A madrugada em Rancho da Serra tinha o silêncio típico das cidades pequenas de luto. As luzes da prefeitura mal iluminavam o entorno. Havia apenas um vigia cochilando num banco da praça ao lado, o radinho de pilha espremendo uma canção sertaneja abafada. Ninguém suspeitaria que o luto por Cacilda escondia uma movimentação muito viva.
Arkan, de roupa escura e luvas finas, aproximou-se pela lateral do prédio com calma felina. Havia feito o trajeto por dias, estudado a movimentação, a vulnerabilidade. Sabia o que precisava: pistas, brechas, documentos — qualquer coisa que enfraquecesse Pedro Cabalero.
Não fazia ideia do que exatamente buscava. Não era investigador, não era político. Mas era paciente. E astuto. O caos, ele sabia, era a melhor forma de encontrar verdades.
Com uma chave adaptada, forçou a porta dos fundos da cozinha — sem alarme, sem tranca reforçada. Os olhos vasculharam os corredores escuros, seguindo até o gabinete principal, onde a placa com o nome de Pedro reluzia num dourado discreto.
Entrou.
Começou pela mesa. Gavetas abertas, papéis revirados, pastas jogadas no chão. Fez questão de deixar tudo parecendo um assalto comum, com pressa e desorganização. Que pensassem em ladrões em busca de dinheiro ou equipamentos — não nele, um homem atrás da verdade.
Achou pastas carimbadas com datas recentes, orçamentos de obras públicas, contratos de manutenção escolar, registros de compra de equipamentos para uma empresa de fachada. Pegou o que cabia na mochila. Uns envelopes ainda fechados, outros mal presos por elásticos.
Antes de sair, deu uma olhada em um pequeno armário com livros e pastas. Não tinha tempo de ler, então pegou duas agendas e mais um caderno de anotações com capa de couro — pelo peso das páginas usadas, podia ser valioso.
Jogou uma bandeja no chão, empurrou a cadeira com força, derrubou um porta-retratos da estante. Era essencial parecer que ele não sabia o que estava fazendo — o que, no fundo, era a verdade.
Ao sair pela janela dos fundos, virou-se por um instante para olhar o prédio de novo.
Sorriu de lado.
— Agora vamos ver o que você anda escondendo, Pedro...
Desapareceu na madrugada com a mochila cheia de papéis e um plano ainda em aberto.
O sol mal nascera, mas Rancho da Serra já começava a despertar com seus galos, sinos de bicicleta e cheiro de terra fria. Gael pedalava pelo cascalho ainda úmido da madrugada, o rosto sério, focado. Suava. Respirava fundo. Parecia exorcizar a si mesmo a cada giro dos pedais.
Vestia uma regata cinza clara e uma calça preta de moletom, os cabelos agora tingidos de loiro e cortados na altura dos ombros, mais organizados, sem perder a ondulação natural. A cada curva da trilha urbana, o Gael de luto ficava mais distante. Agora, ele era o homem que voltava a respirar — mesmo que com dor.
Parou em frente à velha Estação Ferroviária, onde operários já se agitavam com ferramentas e entulho. Um novo letreiro metálico fora instalado: “Projeto de Restauração: Estação Rancho da Serra”.
Pedro estava lá, de terno claro, apertando mãos, posando para fotos com o capacete branco na mão. Um repórter local fazia a cobertura da obra que era um marco da nova gestão, mas a entrevista azedou quando Pedro foi perguntado sobre a suposta invasão à Prefeitura, ele simplesmente deixou o repórter falando sozinho.
Gael parou a bicicleta encostada no poste de madeira da pracinha em frente à estação.
Arkan apareceu do lado com uma garrafinha de água. Camiseta preta justa, jeans e olhar preguiçoso, como se não tivesse corrido atrás de documentos comprometendo políticos horas antes.
— Você madruga, hein? — disse Arkan, entregando a garrafinha a Gael.
— Não durmo direito. Então gasto pedalando o que me sobra de raiva.
Arkan sorriu, observando o pescoço suado de Gael.
— Vai acabar fazendo fila de gente querendo raiva também... se for isso que dá esse corpo.
Gael bufou uma risada breve e se abanou com a camisa.
— Você é sempre assim direto?
— Só quando o homem na minha frente parece mais perigoso do que a serra.
— Perigoso? — Gael ergueu uma sobrancelha.
— Você tem cheiro de quem já queimou metade da cidade… e agora tá se aquecendo no incêndio. — Arkan disse baixo, olhando fundo. — Isso me atrai.
Gael desviou o olhar para a estação em obras. Operários caminhavam pra lá e pra cá, homens de terno discutiam plantas, e um repórter gravava algo ao fundo.
— Essa cidade tá prestes a mudar. — Gael comentou, tentando disfarçar o rubor. — E eu também.
— Já mudou. — Arkan disse, aproximando-se até quase encostar o ombro. — E eu quero ver de perto o que mais você é capaz de incendiar.
Gael riu, seco.
— Cuidado pra não se queimar.
Arkan deu um passo atrás, mas sem desviar o olhar.
— Eu sou bom com queimaduras.
Os dois ficaram em silêncio por um instante. O som da serra acordando, crianças correndo, o ranger do portão de metal enferrujado.
Gael quebrou o clima.
— Vai voltar a dormir ou já começou seu dia também?
— Meu dia começou quando te vi pedalando. — Arkan respondeu, simples. — O resto é só detalhe.
Gael balançou a cabeça, rindo.
— Você é um problema.
— Ou uma solução. Depende do que você quer.
Gael montou na bicicleta.
— Ainda não decidi. Mas quando decidir… aviso.
Arkan ficou olhando enquanto ele se afastava, e sorriu como quem sabia que o jogo já tinha virado.
O sol ainda rasgava a névoa da manhã quando Gael ligou o carro. Mateus acomodou-se no banco do passageiro, o braço engessado repousando sobre uma mochila semiaberta, recheada de cadernos novos e olhares contidos. O silêncio entre pai e filho era confortável, quase cúmplice, até o rádio preencher o espaço com a batida densa de uma canção conhecida.
— Adoro essa música — falou Mateus.
Era “Escorpião”, de Jão. A letra carregada como as sombras que Gael parecia cultivar nos olhos desde o funeral. O trecho melancólico mal alcançava o refrão quando foi interrompido por uma vinheta urgente da rádio local:
> — Interrompemos a programação para uma notícia de última hora: a sede da Prefeitura de Rancho da Serra foi invadida durante a madrugada. Ainda não se sabe quem foi o autor da invasão. Nada de valor foi roubado, mas documentos foram revirados e há suspeita de motivações políticas... Voltamos em instantes para mais informação sobre a invasão e sobre o início da reforma da nossa ilustre estação de Trem.
Gael apertou os lábios, desligou o rádio e manteve os olhos firmes na estrada estreita.
— Isso vai dar pano pra manga — murmurou. Mateus apenas bufou, a testa franzida em silêncio. Ambos sabiam: a cidade estava prestes a ferver.
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No portão da Escola Professora Maria Dulce, Mateus desceu em silêncio. Usava o uniforme adaptado por Gael, com a manga cortada e costurada para facilitar o encaixe do gesso. Alguns alunos sussurravam seu nome, comentavam seu sumiço, especulavam sobre a estação de trem, mas ele caminhava como quem não devia nada a ninguém — o rosto fechado, um traço novo no olhar, mais duro.
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Mais tarde, Gael cruzou os corredores da escola como uma frente fria. No mural da sala dos professores, a lista dos livros obrigatórios recomendados por Úrsula tremulava pregada com fita. Ele ignorou completamente. Abriu sua pasta, retirou os próprios materiais didáticos e os distribuiu sobre a mesa. Cópias, anotações, livros diferentes — e bem mais atualizados.
Minutos depois, Úrsula entrou, o salto ecoando. A expressão estava mais tensa do que altiva.
— Professor Beltran — disse, secamente —, parece que houve um engano. Os materiais definidos para o semestre já foram enviados aos pais. Espero que esteja ciente.
— Estou — respondeu, sem sequer levantar os olhos do livro que folheava. — E também estou ciente de que os materiais indicados por você estão desatualizados, rasos e enviesados. Não vou ensinar isso aos meus alunos.
— Isso é indisciplina! É insubordinação!
— Isso é autonomia pedagógica, Úrsula. Você pode checar na LDB, se quiser.
Ela se aproximou como uma tempestade contida, mas Gael fechou o livro com calma, recolheu a pasta e saiu da sala sem mais palavras. Caminhou direto até a secretaria, onde preencheu um formulário de inscrição.
— Estou me candidatando ao cargo de diretor — disse à funcionária, com um meio sorriso carregado de propósito.
— O senhor… tem certeza?
— Tenho. Essa escola precisa de frescor.
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O burburinho não demorou. Em menos de meia hora, metade dos docentes da escola já discutia no corredor — alguns exaltados, outros cautelosos.
— Gael tem pulso, sim. E coragem! — dizia a professora de Ciências.
— Mas a diretora Úrsula tem vinte anos de casa… — retrucava um outro, incerto.
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Na sala de aula, Mateus parecia absorver o ambiente nervoso. Estava mais irônico do que de costume, respondendo a colegas com frases cortantes e olhando pela janela como se quisesse explodir o mundo em silêncio.
No fim da tarde, Pepe apareceu na casa de Gael como quem não tinha combinado nada, mas vinha ensaiando há dias. Chegou com um açaí na mão e o coração batendo mais forte que o som do rádio do carro do vizinho.
— Fala aí — disse, entrando pela cozinha como de costume. — Trouxe açaí. Sei que tu curte.
Gael estava picando cebola e nem virou completamente, apenas sorriu de canto.
— Eu curto, mas não lembro de ter pedido.
— Não pediu, mas... também não disse que não queria — rebateu Pepe, tentando soar casual.
Houve um pequeno silêncio. O único som era o da faca batendo na tábua.
— Gael... — Pepe começou, encostando-se no balcão. — Posso falar um negócio meio doido?
Gael olhou por cima do ombro, desconfiado.
— Quando você começa assim, geralmente é.
Pepe respirou fundo, rápido, como quem pula na piscina sem pensar.
— Eu gosto de você. Tipo, gosto de verdade. Penso em você o tempo todo. Mesmo quando você tá todo fechado, de cara feia, eu acho você... sei lá. Foda.
Gael se virou por completo, os olhos agora atentos.
— Pepe...
— Calma, deixa eu falar. Eu sei que você é mais velho, que tem mó vida enrolada, um monte de problema, e que provavelmente acha que eu sou só um moleque. Mas eu não tô aqui de zoeira, não. Queria que você pelo menos pensasse em mim... tipo, de outro jeito.
Gael suspirou, firme.
— Pepe, olha... você é especial. Mas você é meu aluno e isso não é certo. E mesmo se não fosse... você é novo. Tá descobrindo a vida. Eu tô em um outro momento da minha vida.
— Ah, tá. Vai me dispensar assim, todo educado? Tipo professor falando com aluno?
— Não é isso...
— É o cara da moto, né? — Pepe acusou. — O tatuado misterioso. Arquimedes, sei lá o nome dele.
Gael ficou em silêncio por um segundo. E isso foi resposta suficiente.
Pepe deu um riso irônico, nervoso.
— É. Beleza. Já entendi. O rebelde ganha. E eu que me lasque.
— Pepe...
— Relaxa. Não precisa dizer mais nada. Boa sorte aí com seus mistérios. Só não vem atrás depois que der ruim, tá?
Ele pegou o açaí da mesa e virou de costas, saindo pela porta batendo.
Gael ainda ficou um tempo parado, sentindo o cheiro da cebola no ar... e o silêncio no peito.
A luz do luar fazia brilhar as pedras portuguesas da pracinha central de Rancho da Serra. Dolores Cabalero caminhava com sua elegância meticulosa, a bolsa de couro italiano oscilando no braço e os óculos de sol cobrindo metade do rosto.
Arkan estava do outro lado da rua, encostado na moto. Tatuagens à mostra, cigarro nos dedos, olhar atento. Ele a viu primeiro.
— Dona Dolores — disse ele, quando ela se aproximou, num tom quase sarcástico. — Que surpresa boa. Tá perdida mozinho ?
Ela parou, encarando-o com um leve levantar de sobrancelha.
— Perdida? Eu nasci nessa cidade, rapaz. Diferente de você, que aparece como praga depois da chuva.
Arkan sorriu de canto. Deu uma tragada e soprou a fumaça devagar, sem tirar os olhos dela.
— É. Mas tem praga que sobrevive a tudo. Inclusive a famílias como a sua.
Dolores se retesou, mas manteve o tom controlado.
— Você não vai conseguir o que quer. Mas já fez barulho demais. Essa cidade não é para você e suas botas sujas.
— Eu só vim cuidar do que é meu. E ver justiça sendo feita. Coisa que vocês, os Cabalero, nunca souberam fazer.
Ela deu um passo à frente, fria.
— Escute bem, Arkan. Eu não sei o que você está tramando, mas se tocar na família e em nossos interesses, vai desejar nunca ter voltado.
Arkan apagou o cigarro no solado da bota e falou, sem pressa:
— Já desejei tanta coisa nessa vida, Mozinho. Mas sabe o que eu mais quero agora? Ver o castelo de vocês desmoronar. E eu vou estar lá, na primeira fila.
Ela o olhou como se quisesse cuspir.
— Cuidado com o que deseja, marginal.
— A senhora também. Porque às vezes o que a gente deseja... volta com gosto de ferro na boca.
Eles se afastaram sem dizer adeus, mas o ar entre os dois ainda queimava.
A sala da casa dos Cabalero era fria, silenciosa e organizada como se ninguém vivesse ali. Cortinas fechadas, móveis clássicos, cheiro de lavanda e segredo. Amadeu estava sentado em sua poltrona de couro, lendo o jornal local com a notícia da invasão à prefeitura estampada na capa.
Dolores entrou, tirando os óculos escuros, os passos precisos como sempre.
— Temos um problema, Amadeu.
Ele nem levantou os olhos.
— Só um?
— Arkan.
A página do jornal tremulou nas mãos dele.
— Está de volta?
— Não só voltou como anda desfilando pela cidade, fumando nos cantos, fazendo trilha, cavando coisa que não devia. E hoje… me confrontou.
Amadeu enfim a olhou.
— E você deixou?
— Eu sou uma senhora, não uma lutadora de rua. Mas ele está provocando, Amadeu. Ele está tramando algo. E mais: está próximo de Gael Félix. Muito próximo.
O nome fez Amadeu apertar os lábios.
— Esse Félix… não devia ter voltado. Não devia ter se metido com meu filha.
— Pois voltou. E voltou com sede de guerra. Cacilda morreu, e agora ele tá com tempo e rancor de sobra. E o marginal do Arkan é o braço que ele precisava pra começar a guerra.
Amadeu cruzou as pernas devagar, o semblante sério.
— Devemos nos antecipar.
— Já devíamos ter feito isso. Mas agora… precisamos ser cirúrgicos. Eu quero esse Arkan longe da cidade. Expulso. Esmagado.
— E Gael?
Dolores sorriu, um sorriso pequeno, venenoso.
— Gael vai cair. Mas primeiro, a gente tira os olhos e os braços que protegem ele. Depois, o derrubamos sozinho.
Amadeu fechou o jornal. Pegou o telefone fixo da mesinha lateral.
— Vou ligar para o advogado. E depois para Maurício Krazinsck. Está na hora de reativar velhos acordos.
Dolores passou a mão na lateral da taça de vinho que repousava na mesa e murmurou:
— Rancho da Serra ainda é nossa. E será nossa até o fim.
O fim da tarde chegava tingido por um céu de tons dourados e lavanda, refletindo-se nos vidros da janela da sala. Gael terminava de ajeitar os cabelos no espelho do corredor. Estava decidido a sair, e isso já era algo novo. Vestia jeans escuros, uma camisa de linho clara com os dois primeiros botões abertos e uma corrente discreta que descansava contra o peito. Havia algo nele que lembrava um homem pronto para recomeçar — ainda ferido, mas endurecido.
Stefani chegou com sua chave reserva, como fazia quando queria evitar que Gael inventasse desculpas. Assim que o viu, sorriu com ironia cúmplice. Ele estava bonito. Bonito de um jeito perigoso.
Tinham combinado, horas antes, que iriam juntos à Florbela — a boate do centro histórico. Stefani sabia que Gael precisava sair de casa, respirar longe do luto, lembrar que ainda havia vida pulsando além das paredes silenciosas da casa de Cacilda.
Mas o destino, como sempre, teve seus próprios planos. Assim que ela entrou, o celular tocou. A voz do outro lado da linha era de Marcela, a ficante de Stefani, que havia tido mais uma crise emocional. Mesmo dizendo que não precisava de ninguém, Stefani sabia ler nas entrelinhas do orgulho de quem ama. Disse a Gael que não poderia mais ir, e ele apenas assentiu, sem dramatizar. Compreendia perdas, compreendia abandonos. Estava se tornando especialista nisso.
Ela hesitou, perguntando se ele ainda sairia. E Gael, com um sorriso contido, respondeu que sim. Que não voltaria atrás.
Stefani se despediu com um breve toque no ombro dele, como quem deixa um soldado ir para o front sem saber se volta. Disse que, se encontrasse o tal motoqueiro bonitão, lembrasse dela dizendo “se joga”. Gael apenas riu. Desespero dele tinha classe.
Pouco depois, saiu de casa com passos firmes. A noite estava morna, convidativa, ainda mais depois de ter ligado para Arkan o chamando para sair.
A boate Florbela estava tomada por um som envolvente e luzes quentes. O centro histórico vibrava, mas ali dentro era como um mundo à parte — onde olhares eram armas e toques, explosões.
Gael atravessou o salão como quem inaugura um reinado. Cabelos loiros ondulados, camisa vinho parcialmente aberta, calça justa e botas de couro. O corpo estava leve, mas os olhos escuros carregavam algo sombrio e instável. Um homem em luto, dançando no limite entre o prazer e a vingança.
Arkan o esperava no balcão. Jaqueta de couro bem ajustada, botas pretas de cano médio, cabelos grisalhos arrumados em um topete. O cheiro era de couro, âmbar e perigo. A barba cerrada, bem aparada, destacava o maxilar e os olhos atentos.
— Pensei que não viesse — disse Gael ao ver Arkan se aproximar.
— Tava em dúvida se era festa... ou emboscada.– disse Arkan
— Pode ser os dois. — Gael sorriu, e Arkan mordeu o lábio, rindo.
Logo estavam na pista. A música era densa, percussiva. O calor entre eles crescia com cada roçada de quadris, cada mão que deslizava, cada olhar que não se desviava. O salão parecia dissolver-se em vapor.
Pedro entrou sem ser notado. Estava encostado à parede do bar, suando de ansiedade. Tinha seguido Gael com o carro, e agora segurava um copo de uísque com tanta força que o gelo estalava. Observava Gael sorrir, dançar, se entregar. A cada riso, Pedro engolia outro gole. A cada toque entre Gael e Arkan, sua raiva crescia.
Quando o beijo aconteceu — longo, denso, um beijo de corpos colados e promessa de noites ardentes — houve um silêncio súbito na pista. Algumas pessoas se entreolharam. Outras sorriram.
Pedro bateu o copo na mesa e foi até os dois, tropeçando de raiva.
— Você tá brincando comigo, Gael? — cuspiu, a voz alta demais.
Gael se afastou um pouco de Arkan, ainda com a mão no peito dele.
— Com você? Eu nem lembrava que você existia até agora.
Pedro avançou, os olhos úmidos.
— Você não era assim... Você era doce, calmo, amoroso. Agora virou um animal!
— Animal é você seu babaca!!! – Cuspiu Gael.
Pedro tentou tocar no rosto de Gael, mas Arkan entrou no caminho.
— Nem tenta — disse Arkan, num tom firme e seco, o olhar afiado como lâmina.
— Quem é você pra se meter? Um qualquer de couro que aparece do nada?
— Um homem que tá onde você nunca teve coragem de ficar.
Pedro empurrou Arkan, mas ele não se moveu. O público começava a prestar atenção.
Úrsula surgiu na entrada da Florbela como uma avalanche de ódio mal contido. O batom borrado, os cabelos soltos demais para o penteado armado que tinha feito, e o olhar faiscando como brasa. Viu Pedro cambaleando, suado, e então os olhos dela encontraram Gael e Arkan. E foi como se o inferno tivesse recebido ordem para subir à Terra.
Ela marchou pela pista de dança sem se importar com os olhares. Bateu no ombro de um rapaz que não saiu do caminho rápido o suficiente. Quando chegou perto dos dois homens, a voz rasgou o som da boate como uma sirene:
— Essa pouca vergonha agora é pública, é? Não basta ser viado, tem que ser sem noção também?
O salão inteiro ficou em silêncio. Só o grave abafado da música seguia ecoando, enquanto Úrsula, embriagada e tomada pelo rancor, despejava o veneno de anos de ressentimento.
— Gael Beltran, seu nojento! Você destrói a moral e os bons costumes e agora quer arrastar o resto da cidade contigo nessa sua promiscuidade de quinta? Ficar se esfregando com um marginal no meio de todo mundo como se fosse normal? Como se fosse bonito?
Arkan avançou meio passo, mas Gael estendeu a mão em sua frente, contido, gelado. O sorriso dele era puro gelo.
— Cuidado, Úrsula... você tá cuspindo tanto ódio que vai acabar se afogando nele.
— Cale essa boca! — ela cuspiu, literalmente, a centímetros do rosto dele. — Você nunca soube seu lugar! Filho de professorinha pobre! Sempre querendo mais do que merecia! Agora tá aí, achando que porque alguém te lambe os beiços, você tem algum valor!
— E você... — Gael disse, com a voz baixa, firme, cortante. — Sempre teve tudo e continua vazia. Nem o marido, nem a filha, nem o pai conseguem te amar sem medo. Sabe por quê? Porque o seu coração é um deserto. Árido, infértil, morto.
Úrsula riu, uma risada histérica.
— Eu? Deserta? Vai se olhar no espelho, querido. Quem você pensa que é? Vai me desafiar? A mim?
— Não preciso pensar quem eu sou, Úrsula. — Gael deu um passo à frente, rosto a poucos centímetros do dela. — Eu sou o seu fim. E você sabe disso.
Nesse instante, Arkan puxou Gael levemente para trás, sentindo o calor da raiva prestes a explodir. Pedro, trôpego, tentou se colocar entre os dois, mas Úrsula o empurrou.
— Você também é um inútil! Fica feito um cachorro babando por esse pervertido enquanto eu sou humilhada em público! – disse ela de forma mais baixa, perto do marido.
— Cuidado com o que diz, — Arkan murmurou, com voz grave, — porque tem palavras que o mundo devolve com juros.
— Cale-se, bandido! — Úrsula cuspiu em sua direção. — Você é lixo. Não passa de um verme que acha que vai se dar bem às custas dos outros!
— Pelo menos eu não vivo fingindo santidade enquanto apodreço por dentro. — Arkan retrucou.
— Bandida é você. Mimada do caralho.
E então ela gritou. Um grito agudo, de bicho ferido e acuado. Pedro, humilhado, tentou puxá-la, mas ela se desvencilhou aos trancos, esbarrando em cadeiras, tropeçando nos próprios saltos.
— Vocês vão pagar! Os dois! Isso não vai ficar assim! A cidade vai ver quem é o verdadeiro lixo aqui!
Mas ninguém respondeu. Gael a encarava com desprezo. Arkan, com indiferença. E o público da boate… apenas observava, mudo, como se presenciasse o fim de uma era.
Naquela noite de sábado caia como um véu espesso sobre Rancho da Serra. Enquanto o centro histórico pulsava ao som de batidas quentes na boate Florbela, longe dali, na casa simples e silenciosa de Gael, outro encontro se desenrolava em segredo.
Mateus abriu a porta da frente devagar, checando a rua. Nenhum vizinho à vista. O pai havia saído — disse que iria “resolver coisas na cidade” — e não deu detalhes. Melhor assim.
— Entra logo. — disse, abrindo espaço.
Elisa entrou rápido, o capuz do moletom escondendo o rosto. Trazia uma mochila nas costas e os olhos alertas.
— Oi pra você também. — disse ela, já no corredor. — Meu coração tá batendo até no pescoço. Se minha mãe descobre…
— O meu já nem pode descobrir nada. — respondeu Mateus, com um humor triste.
Foram direto para o quarto. A porta fechada abafou o mundo. Ali dentro, era só o som de suas respirações. Mateus sentou-se na cama, ajeitando o braço ainda enfaixado. Elisa tirou o moletom e se sentou ao lado, os olhos vagando pelo quarto simples, com livros, cartazes antigos de astronomia e fotos antigas de Gael e Cacilda.
— Essa casa parece… triste. — comentou.
— Tá triste. Desde que minha vó morreu, ficou um buraco aqui. E meu pai… tá virando um estranho.
Ela abaixou os olhos. Ficaram em silêncio por instantes.
— Eu pensei em você o tempo todo. — disse ela, de repente.
— Mesmo depois da estação? — ele perguntou, incerto.
— Principalmente depois da estação. Aquilo tudo me virou do avesso.
Mateus respirou fundo. Olhou pra ela.
— Acha que a gente é só confusão de hormônio? Um abrigo temporário das nossas merdas?
Elisa franziu o cenho.
— Não. A gente é… alívio. Refúgio. E talvez, só talvez, alguma coisa que possa durar.
Ela tirou da mochila um pote com brigadeiro caseiro.
— Fiz escondido. Roubei da geladeira antes de sair.
— Você é criminosa. — ele riu.
— Só pra você.
Eles comeram brigadeiro na cama, rindo baixo. Elisa pegou o celular, colocou uma playlist lo-fi baixinha no fundo. Encostou a cabeça no ombro dele com cuidado.
— Sabe… eu odeio quando tudo lá fora parece errado. Mas aqui, agora… — ela suspirou. — parece certo.
Mateus apertou a mão dela. Deixou o silêncio responder.
O silêncio dentro de Gael era diferente do que o cercava na boate. Enquanto algumas pessoas voltavam à pista como se nada tivesse acontecido, ele só conseguia pensar em ir embora.
— Vamos — disse, seco, para Arkan, já virando o corpo em direção à saída.
Arkan acompanhou, calado. No estacionamento, sob a luz amarela e artificial, Gael encostou na moto dele e soltou um suspiro carregado.
— Eu devia ter ficado em casa — murmurou, passando as mãos pelo rosto. — Foi uma idiotice vir aqui.
Arkan cruzou os braços, o couro da jaqueta rangendo de leve.
— Não foi não — respondeu com calma. — Foi só... verdadeiro demais. E gente acostumada com mentira não sabe o que fazer quando a verdade aparece de cara limpa.
Gael olhou para ele com um sorriso torto, cansado.
— Você tem uma resposta na ponta da língua pra tudo, né?
— Não. Só tenho a língua certa pra quando você precisa ouvir alguma coisa.
Gael soltou uma risada abafada, surpresa. Mas logo desviou o olhar, os ombros tensos.
— Arkan... eu só quero ir pra casa.
— Então vamos fazer diferente — Arkan falou, tirando as chaves da moto do bolso com um giro de dedos. — Amanhã, de dia. Sol, vento, mato. Eu descobri uma cachoeira que ninguém conhece ainda. Linda. Vazia. Se quiser sumir um pouco do mundo, te busco às 9 h em casa. O que acha ?
Gael hesitou. Os olhos fixos no asfalto molhado pela umidade da noite.
— Cachoeira?
— É. Água gelada, trilha de barro, silêncio de verdade. Nada de gente olhando, comentando, julgando.
Gael ergueu os olhos e encarou Arkan. Havia ali uma oferta que não era só um passeio. Era respiro. Era perigo. Era desejo.
— Aceito.— respondeu. — Mas se eu me arrepender, vou jogar você dentro da cachoeira.
— Prometo cair bonito — disse Arkan, com aquele sorriso de canto que ele parecia guardar só para Gael.
Eles se despediram com o peso de quem sabia que o dia seguinte carregaria algo diferente.
E quando Gael ligou o carro, ficou ali por alguns segundos, com o motor roncando baixo, o rádio ainda ligado, tocando baixinho " (Não) Quero me apaixonar" de Carol Biazin. Caiu como uma luva para aquele momento.
“Uma cachoeira secreta”, sorriu malicioso.
Ele respirou fundo, engatou a ré, e foi embora.
O ronco grave da moto cortava o silêncio da manhã de domingo. A estrada de terra avermelhada soltava poeira enquanto Arkan guiava com firmeza. Gael, atrás dele, apertava a cintura do homem com os braços, sentindo o couro da jaqueta morna sob os dedos, o cheiro misturado de gasolina, mato úmido e um perfume discreto.
O vento batia em seu rosto, mas não gelava. Era libertador. Pela primeira vez em muito tempo, Gael não sentia o peso da cidade, da escola, dos olhares alheios. Só o calor do sol e o corpo firme de Arkan à frente, como se aquele percurso fosse um rasgo no tempo — uma pausa merecida da guerra cotidiana.
A moto parou num recanto escondido, onde a vegetação se abria em corredores verdes. Arkan desceu, retirou o capacete e jogou um sorriso para Gael, que ainda não sabia como reagir. Sentia-se exposto e vivo ao mesmo tempo.
— Vem — disse Arkan, com naturalidade.
Seguiram a pé por uma trilha de terra batida, contornando pedras, ouvindo o som da água ao longe como um chamado. Quando chegaram, Gael parou em silêncio.
A cachoeira era linda — selvagem, escondida, cercada de mata fechada. A queda d’água formava uma pequena piscina natural, límpida, onde o sol escorria entre as folhas.
Arkan começou a tirar a jaqueta.
— Tá esperando o quê?
— Eu não trouxe sunga. — Gael rebateu, com um meio sorriso.
— Nem eu. — respondeu Arkan, já tirando a camiseta.
O silêncio seguinte foi feito de olhares. Gael hesitou, mas logo o próprio corpo tomou a decisão. Despiu-se, jogando as roupas sobre uma pedra. Sentiu a água fria como um susto bom. Os músculos contraíram, o sangue acelerou.
— Tá gelada, porra! — ele disse, rindo.
— Te acorda pra vida — Arkan respondeu, mergulhando.
Eles nadaram lado a lado, provocando-se com respingos, palavras cortadas, silêncios carregados de tensão. O riso virou proximidade. Os corpos se tocaram sem querer. Depois, de propósito.
Gael encostou-se numa pedra, ofegante. Arkan chegou por trás, passando os dedos molhados pela cintura dele.
— Você me olha como se quisesse me morder — sussurrou Arkan.
— E você age como se merecesse — respondeu Gael, virando o rosto.
O beijo veio urgente. Salgado. Úmido. As mãos de Gael agarravam os ombros largos de Arkan, enquanto ele o prensava contra uma pedra úmida e lisa.
A água escorria entre os dois, mas não esfriava o calor. Arkan o ergueu com facilidade, apertando as coxas de Gael com firmeza. Gael entrelaçou as pernas ao redor da cintura do outro e deixou-se ser levado.
As respirações se misturavam ao barulho da água. Os quadris se encaixaram, a fricção se intensificou.
Gael mordeu o ombro de Arkan, tentando conter um gemido, mas falhou. Ali, no meio do nada, ninguém precisava se conter.
Arkan o segurava com uma força que não era bruta, era segura. Um refúgio físico. Como se dissesse, sem palavras: Você pode desmoronar aqui.
Os movimentos se tornaram mais intensos, o corpo de Gael arqueado contra o tronco molhado, o pescoço exposto, os olhos fechados. Ele gemia com a boca entreaberta, arfando seu luto, sua raiva, sua solidão.
O clímax chegou como uma explosão sem grito, apenas com os músculos trêmulos e um suspiro longo, vencido. Arkan encostou a testa na de Gael e respirou fundo, o peito arfando contra o dele.
Ficaram assim por um tempo — abraçados na água gelada, sem nenhuma defesa, sem nenhuma máscara.
Quando Gael recobrou a respiração, virou o rosto. Estava sério. Quase triste.
— Sobre o que aconteceu ontem… — começou.
Arkan, ainda ofegante, o encarou.
— Se quiser contar… eu escuto.
Gael fechou os olhos por um instante.
— É uma história longa.
— Tenho tempo — disse Arkan, limpando uma gota de água do queixo de Gael com o polegar.