A tarde escorria lenta e viscosa, como o mel rançoso que sobrava no fundo do pote esquecido na despensa de Amanda. Junho havia chegado com seus dentes frios, mordiscando a nuca das pessoas, enchendo o ar de um cheiro úmido de terra revirada e mofo. A chuva não caía em torrentes, mas insistia em uma garoa fina, persistente, que grudava nas roupas como um suspiro molhado.
Amanda caminhava devagar, arrastando os pés sobre as poças que se formavam no asfalto rachado da periferia. Seu casaco fino — comprado em uma liquidação de fim de temporada — já estava encharcado nas bordas, e o vento cortante fazia seus ossos doerem. Ela apertava o corpo, tentando se fazer menor do que já era, enquanto segurava uma sacola de plástico com uma muda de roupa, caso o temporal piorasse.
O salão de Letícia ficava na garagem adaptada da casa nova, um espaço amplo, pintado de lilás, com posters de penteados extravagantes colados nas paredes. Ao entrar, Amanda foi recebida pelo cheiro adocicado da química capilar — amônia, babosa, óleo de coco — misturado ao aroma de café fresco que Letícia sempre mantinha no bule, para as clientes. O chão de cerâmica estava gelado sob seus pés descalços (ela tirara os sapatos molhados na entrada), e a música ambiente, algum samba antigo, ecoava baixinho, como um lamento distante.
— Amandinha, chega aqui, minha flor! — Letícia abriu os braços, envolvendo-a em um abraço que cheirava a brilho e perfume importado. Seu decote revelava os seios fartos, realçados pelo sutiã push-up, e o silicone dava um ar de artificialidade que, paradoxalmente, a fazia parecer mais viva.
Amanda sorriu, mas seus olhos — por trás dos óculos embaçados — estavam cansados.
— Tá parecendo uma gatinha jogada na chuva — Letícia franziu a testa, passando os dedos pelos cachos embolados de Amanda. — Cadê aquele brilho, hein?
Amanda encolheu os ombros.
— Tá difícil, Leti. O aluguel atrasado, as crianças com frio, o Ricardo sumindo...
Letícia suspirou, puxando-a para a cadeira de escova.
— Hoje a gente vai te arrasar. Vamos botar fogo nessa cabeça.
Enquanto Letícia separava os produtos, Amanda observava o salão. O vapor da chapinha subia em espirais, misturando-se ao cheiro do creme de hidratação. As mechas de cabelo caíam no chão como fios de uma teia desfeita. Do quarto, vinha o som abafado da televisão — Tadeo devia estar assistindo a algum debate político, como sempre.
De repente, a porta dos fundos rangeu. Tadeo apareceu, um homem largo, com a barba por fazer e um cigarro já aceso entre os dedos.
— Boa tarde, Amanda — cumprimentou, com uma voz rouca de quem falava pouco.
— Boa tarde, Tadeo.
Ele acenou com a cabeça e seguiu para a área de serviço, onde a chuva batia no toldo de zinco com um ritmo cansado. O cheiro do tabaco se misturou ao aroma do café e dos produtos, criando uma atmosfera densa, quase palpável.
Letícia começou a passar os dedos no couro cabeludo de Amanda, massageando com óleo de amêndoas.
— Você precisa se cuidar mais, minha filha. Nem que seja um dia por mês.
Amanda fechou os olhos, deixando-se levar pelo toque. Era raro alguém cuidar dela.
— Eu não tenho escolha, Leti.
— Todo mundo tem escolha — Letícia respondeu, baixinho. — Às vezes a gente só não enxerga.
E enquanto a tesoura cortava as pontas ressecadas, Amanda sentiu, pela primeira vez naquele dia, algo além do frio: uma pontada de calor, de possibilidade.
Mas era só uma sensação.
Ou não.
A água morna do chuveirinho escorria pelo couro cabeludo de Amanda, levando consigo a sujeira acumulada de semanas de descuido. Letícia massageava com movimentos firmes, as unhas pintadas de vermelho-rubi raspando levemente a pele, enquanto o cheiro do shampoo de karité se misturava ao vapor que subia do borrifador.
— Ele me chama de inútil, Leti. — A voz de Amanda saiu rouca, como se as palavras estivessem presas há muito tempo na garganta. — Diz que se não fosse por ele, eu e as crianças estaríamos na rua.
Letícia parou por um segundo, os dedos tensos. O rádio ainda tocava o samba antigo, mas agora a melodia parecia mais triste, como se também carregasse o peso daquela confissão.
— Ele trabalha? — perguntou Letícia, já sabendo a resposta.
Amanda riu, um som seco, sem humor.
— Trabalha? O máximo que faz é pegar uns bicos de pedreiro quando o dinheiro do Bolsa Família atrasa. E mesmo assim, metade some no bar. O resto... — Ela engoliu seco. — O resto ele guarda. Diz que é pra emergência, mas eu sei que é pra ele.
Letícia começou a passar o condicionador, os dedos deslizando pelos fios crespos com cuidado. O cheiro doce de manga e murumuru enchia o ar, um contraste cruel com a amargura das palavras.
— E ele te bate?
Amanda ficou em silêncio por um tempo. A água escorria pelo seu rosto, e ela não sabia se eram lágrimas ou apenas o respingo do chuveirinho.
— Nem sempre. Só quando acha que tô "falando demais". Ou quando o dinheiro some e ele acha que fui eu. — Ela ergueu a blusa discretamente, mostrando um roxo esverdeado na costela, já cicatrizando.
Letícia sentiu um calafrio. O salão, que antes parecia um refúgio acolhedor, agora tinha o ar pesado, como se as paredes estivessem escutando.
— Amanda, você não pode ficar aí.
— E pra onde eu vou, Leti? — Ela olhou no espelho, os óculos embaçados pelo vapor. — Minha mãe tá construindo um cômodo nos fundos do terreno, mas até lá... — A voz sumiu.
Letícia secou as mãos na toalha, os brincos balançando. Seus seios siliconados subiam e desciam com a respiração ofegante. Ela olhou para a porta dos fundos, onde Tadeo fumava seu cigarro, e depois para Amanda, frágil na cadeira de cabeleireira.
— Escuta. — Ela se inclinou, o perfume de jasmim invadindo o espaço entre elas. — Eu não vou te dizer o que fazer. Mas se um dia... — Uma pausa. — Se um dia você precisar de um lugar pra correr, minha porta tá aberta.
Amanda não respondeu. Mas quando Letícia começou a pentear seus cachos, ela sentiu algo quente no peito.
Não era só o calor da chapinha.
Era a primeira centelha de esperança em muito, muito tempo.
A chapinha sibilou ao fechar sobre uma mecha de cabelo, soltando um fio de fumaça que cheirava a queratina queimada. Letícia puxou o cacho com força calculada, alisando-o até que ficasse liso e brilhante, como seda negra sob a luz amarelada do salão.
— E na cama? — Amanda perguntou de repente, os olhos fixos no próprio reflexo no espelho. A pergunta saiu baixa, quase rouca, como se tivesse escapado sem permissão.
Letícia ergueu uma sobrancelha perfeita, delineada a lápis marrom.
— Como assim, filha?
Amanda respirou fundo. O cheiro do café requentado no bule se misturava ao aroma do creme sem enxágue, criando uma névoa de conforto e vergonha.
— Ricardo... — Ela engoliu seco. — Nem isso ele faz direito. É sempre no escuro, rápido, sem me tocar direito. Diz que mulher não precisa de muita coisa, que é só pra aliviar. — A voz dela quebrou. — Até isso ele acha que é favor.
Letícia soltou um "tsc" alto o suficiente para ser ouvido até na área de serviço, onde Tadeo acendia outro cigarro.
— Homem folgado é uma praga. — Ela puxou outra mecha, os dedos quentes da chapinha quase queimando. — Mas Tadeo... — Um sorriso escapou, involuntário. — Ah, Amandinha. Tadeo pode não ser muito de falar, mas na cama? O homem *conversa*.
Amanda sentiu um calor subir pelo pescoço, não do vapor, mas de algo mais espesso.
— E... como é?
Letícia riu, um som cheio de mel e malícia.
— Imagina um cara que passa o dia todo falando de política, que sabe discutir imposto e reforma agrária, mas aí, quando a luz apaga... — Ela abaixou a voz, os lábios perto da orelha de Amanda. — Vira um *animal*. Lento, Amanda. Ele gosta de devagar. De deixar a gente maluca até pedir.
O barulho da chuva no telhado de zinco parecia mais alto agora. Amanda imaginou: mãos grandes, um pouco gordas, percorrendo um corpo como o de Letícia—cheio, macio, feito para ser apreciado. Uma imagem invasiva, proibida.
— E você... gosta? — a pergunta saiu em um sussurro.
Letícia deu uma pausa dramática, passando os dedos pelos cachos agora lisos de Amanda.
— Minha filha, eu *vivo*. A gente vai em casa de swing, recebe gente aqui em casa... — Ela sorriu, os dentes brancos contrastando com o batom vermelho. — Tadeo sabe que meu corpo é meu. E eu uso ele como eu quero.
Amanda olhou para as próprias mãos—pequenas, calejadas de tanto lavar roupa no tanque. Quantas vezes ela tinha se sentido dona do próprio corpo?
Do lado de fora, a chuva diminuía para uma garoa fina. Tadeo entrou de volta, o cheiro de tabaco e o vento frio grudando nele. Passou pela cadeira de Amanda sem olhar, mas ela sentiu—um frêmito no ar, como se aquele homem quieto carregasse um segredo sórdido sob a camisa de flanela.
— Leti... — Amanda começou, mas a voz falhou.
Letícia entendeu. Colocou as mãos nos ombros magros da amiga, pressionando-os no espelho.
— Um dia, você vai se lembrar do que é ser *desejada*, Amanda. Não só comida—*devorada*.
E no reflexo, pela primeira vez em anos, Amanda não viu só uma mãe, uma esposa, uma sobrevivente.
Viu uma mulher.
A tesoura de Letícia cerrou o ar com um *snip* preciso, aparando as pontas duplas do cabelo de Amanda. O som era nítido, quase terapêutico, mas nada comparado à tensão que agora pairava entre elas.
— *Receber gente em casa*... — Amanda repetiu baixinho, como se testando as palavras. A luz do salão refletia em seus óculos, escondendo o brilho de curiosidade que teimava em surgir. — Você quer dizer que... vocês *transam* com outras pessoas? Juntos?
Letícia soltou uma risada gostosa, cheia de dentes brancos e confiança. O cheiro do seu batom – algo doce, como morango e canela – misturava-se ao aroma do spray termoprotetor que ela aplicava nos fios de Amanda.
— Juntos, separados, às vezes até no mesmo quarto sem participar... — Ela inclinou-se, os seios siliconados pressionando levemente o ombro de Amanda enquanto sussurrava: — É tudo combinado, tá? Ninguém faz nada sem o outro saber.
Amanda sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Não era nojo. Era algo mais quente, mais perigoso.
— E... como é? — Ela engoliu seco. — Não dá ciúme?
Letícia puxou-a para lavar o cabelo novamente, os dedos massageando seu couro cabeludo com óleo de coco enquanto falava:
— No começo, até dá. Mas a gente combina tudo. Tadeo gosta de ver, eu gosto de experimentar... Ela encheu as mãos de espuma, os dedos afundando nos cachos molhados. — Já recebemos um amigo dele aqui, uma vizinha minha... até um casal uma vez.
Amanda imaginou. Um quarto escuro. Corpos suados. Letícia de quatro, Tadeo observando, aquele olhar quieto mas ardente... Ela apertou as coxas sem perceber.
— E você... gosta?
Letícia sorriu, enxaguando o cabelo com água morna.
— Minha filha, eu amo. — Ela baixou a voz. — Já imaginou ser tocada por duas mãos ao mesmo tempo? Ou uma língua em um lugar e dedos em outro?
Amanda sentiu o rosto pegar fogo. Nunca ninguém tinha falado com ela assim. Ricardo nem sequer a beijava direito.
— Isso não é... pecado? — Ela perguntou, mas sem convicção.
Letícia secou seu cabelo com uma toalha macia, os olhos fixos nos dela.
— Pecado é um marido que te esconde, te maltrata e ainda te deixa com fome. — A voz ficou grave. — Pecado é a gente achar que merece só migalhas.
Na sala ao lado, a TV ainda murmurava notícias políticas. Tadeo tossiu, o barulho de seus passos pesados ecoando no corredor. Por um instante, Amanda imaginou **ele parado na porta, observando-as... Será que ele já imaginou ela assim?**
— Eu... nunca fiz nada assim. — Amanda confessou, os dedos torcendo a barra do vestido velho.
Letícia inclinou-se, os lábios perto de seu ouvido:
— Se um dia você quiser ver como é... a gente te convida.
O coração de Amanda disparou. Era um convite? Uma fantasia? Uma saída?
Ela não sabia. Mas pela primeira vez em anos, algo dentro dela latejou, faminto.
O secador zumbia como um enxame de abelhas, soprando ar quente contra a nuca de Amanda enquanto Letícia finalizava os últimos detalhes do penteado. Os dedos da cabeleireira deslizavam com familiaridade pelos fios agora sedosos, mas havia algo novo no toque—uma hesitação calculada, uma pausa proposital sempre que suas unhas vermelhas roçavam a pele exposta atrás das orelhas.
— "Fica linda assim, toda lisinha", Letícia comentou, mas seus olhos no espelho diziam mais. Aperta os lábios num sorriso que não chegava aos olhos. "Parece outra mulher."
Amanda sentiu o elogio como um choque. Há quanto tempo ninguém a chamava de *linda*? Seu reflexo no espelho realmente parecia diferente—o cabelo brilhante emoldurando um rosto que ela quase não reconhecia.
Foi então que Letícia desligou o secador.
O silêncio caiu como um véu pesado.
— "Sabe...", a cabeleireira começou, enrolando o fio do aparelho com movimentos lentos demais. "A gente vai receber uns amigos amanhã à noite. Gente discreta." Uma pausa. "Você podia vir."
Amanda sentiu o ar faltar. Os dedos se apertaram no colo, as unhas cravando na própria carne através do tecido do vestido.
— "Eu... não sei se..."
Letícia veio à frente, bloqueando o reflexo no espelho. Seu perfume—jasmim e algo mais amadeirado—invadiu o espaço entre elas.
— "Nem precisa fazer nada", ela sussurrou, os olhos escuros fixos. "Só ficar. Ver. Tomar um drink." Uma mão quente pousou no ombro de Amanda. "Às vezes a gente só precisa *lembrar* que existe."
O toque queimava através do tecido fino. Amanda imaginou, contra a própria vontade:
Um quarto iluminado por velas. Corpos entrelaçados. Letícia de joelhos na cama, as costas arqueadas, enquanto alguém—talvez Tadeo, talvez um estranho—segura seus quadris com mãos firmes. O som de pele contra pele. Gemidos que não são abafados. E ela, Amanda, sentada num canto, testemunhando aquilo tudo com os dedos apertados entre as próprias coxas...
— "Eu...", ela engoliu seco. O salão parecia ter ficado sem oxigênio.
Letícia sorriu, como se lesse seus pensamentos.
— "Pensa bem." Deslizou um cartão de visita entre os dedos de Amanda—um endereço escrito à mão no verso. "A porta abre às nove."
Do corredor, o barulho de passos. Tadeo apareceu na porta, um vulto silencioso observando a cena com olhos que não revelavam nada. O cheiro de tabaco ainda lhe envolvia como uma segunda pele.
— "Vou ali fumar", ele anunciou, mas ficou parado um segundo a mais que o necessário, seu olhar pesando sobre Amanda antes de sair.
O cartão na mão dela parecia queimar como brasa.