O sol ainda mal tocava as persianas quando Amanda se sentou na beirada da cama. Os pés descalços tocaram o piso frio, e por um instante ela ficou ali, imóvel, com os olhos fixos no chão como se buscasse coragem em alguma rachadura do azulejo. Levantou-se devagar, andando até o banheiro. Matheus ainda dormia.
A água da pia escorria silenciosa enquanto ela lavava o rosto. Seus olhos estavam fundos, não pelo sono, mas pela vigília da noite anterior — uma madrugada inteira tentando calar a voz interna que insistia em lembrar do que sentira no elevador. O cheiro discreto de Cadu ainda parecia preso à memória.
Matheus se virou na cama com um resmungo leve. Amanda já passava batom diante do espelho do guarda-roupa quando ouviu o som agudo de notificação do celular dele. Era uma mensagem. Ela não deu importância, continuou sua rotina. Mas Matheus sim. Ele esticou o braço, apertou o botão e leu em silêncio, sem se levantar.
— É do Cadu — disse, ainda deitado, com a voz rouca da manhã.
Amanda parou de prender o cabelo.
— O que ele disse?
— Que queria te ver. Perguntou se você toparia almoçar com ele um dia desses.
Silêncio.
Amanda virou-se devagar para encará-lo. Não havia culpa nos olhos dela — havia peso, inquietação, mas não culpa.
— E o que você acha?
Matheus ficou em silêncio por longos segundos. Depois sentou-se na cama. Passou a mão no rosto, como se aquilo pudesse afastar a sensação de soco no estômago que havia sentido.
— Acho que estou tentando não enlouquecer — respondeu, com franqueza. — Porque cada vez que esse nome aparece... alguma coisa dentro de mim se parte.
Amanda se aproximou devagar. Sentou ao lado dele. As costas dela estavam nuas, a blusa ainda aberta nas costas. Não era sensualidade: era vulnerabilidade.
— Não é simples pra mim, Matheus. Eu queria dizer que é só um impulso, que vai passar. Mas não é. Não é mais sobre Cadu. É sobre mim.
— Mas ele é o gatilho — rebateu Matheus. — Ele representa... tudo o que você está buscando agora. Liberdade? Fechamento? Excitação? Talvez até vingança contra a vida, contra o tédio. Não sei. Mas ele é o caminho. E sou eu quem tem que abrir o portão.
Amanda engoliu em seco. Os olhos dela marejaram.
— Você acha que eu sou cruel?
— Não — ele respondeu com a voz baixa. — Eu acho que você está ferida. E que feridos machucam. Você não está me torturando de propósito... mas também não está me protegendo.
— Eu não quero te perder.
— Mas quer ir — ele sussurrou, encarando o chão. — Quer saber o que ainda existe ali. Se ele ainda sente. Se você ainda sente. Se tudo aquilo que ficou em aberto... ainda pulsa.
Ela encostou a cabeça no ombro dele, devagar.
— Eu queria que você me pedisse pra não ir — murmurou.
— E se eu pedir? — ele respondeu, encarando-a. — Você vai ficar? Ou vai me odiar depois?
Ela demorou a responder.
— Eu não sei.
A sinceridade dela doeu mais do que qualquer mentira poderia ter doído.
Matheus levantou-se da cama e andou até a varanda. O sol já batia nas plantas. Ficou ali, em silêncio, apoiado no parapeito, olhando a rua.
Amanda o seguiu. Abraçou-o por trás.
— Matheus... você quer que eu vá?
Ele fechou os olhos. Respirou fundo. Quando respondeu, sua voz era quebrada.
— Eu não quero. Mas talvez você precise. E talvez... talvez se eu tentar impedir, isso vire uma prisão pra nós dois. E você vai embora de qualquer jeito. Mesmo que fique.
Ela chorou ali, em silêncio, contra as costas dele.
Ele virou-se. Tocou o rosto dela.
— Eu não sou forte o tempo todo. Você sabe disso. Isso me machuca. Isso me mata por dentro.
— Eu sei — ela sussurrou. — Mas eu te amo. E é por isso que estou te perguntando. Porque se você disser "não", Matheus, eu vou respeitar.
Ele hesitou. Segurou o queixo dela, olhou fundo.
— Não vá hoje. Pense. Sinta. E se ainda quiser... a gente decide juntos.
Amanda assentiu, em silêncio.
Eles ficaram ali, abraçados, como se tentassem prolongar aquele instante antes de tudo mudar.
O relógio no canto da tela marcava 14h47. Amanda estava há quase uma hora olhando para o mesmo parágrafo, tentando revisar um parecer jurídico que já não fazia mais sentido algum. As palavras embaralhavam, e os olhos ardiam como se estivessem prestes a chorar — mas não choravam.
O celular vibrou discretamente ao lado do mousepad.
Mensagem de Cadu:
“Pensei num lugar tranquilo para o almoço. Quando quiser, me avise.”
Ela encarou a notificação sem abrir, como se aquilo pudesse fazer o conteúdo desaparecer. Aquele simples convite tinha o peso de uma decisão irreversível. Amanda respirou fundo, fechou os olhos por um instante.
Matheus.
Ela pensou nele como quem segura um nome entre os dentes para não esquecer como é pronunciado.
“Como ele tá agora? Será que ainda tá tentando entender ou só tá sofrendo quieto? Será que ele me odeia por isso, ou só me ama demais pra ir embora?”
Com os dedos tensos sobre a tela, respondeu com o mínimo possível:
Amanda:
“Preciso pensar. Isso mexe com mais gente do que eu.”
Pouco depois, Cadu respondeu:
Cadu:
“Eu entendo. Mas pensar também dói. Tô aqui.”
Ela apertou os lábios, desconfortável com a naturalidade com que ele parecia saber se posicionar. Amanda sentiu raiva de si mesma por ter aberto aquela porta.
Ela pensava em Matheus, em como ele a olhou pela manhã. Não tinha dito nada, mas a ausência de palavras dele pesava mais que qualquer briga. Não era só medo de perdê-lo — era a vergonha de perceber que talvez já tivesse começado a machucá-lo antes mesmo de saber o que queria.
Se sentia egoísta.
“E se fosse o contrário? E se Matheus reencontrasse alguém? Uma ex que tivesse ficado mal resolvida? E se eu estivesse do outro lado? Eu aceitaria? Teria essa maturidade toda que agora exijo dele?”
Cadu mandou mais uma mensagem. Mas dessa vez ela não leu. Bloqueou a tela, se inclinou para trás na cadeira e cobriu os olhos com as mãos.
Ela queria entender o passado. Mas tinha medo que, ao fazer isso, perdesse o futuro.
O apartamento estava em silêncio, mas a cabeça de Matheus era um pandemônio.
Sentado à mesa da sala com o notebook aberto, ele tentava, em vão, revisar um orçamento de cliente. As palavras embaralhavam, os números escorriam da tela. Nada fazia sentido — exceto aquela imagem que insistia em voltar como uma febre: Amanda, sozinha, em outro lugar, com outro homem. Sorrindo talvez. Disfarçando aquele nervosismo encantador que ele conhecia tão bem. Ela era assim quando gostava de alguém. Quando queria alguém.
A simples ideia o fazia querer quebrar a porra da tela à sua frente.
Levantou-se num impulso, caminhou até a cozinha, abriu a geladeira sem fome. Pegou uma cerveja. Fechou. Tornou a abrir. Nada havia mudado lá dentro. Mas ele não conseguia ficar parado.
"Será que ela já respondeu?"
"Será que ele já sugeriu dia, lugar, hora? Será que ela sorriu quando leu?"
Engoliu um gole amargo. A raiva vinha quente, mas passava rápido, dando lugar ao que realmente estava lá desde o começo: medo.
Porque se ela for... e gostar?
Porque se ela for... e não quiser mais voltar?
Porque se ela já tiver ido — emocionalmente — e ele é o último a perceber?
Matheus sentou-se no sofá com a garrafa na mão e deixou os olhos passearem pelo apartamento. Os quadros que eles escolheram juntos. A luminária que ele odiava, mas fingiu que adorava porque ela estava animada no dia. A planta no canto que ele regava quando ela esquecia. A escova de dente dela que ele ainda tirava do copinho pra limpar por baixo. As coisas dela. A presença dela. Tudo ali.
"Ela quer trazer o passado pra dentro disso tudo?"
"Quer revirar o baú e jogar no meu colo?"
Ele tentou se imaginar fazendo o mesmo. Revirando mensagens antigas de uma ex. Chamando pra um café. E então olhou para a porta da frente como se esperasse Amanda entrar e pegá-lo nesse pensamento. Se envergonhou. Mas também se revoltou.
"Se fosse eu, ela deixaria?"
A verdade doeu: não. Ela surtaria. E ele sabia disso. Porque Amanda nunca foi boa em dividir o que queria. Mas agora... queria que ele aceitasse dividir o amor deles. Com um homem que nem parte do presente era — apenas um eco mal resolvido.
Matheus deitou no sofá e fechou os olhos, tentando forçar a mente a desligar. Mas só conseguiu se lembrar do que ela lhe dissera no último fim de semana, com a voz baixa e os olhos fundos de dúvida:
“Talvez eu precise disso pra entender quem eu sou.”
E ele? Quem era ele no meio disso?
Um espectador? Um cúmplice? Um idiota?
Ele sentia vontade de fugir e de abraçá-la ao mesmo tempo. De deixá-la ir e de suplicar para que ficasse. De se proteger e de se doar. Mas a dúvida era ácida demais para ignorar.
"Eu deixo ela ir... e ela não volta."
"Ou eu deixo ela ir... e quando ela voltar, eu já não estarei mais aqui."
E nessa dualidade cruel, Matheus começou a entender o que era morrer por dentro e ainda parecer vivo.
A chave girou na fechadura e o som foi como uma campainha de alerta para Matheus, que ainda estava deitado no sofá, sem saber se queria correr para o quarto ou encará-la de frente. Sentou-se devagar, ajeitou a camiseta amarrotada e esperou.
Amanda entrou com uma caixa de pizza na mão e o rosto carregado, mas não cansado como de costume — era outra coisa. Um tipo de inquietação que ele conhecia. O silêncio entre os dois durou segundos demais.
— Trouxe a de calabresa com cebola que você gosta… — ela disse, tentando suavizar o ar com um sorriso tímido. Mas estava claro que ela não veio só com a pizza. Veio com decisões.
Matheus assentiu. — Valeu.
Ela largou a caixa na mesa, tirou os sapatos e foi até a cozinha. Pegou dois copos, voltou. Serviu refrigerante. Tudo em um ritmo lento, como se cada gesto adiasse o inevitável.
— Ele mandou a mensagem — ela começou, sem rodeios. — A mesma que você viu.
Matheus não respondeu. Apenas olhou pra frente, como se esperar fosse a única defesa que ainda lhe restava.
— E? — ele soltou, finalmente, seco.
— Respondi. Com educação, mas… respondi. — Ele sugeriu um almoço. Só isso. — disse, sentando-se no braço do sofá, sem comer, sem beber.
— Você quer ir?
Amanda respirou fundo.
— Eu... queria. Mas isso não quer dizer que eu vá. Não do jeito que está.
Matheus virou o rosto, evitando encará-la.
— Amanda… eu queria te odiar.
Ela ficou em silêncio, absorvendo aquilo como quem ouve uma sentença.
— Queria — ele repetiu. — Queria sentir raiva, xingar, quebrar tudo. Mas não consigo. Porque você tá aqui. Sentada comigo. Me dizendo a verdade.
Amanda abaixou o olhar. Não havia mais espaço para fuga.
— Eu queria entender por que ele ainda vive em mim, Matheus. Não é amor. Não é falta. É um chamado estranho. Uma parte mal resolvida que, por alguma razão, me pressiona o peito. E… eu preciso entender isso. Eu preciso romper com isso.
— Romper? Indo até ele?
— Sim — ela respondeu, com dor, mas firmeza. — Indo de cabeça limpa. Com você na minha mente. Sem mentir pra mim. Ou pra você.
Matheus respirou fundo, lutando contra o instinto de se encolher. Mas também lutando contra o orgulho de se afastar.
— Isso me mata, Amanda — ele disse. — Saber que você vai, que vai encontrar outro homem… me atravessa. E, ao mesmo tempo, tem algo em mim que não consegue parar de imaginar. Que excita. Que destrói. Que confunde. Como se... eu também estivesse te entregando. E vendo você se afastar com um pedaço de mim no bolso.
Amanda deslizou a mão até a dele, mas não tentou entrelaçar os dedos.
— Não quero te machucar.
— Mas vai.
Silêncio.
Ele soltou um leve riso incrédulo, amargo.
— Eu fico tentando entender, sabe? Como seria se fosse o contrário. Se fosse eu com uma mulher do passado. Se você aguentaria.
— Não aguentaria — ela disse, de imediato. — Não mesmo. E é por isso que me sinto egoísta. Porque você tá aqui, me ouvindo, aceitando. E eu… eu não sei se teria essa grandeza.
— Não é grandeza — Matheus rebateu. — É amor. E talvez medo de te perder. Não sei mais a diferença.
Ela finalmente encostou a testa na dele.
— Se eu for… vai ser pra enfrentar. Pra encarar esse nó e cortar de vez. Eu não vou me jogar. Não quero me perder. Mas preciso saber por que ele ainda me prende. E preciso que você esteja comigo. Aqui dentro. Me lembrando quem eu sou.
Matheus ficou em silêncio por alguns segundos. Quando falou, a voz era baixa, trêmula:
— Vai. Mas leva minha voz contigo. Me leva nos teus olhos. E se perceber que está perdendo a gente no caminho… volta. Não me deixa virar passado enquanto busca no passado uma parte que já devia ter morrido.
Amanda deixou uma lágrima escorrer, mas não se afastou.
— Eu volto. Só se for pra voltar inteira. Por nós.
Ele fechou os olhos.
Ela ficou ali, sentindo o peito doer — e ao mesmo tempo, um certo alívio: havia verdade entre eles. Ainda havia amor.
E em algum canto não nomeado do apartamento, nas sombras do medo e da coragem, uma promessa silenciosa se formava:
Amanda iria.
Mas não iria sozinha.