Bastou chegar no endereço que Flávio me enviou por mensagem para ter certeza — aquele BMW só podia ter sido conquistado com o dinheiro do tráfico. Não tinha outra explicação.
Estava no meio da Cracolândia, de frente para um prédio comercial caindo aos pedaços, me perguntando se era louco o suficiente para continuar. Nem fodendo que um ricaço viria até aquele lugar apenas para jogar poker.
Entrei no prédio certo de que estava no lugar errado. Para piorar, não tinha uma viva alma na portaria para me dar informação. Tive que seguir as instruções de Fábio, descendo até o subsolo, com os meus passos ecoando alto nas escadas metálicas.
Quando alcancei a porta que, segundo ele, era a entrada do clube, hesitei por um segundo. Aquele ambiente surreal fazia todos os meus instintos de sobrevivência gritarem, como se estivesse diante da mais óbvia de todas as armadilhas. Ainda assim, respirei fundo, girei a maçaneta e, contrariando meu bom senso, entrei.
Sai da escuridão da garagem do prédio abandonado e fui imediatamente golpeado por uma luz intensa. Meus olhos demoraram para se adaptar ao novo ambiente, uma sala branca, imensa, esparsa e desprovida de personalidade. O design de interiores que fez aquele projeto parecia interessado em maximizar o eco, como se quisesse que as paredes devolvessem os gritos que seriam dados ali.
Depois de tantos anos fora, não me sentia retornando a um clube de poker, e sim, entrando de braços abertos em um hospício.
Não tinha nem me acostumado com a luz, quando, do mais absoluto nada, um braço me puxou. Era Fábio, me abraçando e dando um beijo na bochecha, que aparentemente agora era a sua marca registrada.
Ele me guiou pelo salão, como um corretor de imóveis querendo vender a propriedade. Mostrou orgulhoso cada detalhe do lugar. Passamos pelas mesas de poker, o bar e o caixa, com ele contando histórias de cada peça de mobília ali. Não era apenas um clube de poker para ele, estava adentrando a casa do meu amigo de longa data.
— Vai jogar? O buy-in é cinco mil reais. — perguntou enquanto comprava uma cerveja para mim.
— Cinco mil? Enlouqueceu?! — deixei escapar, totalmente incapaz de disfarçar o choque.
— Relaxa, irmão. Eu pago a sua entrada, quero que você se divirta hoje. — respondeu, dando risada, como se minha reação fosse a coisa mais engraçada do mundo.
— Nem fodendo, Fábio. Eu tô enferrujado, seria jogar o seu dinheiro no lixo.
Mas ele não queria aceitar o meu não como resposta. Insistiu algumas vezes, e eu, que ainda não estava infectado com a loucura dele, neguei o mesmo número de vezes. Honestamente, mesmo quando jogava direto, em nenhum momento sequer considerei a possibilidade de sentar numa mesa e apostar tanto dinheiro assim.
Bebemos e jogamos conversa fora por mais um tempo, até que minha bexiga decidiu que não dava mais para segurar. Fui ao mictório, andando um pouco desengonçado, já meio alto da bebida. Quando voltei, Fábio não estava na nossa mesa. Girei o corpo devagar, os olhos, meio embaralhados, vasculharam o salão. Não demorou para encontrá-lo, até pela decoração minimalista da sala. Flávio estava no caixa, falando baixo e gesticulando como se estivesse fechando um acordo secreto.
Pensei que ele estivesse comprando sua entrada para uma mesa. Fiquei animado com a possibilidade de vê-lo jogar. Ele deveria estar muito afiado, já que, diferente de mim, ele continuou jogando e melhorando, sem desistir da luta, durante todos esses anos.
Mas, quando me aproximei, ele me empurrou a pilha de fichas que tinha comprado.
— Vai pra mesa 2. — disse, sorrindo, me desafiando a recusar.
Vai lá, não vou, vai lá, não vou, vai lá, não vou…
Eu juro que fiz de tudo, mas Fábio estava mais inflexível que uma rocha. Ficamos no impasse, até ele me dar um ultimato. Faltando segundos para a mesa começar, ele disse que, se eu não jogasse, o dinheiro iria para o ralo de qualquer forma, porque ele não jogaria e não seria possível conseguir um reembolso tão em cima da hora.
Não tinha o que fazer, aceitei. Tremendo, peguei as fichas e sentei no meu lugar da mesa, pronto para apostar cinco mil reais de um “amigo” que não via há alguns anos.
Logo nas primeiras mãos, percebi que estar fora de forma não era só uma desculpa que havia dado para não jogar. Cometi alguns erros de principiante. Todos esses anos fora do circuito profissional, não tinha nem sequer tocado em um baralho, nem mesmo para jogar paciência. Tinha um ranço profundo da minha época de poker, como se tudo não tivesse passado de um grande desperdício da minha juventude.
A única coisa a meu favor era que Fábio não exagerou quando disse que os jogadores daquele clube eram horríveis. De fato, o pessoal jogava de uma forma absurda, nenhuma decisão fazia sentido para mim. Era como se eles não entendessem nem mesmo a matemática básica por trás do jogo, e mesmo assim, estavam dispostos a apostar cinco mil reais. Uma completa loucura.
Decidi jogar com extrema cautela. Existe uma velha máxima que sempre é compartilhada pelos jogadores de poker: os dois tipos de pessoas que você não deve blefar contra são o profissional e o amador. O profissional vai ler cada reação sua e não vai cair no seu blefe, já o iniciante não vai nem entender que você está blefando.
Então, jogando apenas quando tinha cartas fortes, conseguia punir os erros sistemáticos que aconteciam naquela mesa, sem correr riscos ou me esforçar. Mesmo fugindo das maiorias das mãos, meus adversários entravam em batalhas sem necessidade, eliminando um ao outro, fazendo todo o serviço sujo para mim.
Minha estratégia funcionou. A mesa foi esvaziando, os jogadores foram eliminados, um a um. Quando menos percebi, já era o líder de fichas da mesa. Foi só nesse momento que finalmente parei de tremer. A premiação do terceiro lugar já me permitia pagar de volta o Fábio. A partir dali, tudo que eu conquistasse a mais naquela competição seria lucro.
Mais um jogador caiu, restando apenas eu e outro rapaz, que estava com uma pilha bem menor que a minha. Se ganhasse o “heads-up”, sairia dali com vinte mil reais. Único problema era que eu odiava essa fase dos torneios.
Algumas pessoas consideram o “heads-up” uma espécie de duelo moderno, um teste de coragem e intelecto. Mas, para mim, aquilo não passava de uma baboseira, não acreditava ser possível ter qualquer estratégia nessa hora. Tudo não passava de uma forma mais elegante de jogar uma moeda para cima para decidir quem ficava com a parte maior do prêmio.
Sei que é uma armadilha dos novatos culpar a sorte pelos seus desfortúnios no poker, mas como de costume, a moeda não me favoreceu. Como explicar que, mesmo tendo uma pilha maior e uma mão melhor, eu perdi para o meu adversário duas vezes em momentos de all-in?
Bem puto, saquei os dez mil reais que ganhei no caixa, pronto para devolver os cinco do Fábio.
— Esse foi por conta da casa, meu irmão. — disse.
Novamente, entramos numa guerra de insistência, eu tentando devolver o dinheiro e ele recusando. Depois de mais nãos do que eu consigo contar, ele fez um brinde “a nossa nova vida”, encerrando o assunto. Apesar de ser uma fortuna para mim, Fábio fazia questão de mostrar que aquele prêmio não faria a menor diferença para ele. Agora entendia perfeitamente porque aquele lugar era seu novo lar.
Voltei para casa, a adrenalina tomando conta do meu corpo. Mesmo ficando apenas com o segundo lugar, não dava para reclamar dos meus resultados. Quando sentei naquela mesa de poker, tinha uma dívida de cinco mil reais. Apenas três horas depois, estava voltando para meu lar com dez. Era muita grana e tudo tinha sido fácil demais.
Fiquei rolando na cama, olhando para o teto, com uma vontade enorme de voltar imediatamente para o clube e jogar mais um torneio. Depois de tanto tempo, havia me esquecido por completo de como era maravilhosa essa sensação de ganhar dinheiro no poker.
Só restava agora decidir o que fazer com o dinheiro.
Bom, tinha alguns boletos que estavam atrasados, embora minha situação financeira estivesse sob controle. Podia zerar tudo e começar uma reserva de emergência. Seria o correto a se fazer.
Mas, sabe como é, só se vive uma vez. Pagaria aquelas contas com meu dinheiro de vendedor de seguro. Queria usar o prêmio para curtir um pouco a vida. E eu já tinha uma boa ideia de como gastar.
Sempre que perguntava para a Amanda o que ela compraria se ganhasse na loteria, ela dizia que queria passar um dia em um hotel-spa em Atibaia. Eu achava até fofinho aquela resposta, porque, mesmo a diária do hotel sendo cara, não era tanto assim para só ser comprada quando a gente ganhasse na loteria. Talvez fosse só a forma dela me manipular para dar a viagem para ela como presente…
Então, estava decidido. Os dez mil reais do poker seriam mais que suficientes para surpreender a minha esposa.
<Continua>
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