5- Linguagem Do Amor

Um conto erótico de Lauro Costa
Categoria: Gay
Contém 4806 palavras
Data: 25/06/2025 12:30:27
Assuntos: Gay

A noite já tinha engolido Rancho da Serra quando Pedro chegou, ofegante, à entrada da velha estação ferroviária. As luzes das lanternas cortavam a escuridão como facas cegas. E ali, no contraste das sombras, viu o que não esperava: Gael, ainda ofegante e sujo de poeira, envolvido num abraço apertado com Arkan. Era mais do que gratidão – havia calor, um abrigo momentâneo no meio do caos. Pedro interrompeu com a voz carregada de raiva contida:

— O que tá acontecendo aqui?

— Você como sempre chegando atrasado. Sua filha está ali. E está tudo bem. - Cuspiu Gael com raiva.

O clima congelou. Gael apenas se afastou de Arkan, o olhar ainda fixo na ruína às costas.

Mas a tensão foi cortada pelo som da sirene. A ambulância chegou em seguida, abrindo caminho entre curiosos e policiais. Os paramédicos agiram rápido. Gael entregou Mateus aos socorristas com um cuidado mudo, como se ainda estivesse sob o efeito de um anestésico emocional.

Ele subiu na ambulância com o filho, mas antes lançou um último olhar a Arkan. Um olhar que dizia tudo que ainda não tinha nome.

No Hospital Universitário Romário José Santos

O pronto-socorro estava em alerta. Luzes brancas, passos corridos, a agitação típica das noites em que a cidade pequena é sacudida. Gael desceu da ambulância em silêncio. Caminhava ao lado da maca, como se não confiasse no mundo para carregar seu filho por ele.

Mateus foi levado para a ala de traumatologia. Gael quis acompanhá-lo, mas foi gentilmente barrado pelos enfermeiros, sendo indicado a ir cuidar de seus ferimentos na cabeça.

Foi aí que Stefani apareceu, vinda do outro lado do corredor, ao lado de Dona Aurélia, vizinha de Cacilda, e mais duas senhoras da vizinhança.

— Gael... — disse Stefani, puxando-o discretamente para o lado. Havia preocupação e tristeza em sua voz. — Eu ia te ligar, mas você já estava vindo...

— O que foi agora?

— É sua mãe. A Cacilda... Ela foi até a escola, discutiu feio com a Úrsula. Teve um pico de pressão. Desmaio. Levaram ela também pro hospital, chegou tem uns minutos.

Gael paralisou por um instante. Os ombros caíram como se o peso de todos os anos mal resolvidos da sua vida tivesse se soltado de uma vez.

— Onde ela tá? — perguntou, mais frio do que aflito.

— Estão examinando ela na enfermaria, mas o médico disse que a situação não é boa...

E ali, no meio da claridade artificial e dos cochichos entre funcionários, algo em Gael se fechou. Como se um novo homem, endurecido e sombrio, tivesse acabado de nascer.

Os passos de Gael ecoavam secos pelo piso encerado. Seus olhos, agora mais escuros que antes, vasculhavam o hospital como se rastreassem uma presa. E ele a encontrou.

Úrsula estava de pé, ao lado da recepção, falando com um enfermeiro. Impecável, com os cabelos presos e um blazer creme que destoava da situação, mas não do personagem. Quando os olhos dela encontraram os de Gael, houve silêncio. E, então, tempestade.

— Você perdeu o juízo de vez? — disse Gael, caminhando decidido até ela. — Foi atrás da minha mãe? Da minha mãe, Úrsula?

— Ela que invadiu a escola, me ofendeu na frente de todos!

— Porque você colocou o nome dela no meio do nosso lixo. Acha isso normal? Acha justo? Não importa o quanto você me odeie, minha mãe não é campo de guerra pra tua miséria emocional!

— Ela me ameaçou!

— Ah, por favor! — Gael deu uma risada seca. — Úrsula Cabalero sendo ameaçada por uma senhora de setenta anos com câncer terminal? Você se escuta?

A voz dele não era alta, mas cortava como lâmina. Pessoas na recepção pararam. Enfermeiras fingiram não ouvir. Um guarda de segurança se aproximou, cauteloso.

— Você sempre foi assim, Gael. Dramático, egocêntrico, imprevisível.

— E você sempre foi cruel, vaidosa e mesquinha. Mas agora passou dos limites.

Gael se aproximou, com os olhos vidrados nela:

— Você não vai perder a filha, Úrsula. Mas eu vou enterrar minha mãe. E depois disso... tudo que você mais ama vai começar a ruir.

O som das vozes atraiu olhares discretos, até que alguém se aproximou calmamente, rompendo o ar denso com passos firmes: Arkan.

— Está tudo bem por aqui? — perguntou, com a voz grave e olhos atentos, mas controlados.

Úrsula o reconheceu de imediato. O sangue sumiu-lhe do rosto, só para retornar em forma de ira.

— O que você está fazendo aqui? Você não faz parte dessa família! Nem desse hospital! Saia daqui!

— Eu vim com Gael. E, só pra constar, fui eu quem encontrou sua filha, viva, numa estação prestes a cair aos pedaços. — respondeu Arkan, firme, cruzando os braços.

Úrsula trincou os dentes. As palavras dela vieram como veneno:

— Não espere um agradecimento. Eu não te devo nada.

Nesse momento, Pedro chegou, suado, pálido, com o celular em mãos. Estacou ao ver o trio.

— Que confusão é essa? — olhou para Úrsula e depois para Arkan. — Obrigado Arkan ! Elisa me disse que você e Gael a salvaram.

— Isso não muda nada. — respondeu Úrsula fria como pedra.

— Como você é ingrata, Úrsula? — disse Gael.

— Não preciso de seus julgamentos, seu verme.

— Como disse sua vaca ? — falou Gael.

Pedro fez menção de interromper, mas Arkan levantou a mão, o olhar escurecido:

— Já deu. Vamos encerrar isso antes que alguém perca ainda mais a compostura.

Pedro assentiu, contido. Úrsula recuou, mas ainda trêmula.

Sem mais palavras, Gael se afastou, indo em direção à enfermaria onde sua mãe estava internada. Mas, por dentro, algo mudava. A dor já não era só perda — era combustível.

O corredor da ala da enfermaria parecia mais longo do que Gael lembrava. Cada passo era pesado, como se o chão sugasse parte dele. Quando a porta do quarto 207 se abriu, um cheiro forte de antisséptico se misturou ao perfume doce e familiar da lavanda que Cacilda sempre usava.

Ela estava ali. Pequena. Frágil. A pele pálida contrastando com os lençóis brancos, os olhos fechados, o peito subindo com dificuldade. Uma enfermeira saía em silêncio, deixando a ficha médica sobre a mesinha de cabeceira.

Gael se aproximou devagar. Sentou-se ao lado da cama, sem saber por onde começar. Passou os dedos com delicadeza pelas rugas da mão da mãe. Aquela mesma mão que um dia o protegeu do mundo inteiro — agora, dependia apenas dele.

O médico surgiu na porta, gentil mas direto:

— Senhor Gael... Sua mãe entrou em um quadro irreversível. O estresse... agravou o estado. Estamos entrando em cuidados paliativos. É questão de dias. Talvez horas.

Gael assentiu. Sem choro. Sem resposta.

Quando o médico saiu, ele respirou fundo. Como se algo dentro dele precisasse ficar. E outra parte precisasse morrer.

— Me desculpa, mãe... — sussurrou. — Por ter voltado tarde demais. Por ainda acreditar que havia paz nesse lugar.

Ele fechou os olhos e encostou a testa na mão dela, por um longo instante. Nenhuma lágrima caiu. Mas a dor ali era antiga. E profunda.

Lá fora, a noite de Rancho da Serra começava a se recolher sob as sombras das montanhas.

Gael estava sentado na varanda externa do hospital, as mãos entrelaçadas, o olhar perdido no escuro da serra. O ar frio da noite cortava-lhe o rosto, mas ele não parecia sentir. A alma estava em outro lugar — cansada, em luto antecipado.

Pedro se aproximou devagar. O rosto abatido. As mangas da camisa social ainda sujas de poeira, o cabelo bagunçado pela correria da tarde.

— Gael... posso falar com você um instante?

Gael não respondeu. Nem olhou. Apenas continuou encarando o nada.

Pedro puxou uma cadeira, mas não sentou. Manteve-se de pé, tenso.

— Eu... fiquei sabendo da dona Cacilda. Sinto muito. Mesmo.

Gael soltou um riso baixo, sem humor.

— Agora você sente?

Pedro suspirou.

— Não vim brigar. Vim oferecer ajuda. Sei que você vai precisar de cuidados pra ela. Medicamentos, enfermeira... Eu pago. Tudo.

Gael finalmente o olhou. Mas havia algo de novo em seu olhar. Frio. Duro. Uma paz que vinha da desistência.

— Eu não quero seu dinheiro, Pedro.

— Gael...

— Você já custou demais pra minha vida. Não precisa pagar mais nada. Só... desaparece.

Pedro engoliu em seco. Tentou dizer algo, mas não encontrou palavras.

— Cuida da sua filha. — completou Gael, se levantando. — Porque eu tô prestes a enterrar a minha mãe. E quando isso acontecer... o que sobrar de mim, você não vai reconhecer.

Ele saiu sem esperar resposta.

Pedro ficou sozinho na varanda. Pela primeira vez, parecia entender o tamanho da perda que tinha causado.

O corredor do hospital permanecia silencioso, com aquele zumbido estranho que só os hospitais noturnos têm — uma mistura de máquinas sussurrando e passos cautelosos. Elisa estava sentada em uma cadeira plástica, os braços cruzados e o olhar fixo na porta da emergência. O rosto, sujo de poeira e lágrima seca, parecia mais adulto do que sua idade.

Úrsula surgiu no corredor com os ombros tensos e os saltos ressoando. Quando avistou a filha, não disfarçou o alívio, mas logo o substituiu por um olhar duro.

— Elisa! — chamou num tom ríspido.

A menina não respondeu. Continuou sentada, olhando para a mesma porta.

— Ainda estamos esperando notícias do Mateus... — murmurou, como se falasse para si mesma.

Úrsula parou em frente à filha.

— Você está com tempo pra se preocupar com esse menino?

Elisa desviou os olhos, mas não o sentimento.

— Ele se machucou tentando me proteger.

— Ele te levou pra uma armadilha! Você tem noção da vergonha que causou à nossa família? Ao colégio? A mim?

— Ele não me levou a lugar nenhum, mãe! — rebateu Elisa, a voz embargada. — Fui eu que planejei com minhas amigas. Foi só uma brincadeira... uma pegadinha.

Úrsula ficou imóvel por um segundo.

— Como assim, suas amigas?

Elisa engoliu seco. A raiva foi se diluindo em culpa.

— Eu achei que elas tivessem contado. A gente achou que seria engraçado assustar o Mateus. Mas quando a viga caiu e ele se machucou… eu entrei em pânico. Eu fiquei com medo, mãe. Acha que eu sou de ferro?

— Isso não justifica nada! — explodiu Úrsula. — Você desapareceu por horas. A cidade inteira comentando. Eu fui atrás de você como uma louca! E agora vem bancar a mocinha apaixonada?

— Eu só queria saber se ele tá bem… é tão absurdo assim?

Úrsula segurou o braço da filha com força.

— Vamos embora.

— Você ligou pras meninas? Elas disseram aonde eu tava?

— Quem teve que te encontrar foi o forasteiro que você insiste em defender, aquele tal de Arkan! — rosnou Úrsula. — E se depender de mim, esse Mateus vai sumir da sua vida hoje mesmo.

Elisa, puxada em direção à saída, tentou o último olhar em direção à porta da emergência. O nome de Mateus ficou preso na garganta, junto com algo novo: o desejo de não mais obedecer cegamente.

O quarto da enfermaria estava mergulhado em silêncio, até que um som leve — uma tosse rouca — fez Gael erguer os olhos. Ele havia adormecido sentado, com a cabeça apoiada sobre os lençóis da mãe. Quando abriu os olhos, encontrou Cacilda olhando-o com ternura cansada.

— Que cara de defunto é essa, meu filho?

Gael sorriu, com lágrimas quentes escorrendo pelos olhos.

— É a cara de quem não ia suportar perder você.

Cacilda ergueu uma das mãos com esforço e tocou o rosto dele.

— Pois vai ter que me aguentar mais um pouco. A morte tentou, mas desistiu… sou teimosa igual a você.

Na tarde seguinte, o médico liberou Cacilda com recomendações de repouso e cuidados paliativos. Gael pediu afastamento da escola por tempo indeterminado. Em casa, transformou a sala em um espaço confortável, rodeado de almofadas, música suave e aromas de ervas frescas.

Pepe apareceu ainda no primeiro dia, trazendo um bolo de milho, Lucas pela mão e um sorriso largo.

— Vim ajudar. Sou ótimo com chá de boldo e ótimo pra dar colo também, se precisar. — disse, com aquele olhar que sempre parecia misturar piedade e desejo.

— Trouxe reforço? — perguntou Gael, olhando para Lucas, que deu um tchau tímido.

— Lucas vai fazer companhia pro Mateus. E eu, pra você.

Nos dias seguintes, Pepe se insinuava com mais ousadia. Tocava o braço de Gael com frequência, enchia a casa de risos e ajudava a carregar remédios e almofadas — sempre como quem espera algo em troca. Gael desviava com elegância, evitando confrontos, mas não sem notar os olhares enviesados de Stefani.

Na sexta-feira, o jantar aconteceu.A sala da casa de dona Cacilda cheirava a ervas e pão assado. A mesa, posta com simplicidade, exalava cuidado. Flores do quintal num vidro de conserva, travessas com legumes assados, arroz com açafrão, carne ao vinho, e suco de graviola. Na poltrona próxima à janela, Cacilda sorria em silêncio — o olhar cansado, mas vivo. Seu batom bordô quebrava a palidez do rosto como uma assinatura de vida teimosa.

Mateus, com o braço esquerdo imobilizado por uma tipoia, sentava-se ao lado da avó. Vestia um moletom claro e usava uma almofada de apoio sob o braço. Estava mais calado do que o habitual, mas seus olhos vasculhavam a mesa como se procurassem sentido em tudo.

— Tá tudo bem, filho? — perguntou Gael, inclinando-se suavemente para ele.

— Tô. Só cansado. Mas a comida tá com um cheiro bom... igual a do papai Caíque.

Cacilda apertou a mão boa de Mateus com ternura. Pepe, sentado mais adiante, observava a troca com uma ponta de desconforto. Desde que viera ajudar nos cuidados com a velha senhora — entre bacias de chá, remédios e cadernos escolares de Mateus — percebia que o coração da casa já não girava ao redor dele.

Arkan chegou pouco depois das sete. Camisa branca de linho, barba bem feita, uma garrafa de vinho e um arranjo de flores do campo nas mãos.

— Boa noite, dona Cacilda. Hoje vim como amigo, não como salvador de adolescentes perdidos — brincou, entregando as flores.

— Pois traga sempre flores, não me importa o título. — respondeu ela, com um sorriso travesso.

Stefani já estava na cozinha, finalizando o molho da salada. Lançou um olhar cúmplice a Gael quando Arkan entrou.

— Vai fingir que não está bonito? — murmurou ela. — Ou vai deixar esse flerte todo nas entrelinhas?

— Não começa, Stef.

Durante o jantar, Gael se revezava entre servir a comida, ajudar Mateus com a mão direita e impedir que Cacilda se levantasse para buscar qualquer coisa. A dinâmica da casa mudara — ele era agora o alicerce, o eixo silencioso entre três gerações marcadas por perdas.

— Então, Arkan… você trabalha com o quê mesmo? — perguntou, com falsa inocência. — Porque o mistério parece parte do seu charme.

— Engenharia e logística. Construo estruturas… e derrubo algumas também. — respondeu Arkan, sem se abalar.

— Hm. E agora anda construindo o quê aqui em Rancho da Serra? — provocou Pepe, enquanto girava o vinho na taça. — Ou devo perguntar: quem?

Stefani bateu o talher no prato.

— Pepe. Menos.

— Ué, só estou sendo sociável. Vai ver sou ciumento, né? Vai ver tem gente aqui que não sabe valorizar um homem local…

Gael colocou a taça na mesa com calma.

— Pepe, você é jovem, bonito, inteligente... mas hoje tá sendo só inconveniente. Relaxa. Curte a comida.

Pepe arqueou uma sobrancelha. O silêncio caiu como toalha de mesa puxada com brutalidade. Cacilda, serena, passou manteiga no pão como se fosse uma cena de novela das oito.

Arkan apenas sorriu de canto, com os olhos postos em Gael.

Gael levantou a taça.

— Um brinde. Às pessoas que nos encontram no meio da escuridão. E às que ficam, mesmo quando tudo parece se desfazer.

Todos brindaram. Inclusive Pepe, agora calado.

A casa dos Cabalero ficava silenciosa, mesmo com a presença dos dois patriarcas. Dolores observava a rua da janela com a mesma tensão que sentira ao embarcar de volta para o Brasil. O áudio anônimo — com voz distorcida e ameaças veladas — havia sido suficiente para convencê-los de que algo muito errado rondava Rancho da Serra.

Na sala, Amadeu permanecia sentado, ouvindo atentamente Úrsula, que gesticulava como quem recitava uma tragédia vivida:

— Desde que o Gael Félix voltou, tudo saiu do lugar, pai. Ele se meteu na escola, se aproximou da minha filha… até Pedro anda estranho. Frio. Distante. — Ela pausou, fingindo conter as lágrimas. — Eu tentei proteger a escola, minha reputação… minha família. Mas ele só quer me ver arruinada. É isso que ele sempre quis.

Amadeu franziu os lábios. Ele nunca tivera simpatia por Gael, mesmo nos tempos de juventude. Seu orgulho de pai latejava como uma ferida exposta.

— Não se preocupe com esse sujeito, Ursula. Eu vou dar um jeito nisso. De homem pra homem.

---

Gael estava na varanda de Cacilda, aparando galhos secos dos vasos quando ouviu o motor importado estacionando diante do portão. Reconheceu o som antes mesmo de ver a silhueta do velho Cabalero descendo com sua habitual arrogância vestida de linho.

— Gael Félix — disse Amadeu, com a voz firme, como se convocasse alguém ao tribunal.

Gael pousou a tesoura de poda com calma e se virou.

— Senhor Cabalero.

— Posso entrar?

— Pode falar daí mesmo. O que o traz aqui?

Amadeu tirou um envelope do paletó, repetindo o mesmo gesto de vinte anos atrás.

— Quero lhe oferecer algo digno. Uma oportunidade de sair de Rancho da Serra sem o peso de mais desgraça. Você pode recomeçar longe. Sem minha filha. Sem o meu genro. Sem causar mais confusão.

Gael ficou em silêncio por um instante, depois riu — um riso seco, mais descrente que divertido.

— Engraçado como o tempo passa e o senhor continua acreditando que tudo tem um preço.

— A minha filha está em ruínas. Desde que você voltou, ela não dorme em paz.

— Ela está em ruínas porque construiu um castelo em cima de mentiras. E agora, está desmoronando — respondeu Gael, com a voz baixa, porém cortante.

Amadeu, impaciente, estendeu o envelope.

— Tome. É mais do que você ganha num ano inteiro dando aula para meia dúzia de adolescentes.

Gael nem olhou para o envelope. Caminhou até a porta, puxou uma velha vassoura encostada na parede e voltou devagar, sem pressa, como se saboreasse o momento.

— Eu sou Gael Félix Beltran agora. E essa cidade não é mais seu feudo. — Ele ergueu a vassoura com um sorriso de escárnio. — Saia da minha casa, doutor. Ou vai sair voando, como nos velhos tempos.

Amadeu hesitou. A humilhação queimava no rosto.

— Isso não vai ficar assim, rapaz.

— Já ficou. E ainda vai piorar.

O velho recuou, vencido. Gael permaneceu de pé, imóvel, até que o carro importado sumisse no fim da rua de paralelepípedos.

O sol já ia embora por trás dos telhados coloniais de Rancho da Serra quando Stefani apareceu na casa de Cacilda com um saco de pães frescos e um olhar carregado de ternura. Gael abriu a porta com um sorriso apagado, os olhos fundos de quem não dormia bem há dias.

A casa estava em silêncio, exceto pelo rádio antigo na estante da sala que sussurrava os primeiros versos de "Feito à Maré", dos Gilsons. A melodia suave invadia o ambiente como um cobertor morno sobre a tristeza suspensa no ar.

No quarto, Cacilda dormia com a respiração tranquila, um resquício de paz nos traços marcados pela doença.

— Trouxe pão, manteiga, chá de camomila... e um ombro, se precisar. — disse Stefani, entrando com familiaridade.

Gael fechou a porta e assentiu, um gesto lento, como se qualquer palavra fosse pesada demais.

Sentaram-se à mesa da cozinha. Stefani observou Gael em silêncio por alguns segundos antes de começar:

— A enfermeira que eu conheço pode começar amanhã. É de confiança, acolhedora. Vai te ajudar muito, Gael.

Ele assentiu. Mexia o chá com lentidão, ouvindo a música embalar as memórias.

— Eu vou cuidar da minha mãe até o fim. Do meu jeito. Quero que ela sinta que não ficou sozinha.

Stefani sorriu, mas os olhos marejavam.

— Ela sabe. Ela sempre soube que você é o melhor pedaço da vida dela.

Gael respirou fundo, depois levantou o olhar — e nele já não havia tristeza, só algo mais frio. Firme.

— E depois disso, Stefani... — sua voz era baixa, mas cortava como navalha. — Depois disso, eu não vou mais fugir. Não vou mais fingir que as coisas se resolvem sozinhas.

— Gael...

— Eles me humilharam, me roubaram tudo, me expulsaram como se eu fosse a sujeira da cidade. Mas eu voltei. E quando minha mãe partir… eu juro que cada um que me feriu vai sentir.

— Você quer vingança.

— Quero justiça. Mas se ela vier com gosto de sangue, que seja.

Stefani encostou a mão sobre a dele.

— Só não se esqueça de viver, Gael. A dor cega. O ódio também.

Gael encarou a amiga por um instante. Depois, sorriu — mas era um sorriso sombrio, novo. Um que Stefani nunca tinha visto antes.

— Agora eu vejo com mais clareza do que nunca.

O relógio da praça central marcava 19h40 quando Elisa surgiu na penumbra, o cabelo preso num coque frouxo e o casaco da escola sobre os ombros. Caminhava devagar, olhando para os lados como se fugisse de algo ou de si mesma.

Mateus já a esperava no banco de madeira, o braço engessado repousando no colo. A expressão era serena, mas os olhos o entregavam: ansiedade, expectativa, um quê de alegria contida.

— Achei que você não vinha. — disse ele, levantando um pouco.

— Eu quase não vim. Minha mãe surtaria se soubesse. — Ela riu de leve. — E você, seu avô deixou?

— Ele acha que eu estou jogando com o Bruno Rodrigues da minha turma, na casa dele . E tecnicamente… eu tô, só que não lá.

Elisa riu baixo, e os dois sentaram-se, as pernas quase se tocando.

— Como tá o braço? — ela perguntou, olhando para o gesso.

— Coçando mais do que doendo. E incomoda. Mas sobrevivo.

Ela ficou em silêncio por um momento, até se virar de lado, fitando o chão.

— Eu fiquei com medo… de verdade. Quando você caiu. Achei que… sei lá.

— Você cuidou de mim. Aquilo que você fez… a tala, nossa foi incrível. Eu não conseguiria fazer. Foi mais corajosa que eu.

Elisa desviou os olhos, sem saber se sorria ou se chorava.

— Fiz o que tinha que fazer. Foi culpa minha também.

— Ei… — Mateus virou-se, tentando encará-la. — A pegadinha foi ridícula, sim. Mas a escolha de entrar ali foi minha. Eu não te culpo, Elisa.

Ela hesitou, mordendo o lábio inferior.

— Mesmo assim… me desculpa. Eu queria só dar um susto, sabe? Mostrar pros outros que você não era esse santinho que todo mundo fala.

— E agora? Ainda acha que eu sou santinho? — ele riu com um canto da boca.

— Acho que você é teimoso. E corajoso. E mais forte do que parece.

O silêncio que veio depois não era desconfortável — era carregado de algo novo.

— A sua mãe… ela te deixou em paz depois do hospital? — ele perguntou.

— Não exatamente. A gente brigou. Ela quer que eu me afaste de você. Disse que é só uma fase. Mas… — ela fez uma pausa, firme — eu não quero me afastar.

Mateus abaixou os olhos por um instante.

— Eu também não.

Elisa virou o rosto para ele. Pela primeira vez, sem escudo.

— Você sente muita falta do seu pai?

Mateus assentiu.

— Todos os dias. Principalmente à noite, quando não tenho ninguém pra contar as coisas do dia. Meu avô é incrível, mas não é a mesma coisa…

Ela respirou fundo.

— Meu pai tá em casa, mas parece que foi embora há anos. Quando a gente tá no mesmo cômodo, é como se eu fosse invisível. Ficou pior depois de uma viagem no início do ano, em que eu bebi e peguei o carro dele para dirigir. Só queria chamar atenção, mas não funcionou. E minha mãe… ela quer que eu seja uma coisa que eu não sei se quero ser.

Os dois ficaram em silêncio de novo, até que Elisa estendeu a mão e tocou os dedos do garoto com cuidado, bem na ponta do gesso.

— Quando a gente tava preso… eu fiquei com medo de morrer sem ter vivido de verdade.

Mateus olhou para ela com a mesma intensidade.

— Eu também. Mas talvez agora… a gente possa começar.

E, com a brisa fria da noite passando entre os dois, se aproximaram lentamente até que os lábios se tocaram — com a doçura incerta de algo novo, mas necessário.

A praça estava iluminada por postes antigos, daqueles que lançavam uma luz amarelada e suave sobre o calçamento de pedras. O coreto fechado, os bancos vazios. As poucas vozes que ecoavam vinham do bar na esquina.

Elisa caminhava sozinha, ainda com o coração acelerado depois do beijo com Mateus. Um sorriso insistia em se manter no rosto, até que ouviu risos conhecidos perto da fonte.

Nina, Carol e Tainá estavam ali, sentadas como de costume, com celulares em mãos e os olhos atentos ao movimento. Nina a viu primeiro e avisou, com um sorrisinho venenoso:

— Olha só quem apareceu: a fugitiva da estação fantasma.

Elisa se aproximou com calma, mas sem baixar a cabeça.

— Boa noite pra vocês também.

Carol cruzou os braços, levantando uma sobrancelha:

— Tá com o braço do príncipe engessado no coração, é?

— E na boca, né? — completou Tainá. — A gente viu vocês se beijando. Fofo. Meio sujo, meio trágico… meio feio.

Risos abafados.

Elisa parou em frente a elas, o rosto ainda quente, mas não de vergonha.

— Vocês sabiam onde eu estava.

O silêncio caiu como uma pedra.

— Vocês armaram comigo aquela brincadeira na estação. E depois... ninguém avisou minha mãe?

Nina deu de ombros:

— Era só uma brincadeira, Elisa. Acha mesmo que ia virar um episódio de desaparecidos?

— E se a viga tivesse atingido minha cabeça? — ela retrucou. — E se Mateus não tivesse conseguido me proteger?

Tainá fez uma careta:

— Nossa, tá falando como se fosse o Romeu te salvando do fim do mundo. Foi um susto e só.

Elisa então deu um passo à frente, o olhar fixo.

— Vocês são cruéis. Sempre foram. E eu fingia que era divertido, que ser popular valia qualquer coisa. Mas hoje… hoje eu entendi o que é alguém se importar de verdade comigo. Não com likes. Comigo.

Carol bufou:

— Vai virar santa agora? Pegar o esquisito da escola não te faz melhor que a gente.

— Eu não sou melhor — disse Elisa. — Mas vocês, com certeza, são menos do que pensei.

As três se entreolharam, irritadas.

— Que drama, hein? — debochou Nina. — Tá se achando muito só porque levou uma cantada de um nerd e quase morreu esmagada.

— Sabe qual é a diferença? — Elisa disse, firme. — Eu quase morri… e voltei outra.

Elisa virou as costas. O barulho dos saltos ecoando contra as pedras da praça foi o som final do rompimento. Atrás dela, as ex- amigas ficaram mudas.

Pela primeira vez, Elisa Cabalero andava sozinha. Mas com a certeza de estar indo na direção certa.

O sol tímido de uma manhã de domingo, no final de Agosto, filtrava-se pelas cortinas brancas do quarto, tingindo o ambiente com uma luz dourada e serena. As plantas da varanda balançavam suavemente com o vento. Havia cheiro de café recém-passado, mas também um silêncio que pesava nos móveis, nas paredes, na alma.

Gael estava sentado ao lado da cama, segurando a mão da mãe. A respiração dela era fraca, compassada, como se lutasse para continuar dançando uma valsa invisível com o tempo.

Cacilda, de olhos semicerrados, parecia mais leve. O rosto pálido ainda guardava a beleza de uma mulher que enfrentou a vida como quem enfrenta a seca — com teimosia e fé. Entre os dedos dela, uma fita de cetim azul, que ela apertava com ternura.

— Gael… — sussurrou ela, a voz rouca, baixa.

— Tô aqui, mãezinha — respondeu, com um nó na garganta. — Tô aqui.

— Você foi o meu orgulho. Não deixe ninguém dizer o contrário, ouviu?

Ele assentiu, apertando os lábios para não chorar.

— Quando você nasceu… achei que Deus tinha me dado um presente caro demais. Tão bonito, tão bom, que era até pecado pra uma mulher como eu. Mas você sempre me provou que era bênção, não castigo.

Uma lágrima escapou de Gael, que levou a mão da mãe até o rosto e a beijou com carinho.

— Não fala como se estivesse indo embora. A gente ainda tem tempo, mãe.

Ela sorriu, fraco, como quem entende mais do que ouve.

— Já vi o céu nos seus olhos. Já ouvi meu neto me chamar de vó. Já provei tua comida, senti teu abraço. O resto… o resto já é lucro.

Silêncio.

Do lado de fora, o vento soprou com mais força, como se a natureza também se despedisse.

Cacilda respirou fundo. Depois, mais uma vez. E então, o som cessou.

Gael permaneceu imóvel por um instante. O coração parado, os olhos perdidos. Tocou o rosto da mãe com os dedos e encostou a testa na dela.

— Vai com Deus… minha flor mais forte.

Lá fora, as flores da varanda balançavam. A chaleira apitava na cozinha.

E Gael, sozinho no quarto, permitiu que o silêncio o engolisse por um minuto. Depois, se levantou devagar, cobriu o corpo da mãe com o lençol branco e fechou a janela com cuidado e saiu do quarto.

A manhã seguia seu curso. Mas para ele, tudo havia parado ali.

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