ÚLTIMO CAPÍTULO
A explosão sacudiu o centro comunitário inteiro, engolindo em fumaça a lateral do bloco onde funcionava a cozinha. O público gritava, os convidados corriam, e a multidão se espalhava em pânico. A confusão foi o disfarce perfeito.
Marcelo segurou Leônidas pelo braço e o arrastou pela lateral do prédio, dizendo algo sobre um “lugar seguro”. Leo, ainda atordoado pelo impacto, com a camisa suja de fuligem, tentou resistir, mas o pai segurava firme. O cheiro de fumaça e borracha queimada enchia o ar.
— Por aqui, rápido — disse Marcelo com voz baixa, urgente.
Quando viraram a esquina e chegaram à rua de trás, uma SUV preta estava estacionada de ré, com o motor ligado. Marcelo abriu a porta traseira com pressa.
— Entra, Leônidas. Não temos tempo, a situação está fora de controle.
— Me leva até o Alexandre primeiro ! — perguntou, aflito, tentando voltar.
— Entra no carro, porra. — O tom de Marcelo mudou. Um estalo seco de autoridade.
Leônidas hesitou, mas entrou.
Assim que a porta se fechou, Marcelo tirou algo do bolso interno do paletó — um pequeno frasco âmbar e uma seringa. Leônidas arregalou os olhos.
— O que é isso?
— Um remédio pra sua ansiedade — respondeu Marcelo, enfiando a seringa na lateral do pescoço do filho com precisão cirúrgica. — Você vai me agradecer. Não vai sentir dor nenhuma.
— Filho da pu—
A frase morreu na garganta de Leônidas. A droga agiu em segundos. A visão ficou borrada. Os braços, pesados. Ele tentou abrir a porta, mas os dedos mal respondiam. O mundo girava como se estivesse submerso.
Marcelo apenas observava, frio.
— Seu saco de merda agora vai ser útil…
A SUV preta seguiu por avenidas esquecidas, marginais estreitas, descendo por vielas até parar em frente a um galpão abandonado na Zona Norte. Um prédio de tijolos rachados, janelas pregadas por tábuas e um portão de ferro que gemeu ao abrir. Lá dentro, a penumbra era cortada por luzes cirúrgicas presas a ganchos enferrujados. Ao centro, uma maca manchada esperava sob um foco branco e cruel.
Alexandre estava lá.
Amarrado a uma cadeira de madeira, os punhos presos por cintas de couro, o rosto machucado e um corte recente sangrando sobre a sobrancelha. Seus olhos arregalados se voltaram ao corpo desacordado que dois capangas arrastavam galpão adentro.
— Leo! Leônidas! PAI ! — gritou com a voz embargada.
Ninguém respondeu. Um dos homens deu-lhe um tapa para calá-lo. Alexandre gemeu.
— Fica quieto, moleque. A única coisa que você vai ver é esse merda salvando a vida do seu velho — cuspiu o capanga.
No fundo da sala, o médico clandestino ajustava os instrumentos. Luvas engorduradas, bisturi esterilizado às pressas. Ao lado, Vicente, o traficante, checava uma bolsa térmica e esfregava as mãos de ansiedade.
Marcelo surgiu, tirando o paletó com uma calma grotesca. Por baixo, o peito ossudo estava coberto por fios ligados a um pequeno monitor cardíaco.
— Hoje é o meu renascimento. E vai ser com o coração que você me deu, Leônidas.
Leônidas, semiconsciente, gemeu. Os olhos se abriram lentamente. Quando viu Alexandre, tentou se mover — mas os músculos não obedeciam.
— Você… vai pagar… — murmurou.
— Pelo contrário. Você é que vai pagar tudo que me deve. Com o coração.
Marcelo virou-se para Vicente:
— Preparem o corte. Eu quero ele acordado quando começar. Quero ver o medo no rosto dele.
Alexandre gritou, desesperado:
— Você é um doente!
— E você era o aborto que deveria ter sido feito. — rosnou Marcelo.
Foi quando o portão do galpão explodiu para dentro com um estrondo.
Um dos capangas caiu no chão, alvejado. O outro gritou, tentou puxar a arma — mas o segundo tiro atravessou-lhe a testa.
— Larguem as armas! SEUS MERDAS ! — berrou Freitas, entrando com dois homens encapuzados, armados até os dentes.
— Filho da puta! — gritou Vicente, sacando a pistola e disparando.
Freitas rolou no chão e atirou duas vezes. Um tiro acertou o ombro de Vicente. O outro, o estômago. Vicente caiu de joelhos, gritando.
Marcelo tentou correr para os fundos. Mas uma sombra bloqueou o caminho.
Aldo. Roupas sujas, mãos cobertas de fuligem, olhar animalesco.
— Vai fugir, desgraçado?
— Você não sabe com quem está lidando!
— Sei sim. Com um monstro covarde.
Aldo avançou. A barra de ferro atingiu os joelhos de Marcelo, que caiu no chão com um grito.
— PLÍNIO! TÁ AQUI DENTRO! — gritou Aldo, e segundos depois sirenas cortaram o ar da madrugada.
Plínio, o delegado, entrou correndo com uma equipe da Polícia Civil.
— Mãos pra cima! Todos no chão!
Vicente tentou atirar de novo, mas foi atingido por um dos policiais. O médico tentou fugir pelos fundos e foi derrubado por um tiro de borracha.
Plínio se aproximou de Leônidas, que agora tentava se sentar na maca.
— Respira, Leo. A gente chegou a tempo.
— O Alex… ele tá ali — murmurou.
Plínio correu até o garoto e o libertou das amarras. Alexandre caiu em prantos nos braços dele.
No canto do galpão, Freitas já guardava a arma e limpava os rastros.
— Você não vai a lugar nenhum! — gritou Plínio.
— Eu sou só o anjo vingador. Quem chamou a polícia foi Aldo. Eu só fiz o que o Estado não teve coragem.
Antes que pudessem detê-lo, Freitas sumiu pela lateral, escapando por um corredor de serviço no escuro.
— Droga! — rosnou Plínio. — Mas temos o suficiente aqui pra condenar Marcelo por tentativa de homicídio, tráfico de órgãos e sequestro.
Marcelo, algemado no chão, sangrando pela boca, ainda sorriu com os dentes sujos.
— Isso não vai apagar o que ele é… Um bastardo.
Aldo se ajoelhou ao lado de Leônidas. Pegou sua mão. O loiro tremia.
— Eu tô aqui, Leo. Fica comigo.
Os olhos de Leônidas se fecharam, exausto, em paz.
— Muito obrigado !
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Hospital Sírio-Libanês... horas depois.
Leônidas ainda mantinha os braços ao redor de Alexandre, apertando-o contra seu peito. O momento de cumplicidade era quase perfeito, uma sensação de alívio, de fim de ciclo. Ele fechou os olhos por um instante, sentindo o cheiro do cabelo do garoto, que, mesmo machucado, estava seguro ali, em seus braços.
O silêncio do quarto foi interrompido apenas pelos monitores e o ocasional som da porta de entrada. Nesse momento, um enfermeiro entrou, seguido de um advogado que Leônidas reconheceu imediatamente: era um representante do estado, com uma expressão séria e o rosto fechado.
Leônidas se afastou um pouco, ainda sem entender o motivo de tal presença.
O advogado se aproximou, encarando Leônidas com uma expressão dura, quase implacável.
— Leônidas Maia ? — Ele falou o nome de forma formal e fria.
Leônidas assentiu, sem saber o que esperar.
— Eu sou o Dr. Álvaro Duarte, advogado do estado. Você está sendo informado que será processado pelo estado de São Paulo devido à falsificação do exame de DNA envolvendo seu irmão. Este processo é uma acusação grave e não será tratado como algo trivial. A falsificação de documentos oficiais, como exames de DNA, é considerada crime, e a responsabilidade recai sobre você, dado que você foi o responsável por essa ação.
O peso das palavras se instalou no ar como uma nuvem escura, abafando o momento de ternura entre pai e filho.
Leônidas se levantou da cadeira lentamente, sentindo o peso das palavras no fundo do estômago. Ele olhou para o advogado, mas não disse nada imediatamente. A sala parecia ter diminuído, como se as paredes estivessem se fechando em torno dele.
Alexandre, que estava deitado, olhou para o pai, sentindo a tensão no ambiente.
— O que isso significa, pai ? — perguntou o garoto, com os olhos cheios de confusão e preocupação.
Leônidas olhou para Alexandre, tentando manter a calma, tentando não deixar transparecer o pânico que o consumia por dentro. Mas a verdade era implacável.
— Significa que eu vou ser julgado, Alex. E que minha vida vai mudar mais uma vez, por causa de algo que eu fiz. Algo que… não pensei que fosse ter consequências tão grandes.
O advogado, sem pressa, prosseguiu:
— O processo está em andamento. O estado vai buscar uma punição conforme a gravidade do crime. A falsificação de um exame de DNA não só coloca em risco a integridade do sistema legal, como também afeta diretamente a saúde e o bem-estar das pessoas envolvidas. O estado tem plena intenção de levar o caso à frente, e você será responsabilizado por isso.
Leônidas engoliu seco. Ele sentiu um peso crescente em seu peito, uma sensação de desespero que parecia estar tomando conta dele. Tudo o que ele queria era proteger Alexandre, mas agora o que ele havia feito para garantir a segurança do garoto o colocava em um beco sem saída.
Alexandre não compreendia completamente a gravidade da situação, mas podia ver que Leônidas estava em choque. Ele tentou se levantar, mas a dor ainda era forte. Mesmo assim, olhou para o pai com confiança, tentando dar-lhe forças.
— Não vai me deixar, vai? — perguntou Alexandre com a voz baixa, mas firme.
Leônidas, sentindo a mão do filho apertando a sua, não pôde mais conter as lágrimas. Ele inclinou a cabeça, como se estivesse buscando alguma explicação, mas não encontrou. Tudo parecia errado, e tudo havia virado um turbilhão de emoções, de escolhas difíceis e consequências terríveis.
— Não, eu não vou deixar você — respondeu, a voz falhando. — Eu prometo.
O advogado não pareceu se importar muito com os sentimentos entre pai e filho. Ele olhou para o relógio, como se fosse só uma formalidade, e fez um gesto para a porta.
— O processo será oficializado em breve. Você terá que comparecer ao tribunal, Leônidas. O estado aguarda sua resposta. Até lá, você ficará sob observação devido ao seu estado de saúde. — O advogado fez uma pausa, antes de acrescentar com um tom mais sério. — E você precisará de um advogado de defesa. Não se engane, este não será um processo fácil.
Com essas palavras, o homem virou-se e saiu da sala, deixando o silêncio tomar conta novamente.
Leônidas olhou para Alexandre, e por um momento não soube o que dizer. Ele sentia que a roda da justiça estava girando, implacável, e que a única coisa que ele queria agora era garantir que Alexandre estivesse seguro.
Alexandre tocou sua mão, sentindo a tensão no ar.
— Pai, vamos sair dessa, não vamos? — O garoto disse com uma confiança que Leônidas não sabia de onde vinha. Era como se ele estivesse querendo ser o forte naquele momento.
Leônidas olhou para ele e, pela primeira vez em muito tempo, sentiu uma pequena chama de esperança.
— Vamos sair dessa. Eu vou lutar por você, Alex. Eu vou te proteger de qualquer maneira. — Ele olhou para o advogado que ainda estava na porta, antes de sair da sala, e pensou, de maneira resignada, que ainda tinha muito pelo que lutar.
Mas, enquanto pensava nisso, o peso da acusação ainda pairava sobre ele, e a sensação de que estava preso num ciclo de erros e consequências começava a se tornar mais e mais real.
Leônidas ainda usava curativos nos braços e estava com o rosto marcado por hematomas. Andava pelo corredor do hospital com passos lentos, mas o coração disparado. O olhar estava vazio. Alexandre dormia em um dos quartos, e a presença de Aldo ali, parado ao lado da porta, trazia mais desconforto do que alívio.
— Você soube? — Aldo perguntou, a voz rouca de cansaço e emoção. — Foi a Tatiana quem socorreu a Márcia. Levou ela no colo até o carro da polícia, gritando pra não deixarem ela morrer, os enfermeiros deram calmantes para ela.
Leônidas parou de andar. O nome de Márcia ecoou em sua mente como um soco no estômago.
— Ela… — sussurrou, sem fôlego.
— Foi baleada no ombro e no abdômen. Quase entrou em choque hemorrágico. Mas passou por cirurgia. Os médicos disseram que ela vai ficar bem. — Aldo fez uma pausa, o olhar buscando o de Leônidas. — Está viva, Léo. Ela está viva.
Leônidas assentiu, os olhos marejados. As lágrimas vieram de uma vez, como se as comportas de dor tivessem se rompido. Ele se encostou na parede e deslizou até o chão, os joelhos fracos demais para sustentar a avalanche que sentia.
— Você salvou minha vida… — ele murmurou, sem conseguir controlar o choro. — Você salvou a vida do meu filho.
Aldo se agachou à frente dele, hesitante. Queria tocá-lo, mas não se atreveu.
— Eu faria de novo. Um milhão de vezes. Por você. Por ele.
Leônidas assentiu, os olhos marejados. As lágrimas vieram de uma vez, como se as comportas de dor tivessem se rompido. Ele se encostou na parede e deslizou até o chão, os joelhos fracos demais para sustentar a avalanche que sentia.
— Você salvou a minha vida… salvou o Alexandre.— disse entre soluços, cobrindo o rosto com as mãos. — Eu devia te agradecer, Aldo. Eu te agradeço. Do fundo do coração. Mas… não dá mais.
Aldo se agachou diante dele, o rosto ferido, os olhos vermelhos de choro contido.
— Não fala isso… a gente passou por tudo isso junto, Leônidas. Eu tava desesperado, achando que te tinha perdido pra sempre. Que nunca mais ia ouvir tua voz, olhar nos teus olhos. Você é tudo que eu…
— Não, Aldo! — Leônidas gritou, com a dor rasgando a garganta. — Eu te amo. Eu te amo com tudo que eu sou. Mas eu não posso mais. Não consigo olhar pra você e fingir que tá tudo bem enquanto você volta pra Pia, pra sua família perfeita… enquanto eu fico aqui, remendado, sendo acusado de falsificar um DNA pra salvar uma criança que nem era minha!
Aldo esticou a mão, mas Leônidas recuou. O gesto doeu mais do que um soco.
— Eu não tenho espaço na sua vida, Aldo. Só nas tragédias. Só quando sangra. Eu mereço mais do que isso… — Leônidas chorava sem controle, mas sua voz agora era firme. — Me deixa em paz. Vai embora.
Aldo o olhou por longos segundos. Depois assentiu, com os olhos marejados.
— Tá bom… — disse com a voz trêmula. — Mas eu nunca deixei de te amar. Nem por um segundo.
Ele se levantou, cambaleando, como se algo dentro dele tivesse se quebrado. E foi embora.
Leônidas continuou ali, sozinho no chão do hospital, com a dor ecoando por dentro como uma sirene abafada.
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Alguns meses depois ...
A claridade suave da tarde iluminava o jardim do centro de treinamento reformado. Márcia usava um vestido azul-claro e discreto, os cabelos curtos com um pequeno arranjo de flores brancas. Tatiana estava elegante, com um terno cinza claro e gravata de tom lavanda.
O casamento civil acontecia entre risos tímidos e olhos marejados. Alexandre entregou as alianças às duas com um sorriso largo. Camila tirava fotos com o celular, orgulhosa. Diego ria da decoração exageradamente romântica.
— Com licença… — disse a juíza de paz. — Tatiana, aceita Márcia como sua esposa, prometendo amá-la, respeitá-la e cuidar dela todos os dias?
Tatiana olhou para Márcia como se estivesse diante de um milagre.
— Aceito. Com todo o coração.
Márcia respirou fundo, e respondeu com a voz trêmula:
— Aceito.
Elas se beijaram sob os aplausos, e Leônidas, parado ao lado de Alexandre, esboçou o primeiro sorriso em semanas.
Ele não sabia ainda, mas aquele era o início de uma nova chance para todos eles.
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Barcelona, Espanha .
Olga cruzava o saguão do hotel cinco estrelas como se pisasse em um tapete vermelho. Usava um vestido azul-marinho de seda, salto alto e colar de pérolas falsas. Ao lado, uma babá filipina carregava discretamente um bebê de colo: Clara, sua filha de poucos meses.
O empresário russo ao seu lado ria de alguma piada que ela já tinha contado três vezes em versões diferentes. Olga o segurava com elegância, o tempo todo calculando os passos.
— Ela é sua filha? — ele perguntou, encantado com a pequena.
— Sim — respondeu Olga, sem hesitar. — O pai morreu. Câncer. Uma tragédia.
Mentira. Como todas as outras.
Mais tarde, no quarto, ela embalava Clara nos braços enquanto via o homem dormir bêbado, roncando.
— Você vai ter tudo, minha filha. Tudo o que eu nunca tive. Só confie em mim — sussurrou, com os olhos marejados.
Na manhã seguinte, Olga e Clara desapareceram do hotel. Deixaram para trás um quarto vazio, um cofre arrombado e um coração partido.
Mas também uma mulher decidida a nunca deixar a filha passar pelo que ela passou.
Porque para Olga, a fuga era um destino. Mas o amor — mesmo torto, mesmo silencioso — era a única coisa verdadeira que ela ainda carregava.
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Delegacia da Polícia Civil — São Paulo
Plínio estava de pé, no centro da sala, com o olhar perdido no celular.
— Você tá bem? — perguntou a delegada.
Ele piscou, incrédulo, e depois sorriu de lado.
— Passei. Polícia Federal. Eu… passei!
Os colegas aplaudiram. Um tapinha nas costas aqui, um abraço ali.
Plínio se emocionou. Sabia que não precisava de medalhas. Só precisava continuar fazendo a coisa certa — mesmo quando ninguém via.
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Bahamas — Resort à beira-mar
Freitas repousava numa espreguiçadeira com um drink à mão, assistindo ao pôr do sol. O terno de linho branco era impecável. Os negócios seguiam no piloto automático, e o escândalo envolvendo Marcelo e Vicente lhe rendera contatos valiosos.
Ao lado da espreguiçadeira, um envelope. Dentro, recibos de depósitos mensais feitos para o fundo de Alexandre, em nome de um terceiro. Ninguém sabia que era ele. Nem Leônidas, nem Aldo, nem o menino.
Mas Freitas sabia. E bastava.
Pegou o celular e digitou uma única mensagem, com um número anônimo:
“Feliz aniversário, moleque. Seja forte. Sempre por você.”
Sorriu de canto.
— Pra alguns, o inferno é aqui. Mas pra mim… é quase um paraíso — murmurou, brindando ao horizonte.
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Fórum Criminal da Barra Funda – Vara Especial – Sessão Restrita
O relógio marcava 9h12 quando Leônidas entrou na sala de audiências, vestindo um blazer escuro e camisa social. Estava pálido, mas erguia o queixo com a mesma altivez que o tornava odiado ou amado em qualquer ambiente. A ausência de algemas deixava claro: ele aguardava o julgamento em liberdade. Mas havia tensão nos ombros. Medo nos olhos. Ao lado dele, Alexandre, mais magro, cabelo aparado, usava tênis e jeans. Sentou-se em silêncio ao lado da defensora pública.
A juíza entrou e pediu que a sessão fosse mantida reservada. Começou:
— Este processo refere-se a Leônidas Maia Soares, acusado de falsificação de exame genético, obstrução de justiça e inserção irregular de segurança particular envolvendo um menor de idade. Por envolver um adolescente e por se tratar de matéria sensível, a audiência será restrita. Promotoria, pode prosseguir.
A promotora se levantou:
— O réu manipulou o resultado de um exame de DNA para fazer-se passar por pai do adolescente Alexandre Freitas. Em consequência disso, criou-se um vínculo jurídico falso que impediu a busca e responsabilização do verdadeiro pai biológico Marcelo Ernane Soares, conhecido como Marcelo Sampaio — este posteriormente acusado de diversos crimes, inclusive lesão corporal contra o próprio menor.
Ela se virou brevemente para Alexandre.
— A intenção pode ter sido protetiva, mas o ato foi criminoso. Não há dúvida.
A defensora pública respirou fundo antes de levantar-se.
— Excelência, senhores... Leônidas Maia Soares não é um homem comum. Não pela fortuna, mas pela história. Ele não protegeu Alexandre para se beneficiar. Ele o acolheu, sim, por amor — torto, impulsivo, desesperado. Sim, ele cometeu um crime. Mas o fez tentando evitar algo pior. Infelizmente, falhou.
A promotora quis intervir, mas a juíza ergueu a mão.
— Continuem.
A defensora se aproximou de Alexandre e perguntou:
— Alexandre, você aceita depor?
— Sim.
Ele se levantou devagar, hesitando. Olhou para Leônidas, depois para a juíza.
— Eu achava que ele só queria parecer bom... controlar minha vida. Quando descobri que ele mentiu sobre ser meu pai, me senti traído. Mas... depois que o Marcelo me sequestrou, e eu vi o Leônidas implorar pra morrer no meu lugar...
A sala ficou em silêncio.
— Ele foi amarrado na maca. Ia ser rasgado ali. Eu vi. Então... mesmo ele não sendo meu pai de sangue... ele é o único que me ama de verdade.
Leônidas baixou os olhos, emocionado.
A juíza anotou algo, e perguntou:
— Sr. Soares, deseja falar?
Leônidas se levantou. A voz rouca, mas firme.
— Eu menti. Falsifiquei o exame, sim. Mas eu não quis me apropriar de nada. Só quis impedir que ele caísse na mão daquele homem. Achei que se seria possível um novo começo... ele estaria seguro. Achei que poderia protegê-lo do pior. Mas o pior aconteceu mesmo assim. Eu não sou pai dele no papel, mas o amo como meu filho.
A juíza fez um gesto discreto para a segurança. Depois de um longo silêncio, ela declarou:
— Este juízo reconhece a gravidade dos atos, mas também a excepcionalidade dos motivos e a ausência de antecedentes. Diante disso, sentencio Leônidas Maia Soares a dois anos de serviços comunitários com comparecimento mensal à Vara, sem privação de liberdade. A pena será acompanhada por psicólogo forense, por recomendação deste tribunal.
Leônidas não esboçou reação. Apenas respirou. Alexandre se aproximou, hesitando.
— Pai?
O empresário olhou para ele com olhos cheios d’água.
— Vem filho !!! – falou dando um abraço.
— Posso... continuar te chamando assim ?
— Por favor. É tudo que eu quero.
Na sala vazia, naquele instante, não havia réu, nem juiz, nem promotor. Só um filho e o homem que escolheu amá-lo — mesmo quebrando todas as regras para isso.
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O barulho da chaleira apitando se misturava ao som de Pia digitando no laptop, sentada à mesa da cozinha. Aldo passava manteiga no pão com a mesma indiferença de quem assiste um comercial antigo pela centésima vez. Ele não dizia bom dia. Nem reclamava da falta de açúcar. Simplesmente existia.
— A coletiva com o pessoal da rede de academias ficou pro dia 12, tá? — avisou Pia, sem levantar os olhos da tela.
— Tá. — respondeu ele, sem entusiasmo.
Eles estavam morando juntos de novo, depois de anos separados. Pia assumira a gerência da carreira dele com eficiência e frieza. Voltaram a funcionar como dupla, mas não como casal. Não havia toques, nem risos, nem cumplicidade — só a tentativa de manter a engrenagem girando.
— O pessoal do Estado também quer uma entrevista sua sobre o projeto com os meninos da Zona Sul. — Ela o olhou. — Você ouviu?
— Ouvi.
— E?
— Pode marcar.
Pia franziu o cenho. Não era raiva. Era uma tristeza cansada. Ela conhecia aquele homem melhor do que qualquer um. Sabia que ele não estava ali. Só seu corpo.
Na sala, Camila olhava pela fresta da porta.
— Tá igual zumbi, mãe.
— Eu sei — respondeu Pia.
— Ele sente falta dele, né?
— Não sei se é falta. Acho que é buraco mesmo. Onde tinha o Leônidas, agora não tem mais nada.
Na academia, Aldo dava aula com gestos mecânicos. Corrigia posturas sem olhar no rosto dos alunos. Ensinava golpes como quem lê bula de remédio. A presença de Pia como gestora deixava tudo no lugar — contratos, eventos, agendas. Mas ele... ele não estava no lugar.
À noite, sentado na varanda, Aldo acendia um cigarro e observava a rua vazia. Pia se aproximava às vezes, com um cobertor ou um copo d’água. Mas ele recusava com um gesto curto.
Porque a única coisa que ele queria... não era Pia, nem os filhos, nem a carreira.
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Presídio de Segurança Máxima – Três meses depois
Fim de tarde. O pátio do presídio era liberado para o banho de sol, e a luz alaranjada do céu tingia os muros altos de concreto. A maioria dos detentos já havia se espalhado pelas laterais, formando pequenos grupos. Marcelo Sampaio, o ex-magnata, agora era apenas mais um nome riscado num uniforme bege. Um homem envelhecido pela vergonha e pelo abandono.
Caminhava sozinho, tentando não cruzar olhares. Estava ali há tempo suficiente para entender a dinâmica: ou você tinha aliados, ou se tornava presa fácil. E Marcelo já não tinha aliados.
Foi então que ouviu passos firmes atrás de si.
— Sampaio! — uma voz áspera o chamou.
Marcelo se virou devagar. Um homem enorme se aproximava, com o crânio raspado e olhos intensos. Seu corpo era coberto de tatuagens malfeitas. Era conhecido como Careca, mas seu nome verdadeiro era Ivan Borges. Preso por duplo homicídio e associação ao tráfico, Careca era um dos mais temidos do presídio — e ninguém se metia com ele.
Marcelo tentou disfarçar o tremor nas pernas.
— O que você quer?
— Só saber se você lembra da Carine — disse Careca, parando diante dele.
Marcelo franziu a testa. — Carine...?
— Carine Borges. Era minha irmã. Trabalhava como secretária na sua empresa, há uns quinze anos. Loira, olhos castanhos. Tinha só dezenove.
Marcelo fez força para buscar no fundo da memória, mas balançou a cabeça.
— Eu não me lembro... Desculpa...
Careca sorriu de lado, mas o sorriso era veneno.
— Claro que não lembra. Gente como você nunca lembra. Só fode e some. Literalmente. Ela ficou grávida, foi te procurar... E você disse que, se ela não desse um jeito, você ia destruir a vida dela. Mandou dinheiro pra uma clínica de fundo de quintal. Ela sangrou até morrer lá mesmo.
Marcelo recuou um passo, branco como papel.
— Isso... Isso não é verdade...
— Ah, é sim. E eu fiquei preso por vingança. Matei o médico que fez o aborto. Era só um velho escroto. Não adiantou nada. Minha mãe morreu de tristeza. E você? Continuou sua vidinha de luxo, né? E agora tá aqui... comigo.
O pátio ficou em silêncio, como se o próprio presídio estivesse prendendo a respiração.
— Olha, cara... — Marcelo tentou recuar — eu nem sabia...
Careca foi pra cima com o primeiro soco. Marcelo caiu duro no chão, batendo as costas no concreto. Tentou engatinhar, mas Careca já estava sobre ele.
— Ela morreu gritando, seu merda!
O segundo soco quebrou-lhe o nariz. Marcelo tentou gritar por ajuda, mas ninguém se moveu. Nem os carcereiros.
— Isso é por ela! — gritou Careca, puxando do bolso uma escova de dentes afiada, convertida em punhal.
Marcelo arregalou os olhos. — Não! Por favor...!
— Você não lembra dela. Mas eu lembro de tudo.
O punhal entrou uma, duas, três vezes no tórax de Marcelo. Ele tentou gritar, mas a voz morreu na garganta. Sangue espirrou no chão quente. Os últimos sons que ouviu foram gritos distantes, mas ninguém correu para socorrê-lo.
Ali, entre o cheiro de suor, concreto e sangue, Marcelo Sampaio morreu. Não de infarto. Não de culpa. Mas assassinado por alguém que ele destruiu sem sequer lembrar o nome.
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Renata apagou as luzes da sala pela última vez. O letreiro da FAMA, lá fora, piscava defeituoso — o “F” já tinha queimado. Restava “AMA”.
Atrás dela, caixas empilhadas, e-mails ignorados, contratos rasgados sobre a mesa de vidro. O ar cheirava a mofo e perfume caro vencido.
Ela deixou seu crachá sobre o balcão, ajustou os óculos escuros e saiu sem olhar para trás.
No corredor, cruzou com Leônidas.
— Vai fugir? — ele perguntou, encostado na parede.
Ela sorriu de canto.
— Eu sobrevivi a Marcelo, à Luiza... e a você. Fuga é o que vocês fazem.
— E silêncio é o que você sempre escolheu.
Ela o encarou por um segundo. Depois, continuou andando.
Lá fora, o sol se punha por trás dos prédios.
A FAMA era só mais uma ruína com ar-condicionado.
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As notícias se espalharam como fumaça densa no fim da tarde abafada de novembro.
“Marcelo Sampaio, ex-presidente do Grupo FAMA, é morto dentro do presídio de Tremembé. Empresário enfrentava mais de trinta acusações, entre elas tráfico de órgãos, sequestro, tentativa de homicídio e obstrução da justiça.”
Não houve comoção pública. Nenhum luto oficial. Apenas manchetes frias e comentários ácidos nas redes sociais. Os antigos aliados sumiram. O telefone de seu advogado não tocou. Sua morte foi o ponto final de um império que apodreceu por dentro muito antes de ruir por fora.
Na mansão vazia de Alphaville, Pia leu a notícia em silêncio. Apenas virou a página do jornal, sem qualquer expressão.
Camila, com o celular na mão, mostrou para Diego sem dizer nada. O irmão deu de ombros, mas ficou com o maxilar travado por horas. Não era tristeza. Era o desconforto de quem sabe que foi usado, mesmo de longe, por um homem como aquele.
Tatiana serviu café amargo para Márcia e apenas comentou:
— Podia ter sido diferente.
— Mas não foi — respondeu Márcia. — Gente como ele não aceita cair. Precisa ser derrubado.
Leônidas recebeu a notícia sozinho, sentado no parapeito do abrigo em que prestava serviço. Leu, releu, e depois apagou a tela. Ficou olhando o céu claro por um tempo, sentindo o sol bater na pele. Não chorou. Mas também não respirou por vários segundos.
O homem que o reconheceu tardiamente como filho, que o usou, o testou, o traiu — havia morrido de forma violenta, covarde, em silêncio. Como vivia. Como manipulava.
Ele não disse nada para Alexandre. Não naquele dia.
Na Quimera em reconstrução, os antigos funcionários da FAMA que agora trabalhavam sob o nome novo apenas se entreolharam. Ninguém soube exatamente o que dizer. Mas sabiam o que sentiam: alívio.
Luiza não viveu para ver o fim do pai. E ninguém soube dizer se ela teria chorado. Talvez tivesse odiado vê-lo vencido. Talvez tivesse comemorado. Talvez não fizesse mais diferença.
A morte de Marcelo não uniu ninguém. Não fechou feridas. Mas abriu espaço. Um silêncio novo. Uma chance de, finalmente, viverem sem a sombra dele pairando sobre tudo.
O cheiro de tinta fresca ainda dominava o ar. A nova sede da Quimera, em um andar comercial envidraçado no centro de São Paulo, estava quase pronta — mais enxuta, mais ousada, mais Leônidas.
Não havia estátuas, nem tapetes vermelhos. Em vez disso, paredes pretas com detalhes dourados, luzes dirigidas e uma recepção minimalista com o logo ainda coberto por um tecido escuro. O antigo sonho queimado por Vicente havia virado projeto. E agora virava empresa.
Márcia ajeitava o figurino de um dos atletas da nova campanha. Tatiana conferia prazos no cronograma colado à parede de vidro.
— As pastas da coletiva já estão prontas. E a imprensa confirmada. — disse Márcia, sem tirar os olhos do tablet.
Leônidas Maia Soares assentiu, de braços cruzados, observando tudo com o rigor de quem já perdeu demais para aceitar deslize.
— E os dados dos patrocinadores? — perguntou.
— Os da prefeitura, já. O pessoal da Natura só falta assinar. E o Roberto... tá vindo hoje. — respondeu Tatiana, seca.
Roberto, o possível cliente com interesses em projetos sociais, era aposta pessoal de Leônidas. E talvez a ponte entre a nova Quimera e o mundo que a FAMA sempre tentou controlar.
No canto da sala, Alexandre folheava um catálogo de identidades visuais. Adolescente e introvertido, preferia silêncio ao networking. Mas todos respeitavam sua presença. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Leônidas observava com discrição. Nunca dizia “meu filho” em voz alta. Mas tudo ali era por ele.
— Acha que ele vai gostar? — perguntou Alexandre, apontando para a nova paleta de cores.
— Acho que você já sabe a resposta. — respondeu Leônidas.
Do lado de fora, os antigos funcionários da FAMA passavam com pranchetas e caixas, agora parte da Quimera. Eles traziam experiência — e sede de vingança.
Na porta de entrada, o pano preto finalmente caiu.
QUIMERA — Gerenciamento de Carreira. Marketing. Imagem.
Acima, em letras menores:
Coragem para começar do zero. Força para não repetir os erros.
Leônidas sorriu. Não por orgulho. Mas por ter sobrevivido.
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A sala do fórum era pequena, abafada, com paredes bege e um relógio antigo que fazia um tique-taque insistente. Alexandre balançava as pernas na cadeira ao lado de Leônidas, os dois de mãos dadas. O juiz assinava os últimos papéis com um carimbo pesado, enquanto a assistente social observava em silêncio.
— Está feito — disse o juiz, com um sorriso contido. — A partir de hoje, Alexandre leva seu sobrenome, Leônidas. Adoção plena, definitiva.
Leônidas respirou fundo. Seus olhos marejaram sem pressa, como se o corpo todo esperasse esse momento havia anos. Ele olhou para Alexandre, que, com o queixo trêmulo, perguntava baixinho:
— É sério mesmo?
— É sério, meu amor. Você é meu filho. De verdade. De papel, de alma, de tudo.
O menino caiu nos braços de Leônidas, soluçando. Leônidas o acolheu com os dois braços, as mãos grandes nas costas magras do garoto, e sussurrou:
— Eu tava esperando por você a vida inteira. Agora você nunca mais vai ter que duvidar. Nunca mais vai ficar sozinho.
A assistente social enxugou discretamente os olhos. O juiz pigarreou.
— Vocês podem ir.
Alexandre ergueu o rosto ainda úmido de lágrimas, tentando disfarçar com um riso envergonhado.
— Mas pensei em reformar seu quarto, uma cama enorme, uma estante de livros, um armário maior... e um cachorro, talvez?
— Um pit bull! — Alexandre gritou.
— Tá doido. Vamos adotar um Lulu da Pomerânia — Leônidas riu. — Mas vai ser você quem vai passear com ele.
Saíram do fórum de mãos dadas, como pai e filho. Não pela assinatura, mas porque os dois já eram assim há muito tempo. Só faltava o mundo entender.
E agora entendia.
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A Coletiva de Imprensa da Quimera
O auditório era pequeno, moderno, lotado. Parecia mais uma pré-estreia de cinema independente do que uma coletiva empresarial. Luzes discretas, taças de espumante e fotógrafos circulando como predadores educados.
No fundo do palco, o novo logo da Quimera reluzia sob um painel de LED:
QUIMERA — Gerenciamento de Carreira. Marketing. Imagem.
Márcia cochichava com os repórteres da Trip, GQ, e Folha Ilustrada. Tatiana monitorava perguntas e filtrava as armadilhas da imprensa — os jornalistas da coluna da Luiza não passariam da recepção.
Leônidas Maia Soares entrou em cena usando um terno preto sem lapela e uma camisa de seda cor vinho, aberta no colarinho. Elegante, calmo. Mas com o olhar afiado de quem já esteve no fundo do poço e voltou com sede de palco.
Ele se aproximou do microfone.
— Boa noite. Obrigado por estarem aqui. Quando a antiga sede da Quimera foi incendiada por um desequilibrado, muitos disseram que era o fim. Eu não respondi. Porque sabia que não era. Só estava começando.
Alguns risos contidos. Um clique de flash. Um suspiro surpreso de um estagiário mal informado.
— A Quimera nasce do fogo, sim. Mas também nasce da convicção de que imagem é mais do que estética — é ética, é verdade, é resistência. E, às vezes, é silêncio no momento certo.
Márcia cruzou os braços, orgulhosa. Tatiana apenas sorriu.
— Essa nova fase começa com novos rostos, novas histórias e uma velha obsessão: fazer diferente. Nossa primeira campanha oficial será lançada hoje. E nos próximos meses, vamos anunciar nossa entrada nos segmentos de cultura periférica, esporte, música e inclusão trans na publicidade de massa.
Murmúrios entusiasmados. Gravadores ligados.
Leônidas desceu um passo do palco.
— E sim, aceitamos clientes da FAMA que tenham... acordado a tempo.
Risos. Aplausos. Um jornalista anotou a frase inteira como manchete.
Alexandre, sentado na primeira fileira, gravava tudo com o celular. Não disse nada. Mas apertou o play duas vezes, só pra ver o pai dizendo: “fazer diferente”.
E dessa vez, não era promessa. Era inauguração.
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O centro de acolhimento ficava nos arredores da cidade, afastado do burburinho dos bairros centrais. Uma construção simples, com paredes descascadas, ventiladores barulhentos e o som constante de rádio popular tocando músicas antigas.
Leônidas chegava pontualmente todas as manhãs. Roupas discretas, olhar baixo. Carregava consigo um fichário de anotações, mas não precisava consultar nada — já decorara a rotina.
No papel, ele organizava arquivos, apoiava a equipe nos encontros de orientação com jovens em situação de vulnerabilidade, servia lanches, catalogava doações. Na prática, fazia mais do que o esperado: ouvia. Silenciosamente, com uma paciência que ninguém associaria ao nome que ele carregava.
— Esse menino aí era famoso, né? — cochichavam alguns internos.
— Dizem que era dono de uma agência chique... foi parar aqui por causa de escândalo.
Leônidas fingia que não ouvia. Às vezes, oferecia um sorriso breve. Outras, apenas um aceno de cabeça. O julgamento já não o incomodava tanto — aprendera a conviver com ele como quem carrega uma cicatriz visível.
Durante os intervalos, sentava no banco dos fundos, ao lado de uma árvore seca, e respirava fundo. Às vezes lia. Às vezes só ficava ali, parado, com a cabeça encostada no muro, sentindo o vento quente passar.
Quando Alexandre aparecia, de surpresa, com um sanduíche na mão ou falava sobre alguma ideia que teve para alguma campanha, o dia ganhava cor. O menino corria até ele, chamava alto, e Leônidas deixava escapar um sorriso verdadeiro.
— Isso aqui tá quase bom, hein? — dizia Alexandre.
—Quase — respondia ele. — Falta só uma coisa ficar no lugar.
No centro, ninguém falava sobre o passado dele depois da segunda semana. O marqueteiro famoso, o filho bastardo do magnata, o homem dos escândalos — ali, ele era só Leônidas. Um homem tentando fazer certo. Tentando, pela primeira vez, não ser notícia.
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A tarde de novembro escorria devagar no terraço de Tatiana e Márcia. A primavera acariciava a cidade com um vento morno e cheiro de flor. Balões dourados pendiam frouxos nas grades, e o som baixo de uma playlist antiga preenchia o ar. Leônidas, sentado num banco de madeira, encarava o horizonte. Estava ali, mas em silêncio, distante, como se esperasse alguma coisa que nunca vinha.
— Faz um pedido, vai — disse Tatiana, entregando uma taça de espumante.
Leônidas sorriu, mas o sorriso morria antes de alcançar os olhos.
— Já fiz todos. Só não sei se ainda acredito neles.
Márcia e Roberto trocaram um olhar cúmplice. A festa era pequena, íntima. Mas havia um vazio ali, evidente.
CASA DE PIA E ALDO
Aldo estava sentado à mesa, mexendo mecanicamente num prato de arroz. Pia o observava em silêncio, depois se sentou à frente dele.
— A gente não precisa continuar isso.
Aldo levantou os olhos devagar.
— Continuar o quê?
— Esse teatro. Essa tentativa. Eu gosto de você, Aldo. Mas você não me ama mais. Não daquele jeito.
Camila se aproximou da porta da cozinha. Pia fez um gesto para ela entrar.
— Tá na cara. Você anda triste, apagado, feito um fantasma. Só fala do centro, dos treinos... nunca sorri. E toda vez que escuto o nome dele, seu rosto muda. Você precisa ir atrás do que te faz viver.
Aldo abaixou a cabeça. As mãos trêmulas.
— Eu não sei se ele ainda me quer.
— Isso você vai ter que descobrir — respondeu Pia, serena. — Mas ficar aqui, nesse meio-termo, mata nós dois.
Camila se aproximou do pai, de olhos doces:
— A gente só quer ver você feliz, pai. Mesmo que seja longe da gente às vezes. Você e o Leo… eram luz.
Aldo levantou-se devagar. Foi até o quarto e abriu uma gaveta. De dentro, tirou uma corrente de prata com uma medalha de São Bento, levemente escurecida pelo tempo.
— Era pra eu ter dado isso pra ele no aniversário do ano passado. Pra protegê-lo. Mas eu fiquei com medo.
Pia se levantou e tocou o ombro dele.
— Vai agora. Antes que seja tarde. A primavera é tempo de recomeço.
TERRAÇO DE TATIANA E MÁRCIA
Leônidas assoprava a vela do bolo sem muito entusiasmo quando um grito ecoou pela escada:
— LEÔNIDAS! LEÔNIDAS !! ME ESCUTA!
Todos se viraram.
— É ele? — sussurrou Márcia, já correndo pra porta.
Aldo surgiu segundos depois, ofegante, suado, com os olhos úmidos e a corrente na mão fechada. Camila e Diego logo atrás.
— Eu fui um covarde — disse, entrando. — Passei o ano me escondendo. Tentando te esquecer. Fingindo que dava pra voltar pra vida de antes. Mas não dava. Não sem você.
Leônidas congelou, em choque.
Aldo caminhou até ele e abriu a mão, revelando o colar.
— Isso aqui... era teu. É pra te proteger. Como você me protegeu de mim mesmo. Como ninguém nunca fez. Eu sou melhor contigo. Sou mais inteiro. Mais homem. E eu quero, com tudo que tenho... te amar de novo. Te amar direito. Se você ainda deixar.
Leônidas deixou as lágrimas escorrerem. Caminhou até Aldo devagar, olhos presos àquele homem desmoronado à sua frente.
— E Pia?
Camila respondeu:
— Eles não estão mais juntos. Ela mandou ele vir.
Aldo se ajoelhou, segurando a corrente com força:
— Leônidas Maia Soares... me deixa ser teu. De corpo, alma e sobrenome, se você quiser. Me deixa casar contigo.
Leônidas não respondeu com palavras. Apenas caiu de joelhos à frente de Aldo e o beijou com força. Um beijo selvagem, terno e desesperado.
— Sim — sussurrou ele entre os lábios do outro. — Sim.
Tatiana desabou num choro ruidoso. Márcia gritava "aleluia!". Roberto sorria discreto, de braços cruzados.
E ali, no terraço simples sob o céu violeta da primavera, o recomeço deles floresceu.
FIM DA HISTÓRIA
NOTA DO AUTOR:
OBRIGADO POR ME ACOMPANHAREM.
LAURO COSTA