Capítulo 18 – Entre Rejeições e Recomeços
...
Bernardo
Quando abri a porta, dei de cara com o diretor Cornélio, ladeado por dois seguranças da escola. Pelo olhar severo e intransigente dele, entendi na hora que se tratava de algo sério — e, pelo clima carregado, imaginei que estavam ali para procurar drogas no meu quarto.
— Achei que fui bem claro quando mandei você se mudar para o novo dormitório — disse ele com rispidez.
— E eu também achei que deixei claro que não iria sair daqui — respondi, cruzando os braços. — Isso tudo é um absurdo!
— Já que opta por desobedecer ordens diretas, informo que está oficialmente convidado a deixar o Colégio Imperial — ele declarou com aquele tom arrogante que me dava ânsia. — Esta instituição se orgulha de manter padrões elevados de disciplina e comportamento, e claramente o senhor não se encaixa. Seus responsáveis serão notificados ainda hoje.
— E eles vão processar você até arrancar até sua cueca! — retruquei, elevando a voz. — Quer me expulsar? Faz isso. Mas você não conhece meu pai. Ele vai acabar com sua carreira e te deixar tão queimado que nem em creche vão te contratar!
— Suas ameaças não me assustam — retrucou Cornélio com frieza. — Tenho à minha disposição os melhores advogados do país. Agora, junte suas coisas e vá para a diretoria. Você aguardará lá até sua família vir buscá-lo. Não admito que passe mais uma noite nesta escola.
— Quer me tirar daqui? Vai ter que me carregar!
Com um simples sinal de cabeça, ele deu a ordem. Os seguranças imediatamente me agarraram pelos braços, me levantando com brutalidade. Comecei a gritar e me debater, sendo arrastado pelos corredores. Os alunos saíam de seus quartos para ver o que estava acontecendo.
— Me soltem! — gritei, me debatendo ainda mais ao chegarmos perto da escada.
Eles me suspenderam e me levaram até o pátio. Assim que pisamos lá, os protestos começaram. Alguns estudantes gritavam contra o diretor, outros gravavam com os celulares. Cornélio, impassível, caminhava atrás como se fosse um imperador diante da dor dos outros.
Me jogaram no chão com força. Os joelhos e as mãos se ralaram na calçada, arrancando de mim um grito de dor. As lágrimas de ódio escorreram sem controle. A velha raiva tomou conta da minha visão. Me levantei impulsivamente, pronto para partir pra cima deles, mas um terceiro segurança me jogou no chão outra vez.
— Peço desculpas pela forma como meus seguranças agiram — disse Cornélio, fingindo cordialidade. — Mas você nos deixou sem alternativa. Isso poderia ter sido evitado se tivesse cooperado.
— Cooperar com essa palhaçada preconceituosa? — gritei, para todos ouvirem. — Cooperar com esse teatro nojento?
— Você sabe que isso não tem relação com sua sexualidade. Recebemos denúncias de outros alunos — ele se defendeu.
— Você quer dizer da Amanda Marinho, né? — retruquei, encarando-a. Ela estava lá, sorrindo com uma expressão doentia. — Aquela invejosa que me odeia porque eu roubei o namorado dela.
— As primeiras acusações foram dela, sim — ele admitiu. — Mas outros dez estudantes confirmaram os relatos.
— Eu queria muito saber quem são os filhos da puta que inventaram isso! — berrei, e vi nos olhos de alguns garotos o incômodo evidente.
— Bernardo! — Daniel surgiu entre os alunos com Samuel ao lado. Ele correu até mim e me abraçou com força, tentando entender o que estava acontecendo.
— O que fizeram com ele?! — perguntou, horrorizado.
— Seu namorado está sendo retirado da escola em caráter definitivo — disse Cornélio, frio como gelo.
— Acusado de quê, exatamente? — A voz de Giovana ecoou entre o grupo. Ela se colocou na frente dele, entre mim e o diretor.
— Acredito que esse assunto diz respeito apenas à direção e ao senhor Bernardo de Andrade, senhorita.
— Isso não dá a ninguém o direito de expor e humilhar uma pessoa em público — retrucou ela, firme. — Se fosse você, pensaria duas vezes. Está sendo filmado por todos os lados. Isso pode dar um belo processo.
Cornélio engoliu seco. Ao redor, dezenas de celulares gravavam tudo. A autoridade que ele exibia agora parecia despencar.
— Voltem todos aos dormitórios! — ordenou, tentando manter o controle. — Caso contrário, terão uma semana de detenção!
Ninguém se mexeu.
— Bernardo! — ouvi a voz do Théo. Ele veio correndo junto com Nick e Patrick. Me abraçou e ficou chocado ao ver meus machucados. — O que fizeram com você?
— Estão me expulsando — respondi, com a voz pesada.
— O quê?! — Théo perdeu a calma, virando-se para Cornélio. — Você não pode fazer isso, seu homofóbico de merda!
— Aconselho que fique em silêncio, Théo — ameaçou o diretor.
— Nossa, tô tremendo de medo! — ironizou ele. — Você e sua punição que se fodam!
— Último aviso!
— Vai tomar no cu, seu corno! — gritou Théo, transtornado. — Acredita nas mentiras dessa vadia, mas como ela saberia o que acontece no dormitório masculino se nem pode entrar lá? A não ser que esteja trepando com metade dos meninos!
— Só com dez, pra ser exata — soltou Giovana, impiedosa.
— Dez idiotas! — Théo aplaudiu sarcasticamente. — Espero que tenham curtido, porque vão carregar essa merda pro resto da vida!
— O senhor vai permitir esse tipo de insulto?! — Amanda se fez de ofendida, embora estampasse um sorriso cínico.
— Claro que não! — rugiu Cornélio, furioso. — Théo Vilella, você também está expulso!
— Eu menti! — A voz de Patrick cortou o ar, fazendo todos silenciarem. — Eu inventei tudo. Amanda me pagou mil reais pra contar aquela história.
— Como você teve coragem? — gritou Nick.
— Achei que não ia dar em nada... — Patrick murmurou, cabisbaixo.
— MENTIROSO! — Amanda berrou, entrando em desespero.
— Ele está dizendo a verdade — falou um garoto do segundo ano. — Ela me ofereceu sexo. E fez o mesmo com outros oito. Todos nós mentimos.
Amanda ficou em choque quando cada um deles confirmou.
— Todos suspensos por uma semana — anunciou Cornélio, trêmulo. — Amanda Marinho, você está expulsa. Como é maior de idade, tem até a meia-noite para sair da escola.
— Isso é mentira! É tudo armação! — ela surtou.
— Chega, Amanda. Pegue suas coisas. E os demais, informarei seus responsáveis.
O grupo começou a se dispersar, mas meus amigos ficaram ao meu lado.
— Em nome da escola, peço desculpas pelo transtorno — disse Cornélio, com voz mais baixa. — A mensalidade deste ano será coberta pela instituição.
Olhei minhas mãos, meus joelhos feridos, e senti o sangue arder. Cerrei os punhos, resistindo à vontade de partir pra cima dele.
— Você acha que pode nos humilhar e depois oferecer um ano grátis como compensação? — disse Daniel, revoltado. — Acha mesmo que isso cura os machucados do corpo e da alma?
— Não — ele respondeu, com mais honestidade do que nunca. — Mas acredito que pedir desculpas e tentar reparar é um começo.
— Não tem perdão pra isso — falei, o ódio ainda pulsando. — Isso não vai ficar barato.
— Podemos resolver tudo de forma discreta...
— Isso nunca deveria ter acontecido! — rebateu Nick.
— E você vai se arrepender do momento em que resolveu nos expor no refeitório — completei. E, envolto nos braços de Daniel, entrei no dormitório com o peito em pedaços... mas com minha dignidade intacta.
...
Théo
Bernardo não estava exagerando quando afirmou que o diretor Cornélio se arrependeria amargamente. Naquela mesma noite, ele ligou para o pai, que imediatamente entrou com um processo contra o diretor e a escola. Cornélio perdeu o cargo no dia seguinte. O processo seguiria seu curso regular, mas com a influência do pai do Bernardo, era evidente que tudo caminharia mais rápido.
Nos dois meses seguintes, meu vínculo com Bernardo começou, aos poucos, a voltar ao eixo. É claro que estive ao lado dele naquela noite — mas, sinceramente, eu teria defendido qualquer pessoa vítima de um preconceito tão escancarado. A gente quase não se falava no quarto, mas o clima já não era tão sufocante. Patrick veio pedir desculpas naquela mesma noite, mas tanto eu quanto o Bernardo achamos melhor bater a porta na cara dele. Depois, soubemos que Daniel e Samuel fizeram o mesmo. No dia seguinte, Nick pediu transferência de quarto e, desde então, mora sozinho — o que, pra ser honesto, foi um alívio. Assim, temos mais privacidade.
Em casa, as coisas também começavam a se ajeitar. Minha mãe tentava lidar com tudo com certa naturalidade, principalmente com relação a mim e ao Daniel. Mas dava pra notar que aquilo ainda era pesado pra ela — especialmente quando chegou o aniversário da minha avó paterna. Ela chamou toda a família para uma comemoração, e, dessa vez, Daniel fez questão de levar o Bernardo. Minha mãe hesitou, mas acabou cedendo, já que eu também levaria o Nick. O problema nunca foi com o Bernardo — ele até já tinha vindo aqui em casa depois do episódio do hospital, e minha mãe pareceu gostar dele. A questão era o resto da família. Até aquele momento, só eu era abertamente gay. Daniel seria uma revelação — ainda mais por ter passado sempre despercebido nesse aspecto.
— Ainda não me sinto confortável com essa história de você levar aquele garoto — disse minha mãe a Daniel, enquanto ele a ajudava a prender o colar e eu alisava o cabelo dela com a prancha.
— Aquele garoto tem nome, mãe — Daniel respondeu com firmeza, soltando o fecho do colar. — Bernardo. E se o Théo vai com o namorado dele, então eu também tenho o direito de levar o meu.
— Mas será que uma festa de família é o melhor momento pra todo mundo descobrir isso...? — ela murmurou, indecisa.
— Em algum momento todos vão acabar sabendo, mãe — disse Daniel, ajeitando o cabelo no espelho. — E eu tenho certeza de que a vovó vai gostar dele.
— Sei lá, Daniel...
— Para de ser chata, mãe — falei, puxando de leve uma mecha do cabelo dela. — Deixa o garoto viver. Se eu posso levar meu namorado, ele também pode.
— Com você é diferente, Théo. Todo mundo já comentava... Agora, o seu irmão vai ser um choque. Tenho medo da sua avó ter um treco.
— Ela não teve um infarto quando o pai foi preso. Vai aguentar isso também — tentei brincar, mas o olhar sombrio da minha mãe e de Daniel deixou claro que a ferida ainda estava aberta.
— É o primeiro aniversário dela sem o filho... — minha mãe murmurou. — Ela deve estar despedaçada.
— Ou aliviada por aquele desgraçado estar onde não pode mais machucar ninguém — Daniel rebateu, com a raiva escancarada. — Quero mais é que ele apodreça naquela cela.
— Não fala assim, Daniel — minha mãe repreendeu, mais firme. — Ele ainda é seu pai.
— Ele deixou de ser meu pai quando apontou uma arma pra mim e disse que me mataria — disse Daniel, com a voz embargada. — E o Bernardo chegou — completou, olhando uma notificação no celular.
Terminei o cabelo da minha mãe e voltei para meu quarto, onde o Nick terminava de se vestir.
— Essa festa promete — comentei, sarcástico, vendo-o fechar a calça jeans ainda meio aberta.
— Anima, Théo — ele respondeu sorrindo, tentando me animar. — Depois de tudo o que passamos, vai ser bom se distrair um pouco.
— Minha mãe já começou as merdas por causa do Daniel — contei o que tinha escutado. — Isso me dá nos nervos!
— Fica tranquilo, amor — disse ele, se aproximando e me beijando. — Ela ainda tá se acostumando com a ideia.
Tentei seguir o conselho dele e deixar as coisas rolarem. Claro que me incomodou ver minha mãe meio sem graça ao ver Daniel e Bernardo de mãos dadas, mas Nick apertou minha mão, e eu resolvi ignorar.
O salão estava decorado num estilo retrô dos anos 60, cheio de bolinhas brancas e pretas nas mesas de vidro. Era o aniversário de 71 anos da minha avó, que usava um vestido de bolinhas típico da juventude dela.
— Olha meus netos lindos! — ela nos abraçou e beijou com carinho. — Já estão uns rapazes! E quem são os amigos?
Minha mãe travou na hora com a pergunta.
— Vó, esse é o meu namorado, Nick. E esse é o namorado do Daniel, o Bernardo — apresentei.
O espanto no rosto dela era visível — e até um pouco engraçado —, mas felizmente não veio nenhuma crítica.
— Namorados? — ela repetiu, tentando assimilar. — Me desculpem, meninos, é que eu não fazia ideia... Como estão?
— Estamos bem — respondeu Bernardo com aquela educação irrepreensível, tão delicado que a voz dele quase parecia feminina. A expressão da minha mãe entregou o incômodo, mas minha avó sorriu, satisfeita.
Bernardo e Nick a beijaram nas bochechas com carinho, e ela se mostrou genuinamente feliz.
— Álvaro! Vem ver os seus netos! — ela chamou meu avô, que conversava com meu tio João.
Eles vieram nos cumprimentar com um aperto de mão, e assim como minha avó, perguntaram se eram amigos nossos. Ao descobrir que Bernardo era o namorado de Daniel, meu tio fingiu que a esposa o chamava e se mandou, enquanto meu avô soltou uma:
— Mais um?! O que tem na água da casa de vocês?
E saiu de perto. Não foi a pior das reações, mas já bastou pra deixar minha mãe desconcertada e o Bernardo visivelmente desconfortável.
— Acho que eu não deveria ter vindo — murmurou Bernardo para Daniel. — Achei que sua família já soubesse.
— Agora sabem — Daniel respondeu, tentando manter firmeza, mas o olhar dele dizia outra coisa.
Nos sentamos numa mesa com Fernanda e Guilherme. Ríamos, conversávamos, tentávamos ignorar os olhares tortos. Minha mãe, por outro lado, afundava no uísque. E ela nunca foi de beber. Estava tentando anestesiar algo que claramente ainda a machucava.
Mais tarde, Nick e eu fomos para a pista de dança. Havia outros casais, e fiquei surpreso que ninguém nos encarou com espanto. Ele passou os braços pela minha cintura e eu envolvi o pescoço dele. Seus olhos castanhos fixos nos meus, e eu senti como se estivesse flutuando. Nada mais importava. Só ele. E aquilo me fazia bem. Foi nesse momento que percebi que o amava.
— Amo o teu sorriso — ele sussurrou. — Essas covinhas... são minha perdição.
Ele acariciou meu rosto enquanto eu corava. Então me beijou, ali mesmo, na frente de todos — e ninguém pareceu se importar. Foi mágico.
Bernardo e Daniel também vieram dançar com a gente. Guilherme e minha irmã também. Tudo estava em paz... até começarem os parabéns.
Minha avó chorava de emoção. Mas logo começou um slideshow com fotos da vida dela. E então... ele apareceu. Nosso pai. Criança. Sorrindo. Inocente. Tão diferente do homem que um dia ameaçou matar o próprio filho.
Daniel congelou.
A cada nova imagem do nosso pai, seu rosto se tornava mais fechado. Os punhos cerrados. O corpo tremia. E então minha avó começou a discursar. Foi o estopim.
— Fico arrasada que meu filho mais novo não possa estar aqui... — disse ela, enxugando as lágrimas. — Dizem que ele fez algo horrível, mas eu, como mãe, sei que ele jamais faria por querer. Sempre foi um menino de ouro, um pai dedicado. Eu o conheço...
Daniel saiu correndo do salão, chorando como eu nunca o vi. Me levantei pra ir atrás, mas Nick segurou meu braço.
— Quem ele precisa agora é do Bernardo, não de você.
Demorou uma hora até que eles voltassem, de mãos dadas. Daniel com os olhos inchados. Bernardo com o semblante carregado.
Me afastei e fui pro bar, onde meu tio Jorge bebia.
— Espero que o Daniel fique bem — disse ele. — Sua avó ainda se recusa a aceitar o que aconteceu com o seu pai.
— Percebi — respondi, seco, pedindo um Sex on the Beach ao barman. — Queria entender onde tá aquele cara incrível que ela tanto fala, porque eu nunca conheci.
— Não julgue tão rápido — disse meu tio João, tomando um gole. — Seu pai mudou muito depois de levar uma surra do seu avô. E de ser obrigado a entrar na aeronáutica.
— Surra?
— Falei demais...
— Que história é essa, tio? Prometo que não conto pra ninguém.
Ele me encarou por um momento, em dúvida.
— Tá bom — suspirou. — Seu pai era um garoto doce... até o dia em que meu pai pegou ele na cama com o vizinho. Apanhou feio. Depois nos mudamos pra longe, pra nunca mais ver o tal garoto. Mas ele não esquecia. A segunda surra foi ainda pior. Logo depois, foi mandado pro quartel. Voltou completamente diferente: frio, agressivo. E então conheceu sua mãe.
— Você tá me dizendo que... meu pai é gay?
— Eu acho que sim. Um mês depois do quartel, ele dizia que se odiava. Que sentia nojo de si mesmo. Mas... acredito que, de vez em quando, ele revivia os velhos tempos com algum viado por aí.
Eu fiquei em choque. Aquilo explicava muita coisa... e, ao mesmo tempo, nada. Se meu pai era gay, por que tanto ódio? Talvez ele tenha virado o reflexo da dor que carregava.
— Não conta isso pra ninguém — disse meu tio. — Esse assunto é tabu na família.
— Pode deixar, tio — respondi, pegando meu drink e me afastando.
Mas, por dentro, nada em mim era como antes.
Continua...