sente algo.
— Claro que sinto. Nojo.
Ele riu, como se minha resposta fosse um elogio.
— Eu vim te ver, só isso. — disse, como se não fosse o próprio veneno que destruiu o que sobrou de mim anos atrás.
— Então já viu. Pode ir.
Ele me olhou por mais um segundo, depois saiu sem se despedir. E eu fiquei ali, olhando o copo na minha mão, como se dentro dele estivesse alguma explicação plausível pro tipo de homem que eu ainda deixava entrar pela minha porta.
---
Mais tarde, o celular tocou. Aldo.
— Leo… vai me odiar por isso, mas preciso de você.
— Estou ouvindo.
— Tenho uma reunião com os construtores no terreno. Júlio ainda está puto comigo. Preciso que você fique com Diego e Camila esta tarde.
— Você quer que eu seja babá de dois adolescentes que me odeiam?
— A Camila não te odeia.
— Ainda.
— Me ajuda, vai.
Suspirei.
— Manda o endereço. E tenha certeza de que vou descontar isso com juros.
---
Camila abriu a porta com o olhar de quem me colocaria em chamas se tivesse poderes.
— Meu pai te mandou?
— Não. Vim por vontade própria, amo ser maltratado por adolescentes.
— Você não devia estar aqui.
— Se eu ganhasse uma moeda cada vez que escuto isso…
Ela cruzou os braços, furiosa.
— Você não é da nossa família. Nunca será.
— Ótimo. Menos reuniões de Natal constrangedoras.
Ela me lançou um olhar cortante e foi pro quarto. Diego apareceu em seguida, segurando um microfone de karaokê.
— Ela vai se acalmar.
— Você parece o mais velho dos dois.
— Quer cantar?
— Só se puder escolher a música.
---
Duas horas depois, estávamos gritando “Bohemian Rhapsody” no sofá como dois desajustados felizes, enquanto Camila continuava trancada no quarto.
Eu tinha esquecido o quanto era bom rir.
---
Enquanto isso, no bar onde o tempo parecia não passar desde 1998, Aldo e Júlio se encaram como dois machos alfa tentando decidir quem ia uivar primeiro.
— Então é isso? — Júlio começou. — Vinte anos te aguentando, cuidando das suas merdas, te puxando da sarjeta, e agora eu sou descartável?
— Ninguém te descartou.
— Não? Porque foi exatamente assim que me senti quando me tirou da equipe por causa daquele... do Leônidas.
— Você tá confundindo as coisas.
— Não, Aldo. Você que tá misturando. Ele te dá uns beijos e vira prioridade?
Aldo bateu o copo na mesa.
— Para com essa merda, Júlio! Você não sabe nada do que tá acontecendo.
— Sei que te amo como um irmão. E que você se deixa levar por gente que some na primeira tempestade.
Silêncio.
Aldo respirou fundo.
— Me desculpa. Eu errei com você.
Júlio não respondeu de imediato. Depois, sorriu com tristeza.
— Você é um idiota, mas ainda é meu irmão.
Eles brindaram. Um acordo selado no amargor da cerveja quente.
— Tem mais uma coisa. — Júlio completou. — Freitas quer te patrocinar. O torneio estadual. Ele tá interessado em apostar alto em você.
Aldo arqueou uma sobrancelha.
— E você confia nele?
— Não. Mas é grana. E você precisa lutar.
Aldo assentiu.
— Liga pra ele. Vamos conversar.
Aldo mexia no celular, ainda com a expressão séria do bar. O nome Freitas piscava na tela. Júlio, sentado de frente pra ele, mantinha os braços cruzados, como se pudesse adivinhar cada palavra que viria da boca do empresário.
— Boa noite, senhor Freitas. Aqui é Aldo Rocha. O Júlio me falou do seu interesse.
A voz do outro lado era grave, quase teatral.
— Finalmente. Estava ansioso pra falar com você, Aldo. Sentei com seus vídeos, li tudo que puderam me mandar. Você é bruto, velho. Crú. Isso me interessa.
Aldo franziu o cenho.
— E o que exatamente o senhor quer?
— Quero investir. Treino, equipe, visibilidade. Um bom retorno de imagem. Mas tem uma condição.
Aldo olhou pra Júlio, que imediatamente retesou a mandíbula.
— Condição?
— Quero exclusividade na sua imagem durante os próximos dois anos. Isso inclui entrevistas, lives, ações sociais. Tudo com minha marca. E mais uma coisa... — a voz fez uma pausa dramática — quero que a luta da sua volta seja no campeonato estadual. Grande. Com mídia em cima. Você contra Pedro Moraes.
O sangue subiu direto do estômago de Aldo pro rosto.
— Pedro?
— Ele aceitou. Está em ótima forma, mas você tem mais nome. Vai dar audiência.
Júlio sussurrou, surpreso:
— Esse desgraçado ainda quer brigar?
Aldo apertou os punhos.
— Isso é pessoal. Eu não sei se...
— Ah, vamos lá, Rocha. Essa é sua chance de se redimir publicamente. Mostre que ainda pode, que não é só um passado glorioso e uma família destruída. Mostre que é o homem que todos querem ver vencer.
O silêncio entre os três ficou denso. Júlio olhava pra ele como se esperasse a rendição ou a ruína.
Aldo, enfim, respondeu:
— Mande os papéis. A gente conversa pessoalmente.
— Ótimo. Eu mesmo vou até o centro de treinamento amanhã cedo. Gosto de olhar nos olhos de quem vou investir.
A ligação terminou. Aldo passou a mão no rosto e tomou um gole do uísque que Júlio pedira há minutos.
— Isso é loucura. — murmurou Júlio.
— É.
— E você vai mesmo aceitar?
Aldo olhou pro copo por alguns segundos.
— Pedro me tirou tudo. A dignidade, a esposa, o nome. Tá na hora de devolver o favor.