Quando meus olhos se abriram, a claridade branca do teto me cegou por alguns segundos. Um bip constante preenchia o silêncio, e o cheiro de álcool e desinfetante invadia minhas narinas. Pisquei, confuso, e senti um peso no peito — não de dor, mas de angústia. Meus braços estavam fracos, e um tubo de soro pendia de minha mão esquerda. Estava deitado… numa cama. Uma cama que não reconhecia. Um lugar que não reconhecia.
Hospital.
Meu corpo gelou. Tentei me mexer, mas tudo doía. Era como se um caminhão tivesse passado por cima de mim. A garganta estava seca, e meu coração batia acelerado, como se quisesse fugir do meu peito. Eu tentei juntar as lembranças, mas tudo vinha em flashes confusos: gritos, sangue, o rosto dela… e Bernardo. Deus, Bernardo!
Uma porta se abriu suavemente, e uma mulher de jaleco branco, com os cabelos castanhos presos em um coque frouxo, entrou sorrindo gentilmente.
— Ah, que bom que acordou… — disse ela, se aproximando. — Está tudo bem, Pietro. Você está seguro agora. Não se assuste, tá? Só precisa descansar.
Minha boca se abriu sem som, os olhos ainda marejados de confusão.
— Onde… onde eu tô? — murmurei, a voz quase falhando.
— Uma clínica particular, na zona rural da cidade. Você foi trazido às pressas. Está estável agora, mas precisa ficar em observação — explicou ela com calma, como se estivesse acostumada a lidar com pessoas despertando de pesadelos.
Então ela sorriu com doçura e completou:
— Vou chamar seu namorado. Ele está aqui desde que você chegou, não saiu um minuto do seu lado.
Ela saiu do quarto antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. E foi nesse momento que minha respiração falhou.
Bernardo.
Ele estava vivo?
Minha cabeça girava com perguntas. Eu me lembrava de vê-lo no chão, o corpo inerte, os olhos fechados… E depois, tudo ficou escuro.
A maçaneta girou lentamente e, quando ele entrou, meu mundo inteiro pareceu desabar.
Bernardo.
O rosto de preocupação,um corte imenso no braço que mostrava os vários pontos costurado. A roupa trocada, mas o olhar… o olhar dele era o mesmo. Aquele olhar forte, intenso, que sempre me fazia sentir seguro. E ele estava ali. Vivo.
— Pietro… — disse ele, e a voz dele tremeu.
Eu não consegui segurar. As lágrimas caíram com força, desgovernadas, como se estivessem presas havia dias.
— Eu achei… eu achei que você tinha morrido! — gritei entre soluços, com o coração despedaçado. — Eu vi você no chão, eu vi tanto sangue… eu pensei que eu mesmo tinha morrido, Bernardo… Eu… eu…
Bernardo se aproximou rapidamente e segurou minha mão com firmeza, seus olhos também cheios de lágrimas que ele tentava conter.
— Eu tô aqui, amor. Eu tô aqui. Calma…
— Como você… como você tá vivo? — insisti, desesperado.
Ele puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado, ainda segurando minha mão como se tivesse medo que eu desaparecesse de novo.
— Eu fui atingido, sim… ela me pegou de surpresa. A faca me acertou no braço e no peito de leve, mas não atingiu nenhum órgão vital. Eu caí no chão e fiz o que aprendi na cadeia: fingi que tava morto. Eu não podia reagir… não sabia se ela ia voltar. E então… você chegou. Pietro, você… você tentou me salvar. E ela te atacou também.
Fechei os olhos, sentindo a dor da lembrança.
— Ela parecia… perdida. Fora de si. Não conferiu se a gente tava realmente morto. Simplesmente saiu correndo.
Ele fez uma pausa e respirou fundo antes de continuar:
— Quando eu tive certeza de que ela tinha ido embora, reuni tudo que me restava de força. Eu consegui me levantar, mesmo quase desmaiando. E aí… eu vi você. No chão, ensanguentado, desacordado.
— Bernardo… — murmurei, minha voz embargada.
— Eu pensei que fosse te perder ali mesmo. Mas eu não ia deixar isso acontecer. Não podia. Você era a única coisa que me importava. Então… eu te carreguei até a garagem. Te coloquei no banco do passageiro. Fiz ligação direta num carro que tava lá parado… e dirigi até essa clínica. Não podia chamar polícia, não podia correr riscos. Eu só queria salvar você.
As lágrimas voltaram a cair, mas agora misturadas com um alívio profundo. Eu tremia, mas pela primeira vez desde aquele dia, era por gratidão.
— Você me salvou… — sussurrei, apertando a mão dele.
Ele me olhou, e seu rosto se desmanchou em emoção. Se aproximou e colou sua testa na minha.
— Você também me salvou, Pietro, naquela maldita prisão. E eu jurei que, se você abrisse os olhos de novo, eu nunca mais ia deixar você ir.
Ficamos ali, um no outro, em silêncio, sentindo nossos corações batendo juntos, tentando nos lembrar de que estávamos vivos. De que, apesar de tudo, ainda tínhamos uma chance. Uma nova chancea semana havia se passado desde aquela noite sangrenta e silenciosa.
Sete dias de recuperação lenta na clínica escondida no interior, com cheiro de campo entrando pela janela, enquanto a cidade lá fora seguia sua vida — e nós, escondidos dela. Sete dias em que o medo e a dor foram dando lugar a uma estranha calma, daquelas que só vem depois do caos, como quando o mar se aquieta após a tempestade.
Na manhã do oitavo dia, com os corpos ainda machucados e as almas remendadas às pressas, nós partimos.
O ônibus estava prestes a sair da rodoviária quando nos acomodamos nos assentos 19 e 20, lado a lado, disfarçados entre as malas e o cansaço alheio de quem também fugia de algo — de uma vida difícil, de um amor perdido, de um passado que não cabia mais na bagagem.
Bernardo usava um boné escuro e óculos simples de grau sem lente. A barba por fazer escondia parte dos machucados no rosto. Eu vestia um moletom velho e largo, capuz puxado sobre os cabelos, como se isso fosse suficiente pra esconder tudo o que havíamos passado.
A poltrona era estreita, o tecido surrado, mas ali, juntos, parecia um ninho. Um abrigo.
Do lado de fora da janela, a cidade parecia indiferente. A rodoviária era barulhenta, cheia de vozes apressadas, crianças chorando, vendedores gritando, malas batendo no asfalto. Tudo seguindo como sempre — como se o mundo não tivesse desabado sobre nossas cabeças.
Eu olhei pra ele em silêncio por alguns instantes, e então falei:
— Eu me sinto mal de não ter dito nada a Pedro.
Bernardo virou o rosto devagar, como quem já esperava por isso. Seu olhar era firme, mas não duro. Um olhar que aprendeu a sobreviver sem pedir permissão.
— É melhor assim, Pietro — respondeu ele, depois de um suspiro. — A gente quase morreu por causa dele. Por causa das merdas que ele atrai. A verdade é que Pedro tá tão afundado nos próprios demônios que nem percebe que arrasta os outros com ele.
— Mas ele ajudou a gente, que nos tirou da cadeia. De certa forma, foi ele quem nos deu uma direção, uma chance… — murmurei, sentindo um nó se formar na garganta.
Bernardo assentiu com um leve balançar de cabeça.
— E você retribuiu com lealdade. Até demais. Mas agora… é a nossa vida que tá em jogo. Você quer voltar praquilo? Pro medo? Pro jogo de vingança? — ele fez uma pausa e me encarou — A gente tem uma chance, Pietro. De recomeçar. Limpos. Longe. Só nós dois. Não estraga isso por um sentimento de culpa.
Engoli seco. Eu sabia que ele estava certo. Sabia que o que Pedro tinha construído era um castelo de cartas, e que bastava um sopro — ou uma faca, como aquela mulher carregava — pra tudo ruir. E já tinha ruído demais.
Olhei de novo pela janela. O céu estava nublado, mas o calor do dia ainda se fazia presente. Um vendedor passou oferecendo água e doces, a moça do banco da frente falava ao celular, alguém tossia mais atrás. Tudo tão comum. Tão distante do que tínhamos vivido.
O motor do ônibus roncou como se despertasse de um sono profundo. O cobrador deu uma última checada na lista de passageiros, e então as portas se fecharam.
O ônibus começou a se mover. Lentamente no começo, até sair da plataforma e pegar a rua, deixando a rodoviária, a cidade, e tudo o que havíamos sido para trás.
Fechei os olhos por um instante e recostei minha cabeça no ombro de Bernardo. Senti seu braço me envolver, devagar, quase com medo de me machucar.
O mundo lá fora desaparecia aos poucos enquanto a estrada se abria à nossa frente. E naquele silêncio entre as árvores que começavam a surgir pela janela, senti a primeira paz verdadeira em muito tempo.
Eu não sabia o que nos esperava em São Paulo. Não sabia se conseguiríamos emprego, casa, ou mesmo uma vida que valesse ser chamada de nova. Mas eu sabia que estávamos juntos.
Bernardo respirava fundo ao meu lado, e eu podia ouvir o coração dele bater. Forte. Vivo. Real.
— Obrigado por não me deixar pra trás — sussurrei, quase sem voz.
Ele apertou minha mão sobre a perna dele, e respondeu, com um sussurro firme:
— Eu nunca vou deixar.
A estrada nos engoliu como quem oferece uma segunda chance.
E eu, pela primeira vez em muito tempo, acreditei nela.
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AGRADECIMENTOS!
Queridos leitores!
Se você chegou até aqui, é porque acompanhou cada passo, cada lágrima, cada cicatriz e cada batida acelerada do coração de Pietro e Bernardo em Amor Sob Regime Fechado. E por isso — de todo o meu coração — obrigado!
Essa história nasceu de um lugar intenso dentro de mim, onde dor, desejo, amor, culpa e esperança se entrelaçam num nó apertado, como os sentimentos mais humanos que temos. Pietro e Bernardo foram forjados em meio a escuridões — tanto externas quanto internas — e juntos, mesmo com todas as marcas, encontraram um caminho. Mesmo machucados, escolheram continuar.
E você esteve lá o tempo todo. Foi testemunha. Confidente. Cúmplice.
Mas Amor Sob Regime Fechado é apenas o começo.
Essa história foi a base, o alicerce, a semente do meu livro principal: O Sabor de Uma Doce Vingança. Um universo maior, mais ousado, mais sombrio — onde personagens que você já conhece irão retornar sob novas camadas, novos conflitos e emoções ainda mais profundas. A vingança será apenas o tempero… porque, no fundo, ainda se trata de amor. Sempre foi.
Se Amor Sob Regime Fechado te tocou, te fez chorar, torcer, gritar ou simplesmente sentir — então eu espero que O Sabor de Uma Doce Vingança continue te arrebatando.
Obrigado por ler.
Obrigado por sentir.
Obrigado por acreditar.
Com carinho e emoção,
Alex Lima Silva