Aos que ousarem seguir pelas próximas linhas eu aviso uma coisa, a narrativa avança de forma um pouco lenta, por conta do drama, de tudo o que acontecerá
A trama caminhará cada vez mais para uma subversão que ficará mais e mais insana, se não tiver estômago para histórias pesadas, com direito a sequestro, cárcere, controle mental e muita perversidade, sugiro nem chegar próximo a essas linhas. A sua avaliação ajudará a manter a história viva, então não deixem de comentar, de votar, assim meus amigos subversivos, continuarei publicando aqui o que talvez será o conto mais insano que já criei
Boa leitura subversiva a todos vocês
A chuva fina caía como um véu sobre o cemitério, um murmúrio constante que parecia respeitar o luto silencioso de todos ali presentes. A manhã estava fria, e o céu, encoberto por nuvens espessas, refletia o peso da perda que se impregnava no ar. Cada respiração era um sussurro carregado de dor contida. Homens de terno escuro e mulheres envoltas em vestidos discretos se reuniam em torno do caixão de mogno reluzente, com o brasão da família esculpido na tampa
Aquela era uma tarde difícil para todos, cheia de dor e de muita tristeza, aquela morte foi muito de repente e ninguém estava conseguindo lidar com isso, nem mesmo Rafael que parecia o mais controlado diante de todos ali
Rafael manteve os olhos fixos na lápide, mas sentiu o peso da presença do homem ao seu lado, como se a própria sombra dele estivesse tomando o lugar da chuva. O som das gotas batendo no solo parecia ficar mais forte, quase abafando os próprios pensamentos de Rafael. O homem ainda estava ali, ao seu lado, imóvel, como uma figura esculpida pela mesma umidade que escorria pelo caixão. O peso das palavras do estranho começava a se infiltrar na mente de Rafael, sem que ele soubesse como reagir.
— Apesar de tudo, seu pai sempre te amou... — A frase, tão simples e direta, parecia ter um peso além de suas palavras. Rafael olhou para o homem novamente, tentando buscar algum sinal de emoção ou sinceridade, mas o rosto daquele desconhecido estava impenetrável. O sorriso que ele havia esboçado não chegara aos olhos — estavam vazios, como um reflexo distorcido.
Rafael sentiu a necessidade de afastar-se, mas algo o mantinha no lugar, algo como uma força invisível que o impedia de sair. Como se aquele homem tivesse o poder de amarrá-lo ali, mesmo sem tocá-lo. E então, a chuva começou a cair mais forte, como se o próprio céu estivesse ciente do crescente desconforto de Rafael.
— Você sabia sobre o que ele estava fazendo? — A pergunta saiu sem querer. Não era uma pergunta inteligente, nem uma que ele soubesse realmente como responder. Mas a curiosidade, instigada pela tensão do momento, tomou conta dele.
O homem finalmente o olhou diretamente nos olhos, e o impacto foi instantâneo. Havia algo estranho e impossível de se identificar naquele olhar, como se ele estivesse vendo através de Rafael, penetrando no fundo de sua alma. O silêncio que se seguiu foi denso, quase palpável, como se o tempo tivesse parado. A água escorria pela face de ambos, misturando-se com as lágrimas não derramadas, e por um momento, Rafael teve a sensação de que nada no mundo estava real.
— Sobre o que seu pai estava envolvido? — O homem disse de forma baixa e tranquila, quase como se fosse uma confissão. Mas, ao mesmo tempo, a sua voz carregava um tom que não era de explicação. Era como se ele estivesse provocando uma revelação futura, algo que ainda estava por vir, mas que Rafael deveria entender antes de ser tarde demais.
Rafael não soube o que dizer. A palavra "envolvido" pesava no ar, como se a pergunta não fosse sobre o que Alberto fazia em vida, mas sim sobre algo muito mais profundo, algo que Rafael não sabia e talvez nunca fosse capaz de entender.
— Eu... — Rafael começou, sem saber como continuar. Ele não sabia nem o que pensava sobre seu pai, nem o que pensava sobre aquele homem. — Ele estava em alguma coisa... escura? — perguntou, hesitante.
O homem não respondeu imediatamente. Ele simplesmente olhou para o caixão, para o corpo de Alberto enterrado ali, e uma leve contração no canto de seus lábios indicou que ele sabia algo que Rafael não sabia. O homem então se inclinou ligeiramente para a frente, como se estivesse prestes a revelar um segredo, mas não o fez. Em vez disso, disse, com uma calma que parecia despropositada para o momento:
— Seu pai era, sem dúvida, um homem de grande força. Mas havia algo mais nele, algo que nem mesmo ele compreendia. Algo que foi além do que ele pôde controlar.
Rafael engoliu em seco. O peso daquela frase fazia sua mente girar. O que o homem estava tentando dizer? O que ele sabia? Ele estava jogando com ele? Ou havia algum outro tipo de relação que Rafael nunca havia suspeitado?
O vento aumentou, agitando as folhas ao redor. Rafael apertou os punhos, tentando manter a calma, mas uma sensação crescente de que algo estava fora de lugar se espalhou dentro dele. As palavras daquele homem não pareciam apenas uma resposta a uma pergunta. Pareciam um aviso. Mas o que ele deveria fazer com aquilo?
O homem deu um passo à frente, quebrando o silêncio tenso que os envolvia. Era como se ele soubesse que havia dito o suficiente — ou talvez até um pouco mais do que o necessário.
— Você descobrirá tudo quando for o momento certo, Rafael. — E, com essa última frase enigmática, o homem virou-se e começou a se afastar, sem pressa, com a mesma calma quase sobrenatural. Seus passos eram firmes, mas sem pressa de sair, como se ele soubesse que já tinha cumprido sua missão ali.
Rafael permaneceu no mesmo lugar, o olhar fixo no caixão à sua frente, tentando processar o que acabara de acontecer. O vento e a chuva agora pareciam abafados, como se o mundo à sua volta tivesse sido subitamente silenciado. Ele queria seguir o homem, queria entender o que ele sabia, mas algo dentro dele dizia que ir atrás dele agora seria um erro. Havia algo mais em jogo, algo que ainda estava por ser revelado.
À medida que o homem se afastava, Rafael sentiu o vazio da presença dele se dissipar, mas o peso das palavras e daquela interação continuava a pairar sobre ele, como uma sombra crescente.
Quando o homem finalmente desapareceu na névoa da chuva, Rafael olhou mais uma vez para a lápide de seu pai. Algo não estava certo. Havia algo no ar, algo profundamente errado. E ele sabia que a verdade sobre o que aconteceu com Alberto não estava enterrada ali.
A questão era: até onde Rafael estava disposto a ir para descobrir o que realmente estava acontecendo?
A chuva parecia não dar trégua. O som contínuo das gotas batendo no chão se misturava com o murmúrio dos filhos e da mãe. Mariane, a viúva, segurava o guarda-chuva com as mãos trêmulas, o olhar distante, fixo no ponto onde o cientista havia desaparecido. O cheiro da terra molhada e das flores parecia agora um pano de fundo para o turbilhão de pensamentos que a consumiam. Ela sentia algo apertando seu peito, um instinto sombrio que não conseguia ignorar.
— Eu nunca confiei naquele homem, — ela disse, a voz baixa, quase inaudível, mas firme o suficiente para que os filhos, Lucas e Jonatan, escutassem. Eles estavam ao seu lado, mas o clima pesado da despedida fazia com que a expressão de cada um deles fosse carregada de algo que não era apenas tristeza, mas também apreensão.
Lucas, o mais velho, olhou para a mãe, franzindo a testa, com uma dúvida visível. Ele ainda estava assimilando a perda do pai, e as palavras dela não pareciam encaixar com o momento.
— Aquele homem? — ele perguntou, sem esconder a surpresa. — O que ele tem de errado, mãe?
Mariane deu um pequeno suspiro, seus olhos se voltando para o horizonte, como se procurasse uma resposta que soubesse que não viria facilmente. Ela sempre soubera, no fundo, que havia algo de estranho naquele cientista. Algo que ia além de um simples relacionamento profissional com seu marido.
— Eu sempre soube que havia algo estranho nele, — continuou ela, a voz ainda baixa, mas carregada de uma desconfiança que parecia ter se acumulado por anos. — Quando Alberto estava perto dele, havia algo em seu comportamento que mudava. Ele... ficava diferente. Como se estivesse se perdendo em algo que não compreendia, como se o homem estivesse controlando mais do que ele queria admitir.
Jonatan, o mais jovem, sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir as palavras da mãe. Ele sabia que o relacionamento entre seus pais tinha sido tenso em momentos, mas nunca imaginara que isso envolvesse alguém como aquele homem, um simples cientista, ou assim parecia à primeira vista.
— Você acha que... ele tinha algo a ver com o que aconteceu com o papai? — Jonatan perguntou, sua voz trêmula. A dúvida estava estampada em seus olhos, misturada com uma raiva ainda crescente pela morte repentina de Alberto.
Mariane olhou para o filho, seus olhos refletindo uma dor silenciosa, mas também uma sensação de urgência, como se ela sentisse que algo estava prestes a ser revelado.
— Não sei, — respondeu ela, a expressão tensa. — Mas depois de vê-lo aqui hoje, com aquele olhar dele, lembro-me claramente de como Alberto agia quando estava perto dele. Como se... como se ele perdesse parte de si mesmo. E não é só isso. Há algo mais. Algo que eu nunca consegui identificar, mas que sempre esteve ali, pairando no ar.
Lucas, agora com o olhar mais sério, se aproximou da mãe, tentando entender. Ele sempre teve uma relação de admiração e respeito pelo pai, mas nunca pensara que as coisas poderiam ser tão complicadas.
— Você está dizendo que ele estava manipulando o papai? — Ele ainda estava tentando compreender, mas as palavras de sua mãe estavam criando uma imagem sombria e inquietante de seu pai, alguém que ele via como um pilar, alguém imbatível, até mesmo invencível.
Mariane olhou para ele, os olhos marejados de lágrimas não derramadas, e com uma expressão que transbordava a mistura de dor e desconfiança, ela respondeu:
— Eu não sei o que ele fez, Lucas... Mas sei que Alberto não era mais o mesmo quando aquele homem estava por perto. Algo mudou nele, algo... escuro.
A conversa ficou em silêncio por um momento. O vento e a chuva, agora mais intensos, eram os únicos sons ao redor. Mariane olhou para os filhos, e uma sensação de impotência a envolvia. O que ela sabia parecia insignificante diante da grandeza da perda. Mas, ao mesmo tempo, havia algo em sua mente que não a deixava descansar — algo que ela não sabia como explicar, mas que sentia com todas as fibras do corpo. Ela precisava descobrir o que realmente acontecera, e se esse homem estava, de fato, envolvido na morte de seu marido, ela faria o que fosse necessário para entender a verdade.
Jonatan, ainda olhando para a mãe, suspirou, como se tentasse digerir tudo o que ela dissera.
— Eu não sei o que pensar disso tudo, mãe. Mas... vamos investigar. Precisamos saber o que aconteceu.
Mariane assentiu lentamente, os olhos sombrios e decididos. Ela sabia que a dor da perda de Alberto seria eterna, mas o que ele deixara de legado para ela, os filhos e o império que construíra precisava ser entendido, completamente. Algo havia sido deixado de lado, e agora, ela tinha certeza de que o passado não ficaria enterrado como pensava. Não até que ela soubesse a verdade.
A chuva continuava castigando o cemitério, e o cheiro de terra molhada misturava-se ao aroma das flores deixadas sobre a lápide. Mariane mantinha os braços cruzados sobre o peito, o olhar fixo nos filhos, como se sua decisão já estivesse tomada antes mesmo de verbalizá-la.
— Eu vou investigar isso sozinha. — Sua voz saiu firme, sem margem para discussão. Lucas e Jonatan se entreolharam, surpresos com a determinação da mãe. — Conheço um detetive experiente, alguém que pode conduzir essa investigação melhor do que nós. Vocês não têm ideia de onde começar, mas ele sabe exatamente o que fazer.
Lucas franziu a testa, desconfortável.
— Mãe, não acha melhor que façamos isso juntos? Se há algo errado na morte do papai, temos o direito de saber.
Mariane negou com a cabeça, impaciente.
— Justamente por isso. — Seu olhar percorreu os dois filhos. — Vocês merecem saber a verdade, mas se ficarmos tateando no escuro, vamos acabar chamando atenção demais. Eu conheço esse detetive há anos. Ele é profissional, discreto e eficiente. Se há algo escondido por trás da morte de Alberto, ele descobrirá.
Jonatan respirou fundo, a chuva escorrendo pelo seu rosto.
— Tem certeza de que é a melhor opção?
— Tenho. — Ela manteve o olhar duro. — E farei isso sozinha.
Os filhos entenderam que não havia espaço para objeção. O tom da mãe era irrefutável. No instante seguinte, passos soaram sobre a terra molhada. Os três se viraram e viram o cientista passando a poucos metros deles, ajeitando o terno com calma, como se estivesse completamente alheio à conversa. Mas então, ele ergueu o olhar e, por um breve momento, seus olhos analisaram a expressão carregada dos três.
Mariane sentiu o estômago revirar. O olhar dele era observador demais. Como se pudesse sentir que estavam falando sobre ele. Seu rosto não expressava nada evidente, mas o jeito como seus olhos demoraram um pouco mais em Mariane antes de seguir em frente a incomodou profundamente. Ele sabia que ela desconfiava.
O cientista seguiu seu caminho em passos calculados, desaparecendo sob os galhos retorcidos das árvores que cercavam o cemitério. Antes que Mariane pudesse respirar fundo e tentar afastar aquele pressentimento ruim, outro som de passos surgiu atrás dela. Dessa vez, Rafael. Ele caminhava com a postura rígida, as mãos dentro dos bolsos, a expressão séria, mas menos carregada do que momentos antes.
— O que aquele homem queria com você? — Mariane não perdeu tempo. Seu olhar afiado pousou sobre o filho mais velho, tentando captar qualquer traço de hesitação.
Rafael sustentou o olhar da mãe com naturalidade. Não gaguejou, não desviou os olhos.
— Ele só queria me ajudar nesse processo, se eu precisasse. — Sua voz saiu firme, sem qualquer hesitação. — Disse que meu pai sempre se preocupou comigo e que, se eu quisesse, ele estaria disponível para conversar.
Era uma mentira bem construída, envolta em meias-verdades. E Rafael a disse com tanta segurança que nem mesmo sua mãe, sempre atenta aos detalhes, percebeu qualquer brecha. Mariane manteve o olhar nele por alguns segundos, buscando algo a mais, mas, ao não encontrar, apenas soltou um suspiro cansado.
— Se precisar de ajuda, me avise.
— Eu sei. — Rafael assentiu levemente.
Apesar de acreditar na explicação do filho, Mariane manteve sua desconfiança com relação ao cientista. Ele era um enigma, um que seu instinto gritava para não ignorar. E ela não o ignoraria.
Os dias passaram como um borrão silencioso, carregando consigo a realidade inescapável da perda. O funeral havia sido um choque brutal, mas agora, com a ausência de Alberto se impregnando no cotidiano, Rafael sentia o peso da verdade de maneira ainda mais intensa. O pai estava morto. Irrevogavelmente. E a vida seguia em frente sem esperar por ele.
Ele evitava esse sentimento sempre que podia. Se mantinha ocupado, preenchia sua agenda com compromissos, forçava a mente a se agarrar a qualquer coisa que o distraísse. Mas, no fim, a ausência de Alberto era uma sombra persistente, um silêncio incômodo que pairava sobre todo aquele local
Naquela manhã, Rafael se dirigiu à sede da construtora para uma reunião com os executivos e membros do conselho. Ele precisava começar a se familiarizar com o império que, gostasse ou não, agora estava sob sua responsabilidade.
O edifício imponente da empresa se erguia contra o céu nublado, um monólito de vidro e aço que carregava o legado do seu pai em cada andar. O nome "Moura Engenharia e Construções" brilhava em letras metálicas na fachada, e Rafael sentiu um nó se formar em sua garganta ao encarar aquilo. Ele sempre evitou se envolver nos negócios da família, mantendo-se à margem, mas agora não tinha escolha.
Assim que adentrou a sala de reuniões, encontrou uma mesa longa, cercada por rostos conhecidos e desconhecidos. Homens e mulheres de expressão séria, com pastas abertas e telas iluminadas, prontos para mergulhar no que quer que estivesse na pauta.
A reunião foi um mergulho no mundo que seu pai comandava com maestria. Projetos milionários, contratos em andamento, expansões planejadas com precisão cirúrgica. Rafael ouvia, absorvia cada detalhe, mas não deixava de sentir que estava ocupando um lugar que não lhe pertencia. O conselho o observava com atenção, avaliando cada reação sua. Alguns pareciam dispostos a ajudá-lo, outros, desconfiados, esperando para ver se ele conseguiria sustentar o peso do império.
Quase uma hora depois, a reunião terminou. Executivos começaram a se dispersar, alguns trocaram palavras de incentivo, outros mantiveram a reserva profissional. Rafael permaneceu ali por mais alguns instantes, sozinho na sala vazia, olhando para o enorme mural de vidro que dava vista para a cidade.
Inspirou fundo antes de se dirigir ao escritório que, até pouco tempo atrás, pertencia a Alberto.
Ao entrar, o cheiro familiar do ambiente o envolveu. Era um espaço elegante e imponente, sem excessos, mas meticulosamente organizado. A cadeira de couro preto continuava girada levemente para a direita, do jeito que seu pai costumava deixá-la. O relógio de mesa ainda marcava o horário exato em que Alberto saíra dali pela última vez.
Rafael se aproximou da grande estante de madeira e abriu uma das gavetas inferiores, repleta de arquivos. Começou a folhear os documentos, percorrendo projetos, relatórios, contratos antigos. E então viu algo que o fez parar.
Em meio a tantos documentos, havia um conjunto de pastas separadas. Projetos menores, rabiscados com anotações à mão. Ele reconheceu sua própria letra misturada à do pai. Eram os projetos em que haviam trabalhado juntos, anos atrás.
Por um instante, esqueceu a pressão, o peso da herança, a sensação de ser um impostor. Aquele detalhe provava que seu pai o considerava mais do que um filho desgarrado. Ele viu potencial nele. Guardou aqueles trabalhos como algo que valia a pena manter. Um alívio estranho percorreu seu peito. Não era o suficiente para preencher o vazio, mas trouxe uma pequena fagulha de conforto.
Rafael se recostou na cadeira e olhou ao redor. O escritório, apesar de imponente, parecia um casaco que não lhe servia bem. Estava sentado ali, mas não se sentia o dono daquele espaço. Pensou por um momento em fechar aquele escritório e escolher uma das muitas salas do prédio para montar o seu próprio. Algo mais próximo dele. Algo que não o fizesse sentir como se estivesse ocupando um lugar que não era seu.
Seria um espaço minimalista, sem tantas lembranças pesando sobre os ombros. Seu pai era meticuloso, detalhista, gostava de colecionar pequenas relíquias que contavam sua história. Rafael era o oposto. Mesmo aos 36 anos, nunca teve essa necessidade de guardar traços do passado. E talvez fosse hora de construir algo realmente seu.
Rafael tentava evitar esse sentimento, afundando-se no pragmatismo. Evitava encarar os porta-retratos espalhados pela mansão da família e se mantinha ocupado o máximo possível. Mas a ausência estava lá, nas palavras que não viriam mais, nas decisões que agora só cabiam a ele tomar. Ele não sabia se era a dor da perda ou o peso da sucessão que mais o incomodava.
Foi com esse turbilhão dentro de si que, naquela manhã, dirigiu-se para a construtora. Seu nome já estava em documentos, e os diretores da empresa o esperavam para mais uma reunião formal. A sala de conferências era ampla, com uma longa mesa de madeira escura e janelas de vidro fumê que revelavam a vista dos arranha-céus da cidade. Executivos de terno bem alinhado se sentavam em silêncio, esperando a reunião começar.
À frente da mesa, sentiu-se como um estranho. Observou os rostos ao redor e percebeu algo que o incomodou profundamente: não era visto como um sucessor natural. Ele sabia que, para a maioria ali, não era o herdeiro ideal. Alberto sempre foi o comandante absoluto daquele império; Rafael, por outro lado, sempre viveu à sombra dele, muitas vezes ignorando as oportunidades de se envolver no negócio. Agora, ali, na posição que antes fora do pai, ele sentia cada olhar como um julgamento silencioso.
A reunião começou, e Rafael ouviu atentamente os relatórios sobre finanças, projetos em andamento e futuras expansões. A linguagem do mundo dos negócios não lhe era completamente estranha, mas faltava a segurança de Alberto. Seu pai teria interrompido os diretores em diversas ocasiões, feito perguntas afiadas, contestado projeções. Rafael, no entanto, manteve-se mais na defensiva, absorvendo tudo sem demonstrar suas inseguranças.
Quase uma hora depois, a reunião terminou, e ele se viu sozinho no escritório do pai. Olhou ao redor. A sala era imponente, cheia de detalhes que refletiam a personalidade de Alberto. Prateleiras com livros sobre engenharia, política e economia, uma mesa de madeira maciça, esculturas modernas escolhidas a dedo. Era um espaço que emanava poder e controle. E Rafael não se via pertencendo àquilo.
Suspirou, passando os dedos pelo tampo da mesa antes de sentar-se na cadeira de couro. O aroma familiar da madeira encerada e do perfume sutil do pai ainda pairava no ar. O sentimento de impostor cresceu dentro dele.
Era esse o seu lugar agora? Estaria apenas usurpando o trono de um rei que nunca deveria ter morrido?
Afastando esses pensamentos, começou a vasculhar alguns arquivos. Projetos da empresa, propostas de novas construções, investimentos em andamento. Conforme folheava os documentos, encontrou pastas que traziam seu nome. Dentro delas, estavam projetos em que trabalhou ao lado do pai. Pequenas iniciativas, nada grandioso, mas que estavam ali, guardadas com um cuidado que ele não esperava.
Sentiu um calor estranho no peito. Seria esse um sinal de que o pai realmente o via como um talento em potencial? Como alguém digno de carregar seu legado?
Por um breve instante, Rafael encontrou um consolo. Mas o sentimento logo foi ofuscado por outro: um incômodo latente, um desejo de não ser apenas uma sombra do pai. Ele se recostou na cadeira e olhou ao redor novamente. Não queria permanecer naquele escritório. Aquela sala não era sua. Seu pai pode ter visto talento nele, mas Rafael ainda precisava provar isso para si mesmo.
Decidiu que reformularia seu espaço. Escolheria uma das outras salas para ser seu escritório, um ambiente próprio, sem as marcas constantes de Alberto ao seu redor. Não tinha muitos objetos pessoais para levar – diferentemente do pai, que gostava de detalhes e simbolismos, Rafael sempre foi minimalista. Bastava-lhe uma mesa, um computador e alguns arquivos essenciais.
Aquele escritório precisava ser dele. Se iria comandar a empresa, faria isso à sua maneira. Mas, no fundo, não tinha certeza se essa decisão vinha de um desejo genuíno de independência ou do medo de nunca conseguir preencher o vazio que o pai deixara
O tempo escorria sem que Rafael percebesse. O silêncio absoluto do escritório, quebrado apenas pelo farfalhar das páginas e pelo ocasional tic-tac do relógio, tornava o ambiente quase sufocante. Ele já estava ali há algumas horas, mergulhado em arquivos antigos, revisando projetos que moldaram o império de seu pai.
No começo, a tarefa foi quase reconfortante. Ver o nome de Alberto assinado em plantas de arranha-céus e complexos industriais despertava um estranho orgulho. Mas conforme se aprofundava nos documentos, começou a notar algo curioso. Entre os arquivos de obras públicas, empreendimentos habitacionais e centros comerciais, havia um projeto estranho, desalinhado com o restante.
Rafael franziu a testa e puxou o documento para mais perto.
Projeto Ataraxia.
O nome não fazia sentido. Não parecia ter relação com construções, infraestrutura ou qualquer coisa que a empresa normalmente administrava. O mais intrigante era que faltavam detalhes essenciais. Nenhum local exato da obra, nenhuma planta completa, apenas fragmentos dispersos como se alguém tivesse tentado apagar ou omitir informações propositalmente.
Seu pai nunca deixaria algo assim passar despercebido. Ele era metódico ao extremo, um homem que revisava cada contrato três vezes antes de assiná-lo. Rafael sentiu um desconforto crescente na boca do estômago. Isso era um descuido… ou algo deliberado?
O que diabos era aquilo?
A inquietação o fez agir. Pegou o telefone fixo sobre a mesa e discou rapidamente para a recepção. Após alguns toques, uma voz jovem atendeu do outro lado.
— Moura Engenharia e Construções, Fernando falando.
— Aqui é Rafael Macedo. — Ele apoiou um cotovelo na mesa, massageando as têmporas. — Preciso que pesquise algo para mim.
— Claro, senhor. O que deseja?
— Veja se consegue encontrar qualquer informação sobre um projeto chamado Ataraxia. Ele está registrado nos arquivos da empresa, mas incompleto. Quero saber do que se trata exatamente.
Houve uma pausa do outro lado da linha. Fernando pareceu hesitar antes de responder.
— Ataraxia…? Espere um momento, senhor. Vou verificar no sistema.
Rafael ouviu o som de teclas sendo pressionadas, a leve interferência da linha indicando que Fernando estava realmente buscando algo. O silêncio que se seguiu aumentou ainda mais sua suspeita.
— Conseguiu alguma coisa? — pressionou.
— Senhor… parece que há registros dele, mas são bem limitados. Não há detalhes sobre localização ou orçamento exato. Só consta que foi iniciado há alguns anos e classificado como de segurança restrita.
Segurança restrita? Rafael sentiu um arrepio na espinha. Sua empresa trabalhava com construções civis, não com segredos militares. Por que um projeto estaria classificado assim?
— Quero que você aprofunde essa busca. Veja quem aprovou, quem assinou e qualquer movimentação financeira ligada a isso. E, Fernando… — sua voz saiu firme, carregada de uma gravidade incomum — faça isso discretamente.
— Entendido, senhor. Assim que tiver algo, entrarei em contato.
Rafael desligou e ficou olhando para o documento à sua frente, girando a caneta entre os dedos. Algo dentro dele dizia que essa busca não traria respostas simples. E talvez, só talvez, ele estivesse prestes a pisar onde não deveria.
Rafael digitou “Ataraxia” na barra de pesquisa de seu notebook e pressionou Enter. A tela iluminou seu rosto enquanto os primeiros resultados surgiam.
O significado o pegou de surpresa. "Imperturbabilidade da alma, estado de absoluta tranquilidade, ausência de perturbações emocionais."
Ele franziu o cenho. O que diabos um projeto com esse nome estava fazendo nos arquivos da construtora? Desde quando sua empresa estava envolvida com algo que, pelo nome, parecia mais uma pesquisa filosófica ou médica do que um empreendimento imobiliário?
Ele leu e releu a definição. Tentou conectar os pontos. Nada fazia sentido. Se fosse um prédio, um condomínio ou qualquer outra construção, por que esse nome? Não era o tipo de coisa que seu pai escolheria. Alberto Macedo era metódico, pragmático até os ossos. Gostava de nomes simples, diretos, que transmitissem força. Ataraxia? Não. Isso destoava completamente.
Rafael coçou a barba rala e soltou um suspiro pesado. Talvez… talvez o pai estivesse ficando senil.
A única explicação plausível era essa. Nos últimos anos, Alberto andava mais fechado, às vezes parecia distraído. Rafael sempre atribuiu isso ao peso do trabalho, mas e se houvesse algo mais? E se o velho estivesse cometendo erros? Se estivesse assinando projetos sem perceber? Deixando coisas incompletas?
Ele passou as mãos pelo rosto, frustrado. Precisava de respostas. Voltou aos documentos, examinando cada linha, cada nome que aparecia. Foi quando algo chamou sua atenção. Horácio Montenegro Vasques.
O nome estava ali, listado como um dos coordenadores do projeto. Rafael estreitou os olhos. Soava familiar, mas não conseguia se lembrar de onde conhecia.
Um ex-colega do pai? Um empresário? Um investidor?
Aquela história estava ficando cada vez mais estranha.
Rafael não hesitou. Digitou o nome Horácio Montenegro Vasques na barra de pesquisas do navegador, os dedos ágeis sobre o teclado. O enter ecoou como um gatilho, disparando uma enxurrada de resultados. Ele arregalou os olhos.
O homem era um cientista renomado, com contribuições significativas no tratamento de disfunções sexuais masculinas. Havia artigos, entrevistas, papers científicos. Em um deles, Vasques falava sobre sua luta contra o tabu da impotência masculina, desenvolvendo métodos inovadores para restaurar a performance de homens de meia-idade.
Rafael piscou. Depois piscou de novo.
O cérebro se recusava a processar de imediato.
Seu pai, Alberto Vieira Macedo, o homem que sempre se gabou de sua virilidade, que gostava de fazer piadas de cunho duvidoso sobre seu desempenho, que dizia frases como “homem de verdade nunca falha”... teria procurado um especialista em disfunção erétil?
A contradição era absurda. Por um momento, Rafael tentou levar a sério. Talvez fosse outra coisa. Talvez esse cientista tivesse alguma pesquisa paralela..., mas a cena mental de seu pai, o titã inabalável, sentando-se timidamente diante de um doutor e confessando problemas de desempenho sexual foi demais para segurar.
Ele se recostou na cadeira, cobriu o rosto com uma das mãos... e caiu na gargalhada. Um riso forte, descontrolado. Um riso que não deveria estar ali. A situação era ridícula. Inacreditável.
Rafael riu tanto que o peito doeu. Teve que se inclinar para frente, pressionando a barriga. O riso ecoava no escritório silencioso, transformando o ambiente carregado em algo pateticamente cômico. Seu pai? Seu pai? Ele não conseguia parar.
Minutos se passaram. Quando finalmente conseguiu recuperar o fôlego, limpou as lágrimas dos olhos, ainda com um resquício de sorriso nos lábios.
— Meu Deus, pai... — murmurou para si mesmo, balançando a cabeça.
Recuperado do ataque de riso, ele pegou o telefone e discou rapidamente para Fernando. O assistente atendeu no segundo toque.
— Senhor Rafael? Descobri alguma coisa sobre o Projeto Atara—
Rafael o interrompeu antes que continuasse.
— Esquece isso, Fernando. Pode cancelar a pesquisa. Já descobri o que era.
Fernando hesitou.
— Tem certeza? Porque alguns dos arquivos parecem estar criptografados. Eu ia tentar—
— Não precisa — cortou Rafael, ainda contendo o riso. Se soubesse o que descobri, você também estaria rindo, garoto.
Fernando não insistiu, mas Rafael percebeu que ele ficou curioso do outro lado da linha. Paciência.
— Certo, senhor. Se precisar de algo mais, estou por aqui.
— Valeu, Fernando.
Ele desligou e soltou um longo suspiro, esfregando a nuca. Isso explicava tudo. O mistério, os registros fragmentados, a falta de detalhes. Seu pai simplesmente não queria que ninguém descobrisse que ele estava atrás de um tratamento.
Rafael riu de novo, mais baixo desta vez, sentindo a tensão dos últimos dias se dissipar por um breve instante. Talvez aquele Projeto Ataraxia não fosse nada demais, afinal. Talvez..., mas então, um pensamento o atravessou como uma lâmina fria. Se era apenas um tratamento médico... por que diabos havia arquivos criptografados?
Rafael estava ainda imerso em seus pensamentos, tentando processar o que acabara de descobrir, quando o telefone tocou novamente. O som do toque parecia mais grave, mais intrigante, como um presságio que ele não queria ignorar. Com a mente ainda ocupada com a descoberta sobre seu pai e o misterioso Projeto Ataraxia, ele atendeu rapidamente, sem olhar o identificador de chamadas.
— Alô? — disse, com um tom impessoal, tentando se manter centrado.
Do outro lado da linha, a voz era calma, mas carregada de uma tensão inconfundível.
— Vi que esteve pesquisando sobre a Ataraxia, não se preocupe, meu jovem. Chegando a hora, você saberá tudo. — A voz de Horácio Montenegro Vasques tinha um tom enigmático, como se estivesse ciente do que Rafael estava fazendo, mas sem demonstrar surpresa.
Rafael sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Era ele. O tal cientista. A sensação de desconforto que ele já sentia se intensificou.