A luz do quarto me fere os olhos como navalha. O teto branco, o som constante do monitor cardíaco, o cheiro de desinfetante — tudo parece saído de um sonho ruim. Meus braços estão fracos, minha cabeça lateja. Tento me mexer, mas meu corpo protesta.
— Você voltou... — diz uma voz grave, abafada pela emoção.
Viro o rosto devagar. Um homem está ali, sentado ao lado da cama. Olhos fundos, barba por fazer, cabelos molhados de chuva. Seu casaco de moletom cinza escuro está encharcado, mas ele não parece se importar. Ele se aproxima, hesitante, como se temesse me assustar.
— Desculpa... — ele diz. — Você deve estar... confuso.
Confuso é pouco. Meu nome, meu passado, tudo se esconde dentro da névoa da minha mente.
— Desculpe, quem é voce mesmo ? Minha voz sai fraca, trêmula.
— Aldo. Aldo Rocha.
O nome bate estranho, sem eco, como uma palavra estrangeira. Ele se levanta, se aproxima da cama, as mãos trêmulas. Me encara por alguns segundos antes de dizer:
— Eu... fui a última pessoa a te ver antes do acidente.
O aperto no peito é imediato.
— O que aconteceu comigo?
Aldo hesita. Antes que possa responder, a porta se abre e o médico entra. Um homem baixo, grisalho, com uma prancheta em mãos.
— Que bom ver você acordado, Leônidas — diz ele com gentileza. — Seu caso foi um trauma craniano severo. Você passou seis semanas em coma induzido. Está vivo por milagre.
— Por que... não consigo lembrar de nada?
— É comum em lesões como a sua. Você está sofrendo de amnésia traumática. Pode durar dias, semanas... ou mais. Não se force. A memória pode voltar aos poucos ou em flashes. O mais importante agora é manter a calma. Vamos iniciar a psicoterapia ainda esta semana. Com o tempo, você poderá reconstituir parte do que perdeu.
Aldo permanece em silêncio ao lado da cama, os olhos fixos em mim. Quando o médico sai, finalmente me viro para ele.
— Você é meu amigo? Meu irmão? Por que estava comigo no dia do acidente?
Aldo parece engolir seco.
— A gente... tem uma história. Uma relação complicada.
— Complicada como?
Ele se senta na beirada da cama, desviando os olhos.
— Eu fui atrás de você naquela noite. Tava chovendo muito. Depois... o carro explodiu. Você caiu da estrada, numa ribanceira. Eu vi tudo. Fui eu que te encontrei.
— Então... você salvou minha vida?
Ele apenas assente, e eu, sem pensar, estendo os braços e o abraço. É um gesto instintivo, um impulso de gratidão, quase infantil. Ele demora para retribuir, mas quando o faz, é com força. Fico ali, aninhado naquele abraço estranho, sentindo o calor do seu corpo, o perfume amadeirado e o tremor sutil de sua respiração.
— Eu não sei onde moro... — sussurro. — Não lembro do meu endereço, da minha casa... quem eu era.
Aldo se afasta só o suficiente para me encarar.
— Você vendeu sua casa, Leo. Pra bancar meu retorno aos ringues. Pegou tudo que tinha e apostou em mim.
— Eu fiz isso?
Ele balança a cabeça, como se ainda não acreditasse.
— Por isso... se quiser, pode ficar na minha casa até se recuperar. Tenho um quarto de hóspedes. Vai ter privacidade.
Antes que eu possa responder, a porta se abre novamente. Luiza entra como uma tempestade controlada: calça de alfaiataria bege, camisa branca impecável, salto agulha. Os cabelos castanhos estão presos num coque elegante. O sorriso que ela lança é doce, mas os olhos não sorriem.
— Que cena tocante. Mas, desculpa, Aldo... meu irmão vai se recuperar em casa. Na nossa casa.
Aldo levanta, o maxilar travado.
— Eu só estava oferecendo ajuda.
— E eu estou assumindo a responsabilidade legal e emocional dele. Ele vai pra mansão comigo. Onde é o lugar dele.
Ela se vira para mim.
— Vamos cuidar de você direitinho, Leo. Somos uma família unida. Não precisa se preocupar com nada.
A palavra "família" me arrepia. Algo na entonação dela me faz desconfiar, mas não tenho provas. Só o vazio.
Luiza se aproxima e passa a mão pelos meus cabelos, como se quisesse garantir que eu sou mesmo um boneco frágil em suas mãos. Aldo aperta os punhos e se afasta.
— Vou buscá-lo amanhã — diz ela ao médico, que havia voltado para checar os sinais. — Quero ele em casa o quanto antes.
O médico concorda, deixando instruções. Recomenda cautela. Repete o diagnóstico: amnésia traumática. Psicoterapia. Nenhuma pressão. Memórias são como animais ariscos. Se correr atrás, elas fogem.
Fico ali, observando os dois — Aldo e Luiza — se engalfinharem com palavras corteses e olhos repletos de história.
E eu? Eu sou o grande ausente da minha própria vida.
Naquela noite, já sozinho no quarto, viro de lado na cama e encaro a janela molhada pela chuva.
Fechei os olhos e mergulhei num sonho antigo, uma memória cravada no fundo da mente. Estávamos no apartamento dele, as cortinas escuras mal deixavam entrar a luz da rua. A almofada de veludo comprimia meu rosto, e eu sentia o calor do corpo de Aldo sobre mim. O cheiro suave do sabonete se misturava ao suor, criando um perfume excitante.
Ele deslizava a mão pelos meus quadris, puxando-me para mais perto. A camisa preta dele amassava sob meus dedos, e cada vez que ele arrastava a língua pelo meu pescoço, um arrepio queimava na nuca. Nossos beijos eram lentos, famintos, e ele empurrou minha perna, abrindo ainda mais a intimidade entre nós.
— Quer saber até onde eu posso ir, Leo? — ele sussurrou, com a voz grossa de desejo. — Te quero tão fundo que você vai sentir meu nome ecoando dentro de você.
Ele penetrou com firmeza, e eu me curvei ao ritmo das suas investidas. A cama rangeu, nossos corpos suavam, e cada gemido dele explodia como trovão dentro do quarto. Segurou meu quadril com força e latiu outra frase rouca:
— Vai dizer meu nome gostoso, seu safado?
E eu disse, entre suspiros e medo bom:
— Aldo... — e caí no êxtase.
O tremor dos nossos músculos durou segundos, mas pareceu uma eternidade. Quando acordei, o lençol estava encharcado, e meu coração martelava em chamas.
O celular, com a tela rachada, apitou novamente.
Uma nova mensagem apareceu:
"Nem tudo que você esqueceu ficou no passado. Cuidado com quem te conta sua história."