Eu tinha um pressentimento de que o vírus não demoraria a chegar a Salvador, o carnaval comeu no centro. Inclusive, achei que os primeiros casos viriam a partir daí, porém não foi assim que ocorreu.
Não lembro o tempo exato porque foi muito rápido, mas, logo após o primeiro caso no Brasil, apareceu um em Feira de Santana, depois em Salvador e, infelizmente, a primeira de muitas mortes aconteceu. Num piscar de olhos, a cidade já estava em estado de emergência. As restrições foram implementadas aos poucos e nós vimos uma realidade atípica se instalando em nossas vidas.
O Psiquilord fez uma reunião online com todos os diretores regionais e foi bem diferente de tudo. Geralmente, ele tem tudo na ponta da língua, está sempre pronto para responder nossos questionamentos. Contudo, naquele dia, não ocorreu assim. A situação só se complicava e tudo que tínhamos em mãos parecia ineficiente: muitas notas técnicas, protocolos sendo atualizados a todo tempo e o número de pacientes crescendo de maneira desordenada, os casos de infectados só cresciam a cada minuto.
Era o início e o fim não parecia próximo, nem estava.
Foi caótico, e eu via o meu chefinho, que é sempre muito confiante, perdido em papéis, tentando restabelecer a ordem daquele encontro virtual.
— Mãe, não sei fazer barquinho de papel, me ajuda? — ouvi Kaique pedir, se apoiando no meu colo.
— Gatinho, estou ocupada agora — falei, apontando para a tela do computador.
— Mas é para a aula de artes agora — ele se justificou.
O colégio havia suspendido as aulas presenciais, e Kaique e Milena estavam tendo aula online. Nesse dia em específico, Júlia tinha ido até a pousada passar recomendações mais diretas para meus sogros e levar compras, para que eles não precisassem sair. Eu estava totalmente responsável, pela primeira vez, em supervisionar os nossos filhos durante a aula... Só que eu ia fazer isso enquanto trabalhava.
Fiz um barquinho e fui falando rapidamente sobre as dobras para que ele fizesse os próximos. Kaká sentou no chão, em minha frente, com inúmeras folhas de papel e foi tentando replicar. Os primeiros saíram bem tortos, mas logo ele foi pegando o jeito.
Estranhei o silêncio no meu fone e, quando voltei a atenção para o monitor, mais de vinte pessoas estavam me assistindo fazer um tutorial de como fazer um barquinho de papel.
— Home office, não é? — brinquei, e a maioria riu.
Pedi desculpas, a reunião seguiu e logo se finalizou, sem nada de muito produtivo.
Eu tinha uma formação para o pessoal do RJ logo em seguida. Obviamente, as minhas viagens tinham sido suspensas, e fazíamos tudo por uma plataforma. Antes, resolvi tomar mais um cafezinho e passar o olho nas crianças, que nesse momento estavam em aula.
— Gente, vocês precisam usar o nome de vocês. Eu não sei quem é Kakaroto e nem Clã Uchiha — ouvi a professora dizer furiosa.
Logo em seguida, escutei o riso de Milena.
— Por favor, filha, me diz que nenhum desses é você — falei, com as mãos nas têmporas.
— Não sou eu, mãe!!! — ela exclamou, gargalhando.
— Ótimo, ótimo — falei, aliviada.
— Kakaroto sou eu — disse o meu filho, com um sorriso sapeca no rosto.
— Kaique... — chamei a atenção — Muda isso agora — ordenei, e ele obedeceu.
— Pronto, já editei... Só não está aparecendo. — disse Kaká.
— Depois atualiza — Mih explicou.
Quando olhei, o nome dela estava lá: "Milena Oliver". Resolvi não comentar, até porque não era nada formal e dava para identificá-la.
Juh e eu tentamos controlar o uso de telas até onde conseguimos. Ficou impossível não dar celulares para eles com essas mudanças, e os dois se aproveitaram bastante desse novo recurso.
Aconselhamos o bom uso e esclarecemos o quanto nós confiávamos neles. Deixamos claro o tanto de portas que a internet abre e que estaríamos de olho. Eles podiam usar para entretenimento, mas não queríamos que esquecessem de brincar como sempre fizeram.
— Já que está tudo bem, vou começar a formação — disse-lhes e fui saindo.
Antes de começar, enviei mensagem para a gatinha perguntando se estava tudo bem, e ela me respondeu que já estava retornando. Imaginei que, pelo tempo que Juh permaneceu por lá, não tinha sido um encontro agradável. Na verdade, eu não esperava que fosse, apenas torcia.
Fiz a formação e já me arrumava para ir até a filial quando minha muiezinha chegou, visivelmente abatida. Foi direto para o banho e eu a acompanhei, tentando entender o que havia acontecido.
— E aí? — perguntei, abotoando a camisa.
— E aí que nada que eu disse adiantou... Eles não me escutam pra nada. Vão viajar para o Rio, fizeram uma busca ativa e dois irmãos adolescentes de lá se encaixaram no perfil. Uma menina de dezessete anos e um menino de dezesseis... São dois... — ela me explicou, se enfiando com tudo embaixo do chuveiro.
— Putz... — foi a única coisa que consegui falar.
— Era isso que eles queriam tanto falar comigo — explicou a gatinha, em um tom revoltado.
— Essa viagem é para conhecer? Muito perigoso, não? Principalmente pela idade deles. — questionei.
— Essa viagem já é para eles virem junto! — exclamou, brava.
Eu queria entender como, mas achei arriscado perguntar.
— Vem cá... — a chamei.
— Vou te molhar inteira e você já está toda linda — Juh disse em um tom melancólico.
— Não tem problema, eu troco de roupa — falei, esticando a mão.
Júlia veio, eu segurei o rosto dela e dei vários selinhos.
— Poxa, eles não podiam esperar? Precisam tanto de um filho novo que vão arriscar a vida para ter? O mundo inteiro entrando em colapso e eles só pensam nisso... — ela disse, mordendo os lábios para conter o choro, mas falhando na missão.
— Difícil, amor... Agora só resta respeitar a decisão deles. Eu realmente torço para que vocês consigam se ajustar novamente — falei, com sinceridade.
— Eles queriam contar a história dos meninos, mas eu nem quis ouvir... Não acho que fui certa, porém eu não conseguia mais ficar ali... — Juh continuou, retornando ao banho.
Com os ânimos acalmados, achei seguro tirar minhas dúvidas.
— Mas como eles já vão concretizar a adoção? Fizeram outras viagens? — perguntei.
— Não, foi tudo online. Fizeram vídeo chamada... Já se conhecem. A princípio, eles não queriam ser adotados, mas cederam após algumas conversas — Juh me explicou.
— Ahhhh, entendi — falei, ainda pensando um pouco sobre.
Meu celular vibrou, era uma mensagem do Psiquilord perguntando se podíamos fazer uma ligação ainda naquela semana, e eu confirmei. Provavelmente, ele desejava atualizações da capital baiana.
Me despedi das crianças e de Júlia. Depois da filial, eu ainda iria para a clínica, saber como estava por lá.
A clínica havia sido recentemente reinaugurada. Os atendimentos já iniciaram 100% online, mas agora ela funcionava 24h e contava com alas de internação.
Cheguei na filial no meio do dia, depois de um caminho silencioso e, honestamente, necessário. Eu precisava colocar os pensamentos em ordem antes de enfrentar mais uma rodada de decisões difíceis.
Assim que estacionei, fui direto para o ponto de triagem. Era obrigatório realizar o teste rápido tanto na chegada quanto na saída das unidades. A medida parecia extrema para alguns hospitais vizinhos, mas, para o Psiquilord, era o mínimo. Foi uma atitude que eu particularmente gostei bastante. Eu não queria ser um risco para a equipe, para os pacientes ou para a minha própria família.
Após o teste negativado, segui para a sala de reunião, onde a equipe local já me aguardava com os relatórios do dia. Fiz questão de conversar brevemente com todos, manter a energia firme. Eu sabia que muitos ali estavam com medo, longe de suas famílias, exaustos. Porém, nós precisávamos evitar um colapso emocional interno, e o meu jeito humorado era um ponto positivo. Eu dava um jeitinho de brincar com todos, e já estava nos meus planos aumentar ainda mais a equipe inteira. Sabia que seria necessário — e quanto antes eu fizesse isso, melhor.
Anotei algumas demandas urgentes, preparei uma nova escala de plantão para a semana seguinte. O volume de pacientes vinha crescendo em um ritmo assustador e, apesar de o hospital estar preparado para isso, a prática era sempre mais dura que a teoria. Afinal, se tratava de pessoas, de vidas!
Fui para a clínica e Davi, o novo diretor que estava gerindo no meu lugar, me encontrou no corredor da administração. Ele estava com a expressão séria, mas ainda assim transmitia tranquilidade. Eu gosto disso nele.
— Lore, para te atualizar… As nove pessoas que estavam internadas e testaram positivo foram transferidas para unidades de referência. A remoção foi tranquila, todas em estado estável — ele informou.
Fiquei aliviada. Tinha pedido para que ele me avisasse assim que houvesse qualquer novidade com as famílias. Eu precisava saber como elas estavam, mesmo que não fizessem mais parte da nossa internação direta.
— E a equipe? — perguntei.
— Dois profissionais afastados com sintomas leves, mas estão bem, só aguardando o segundo negativo pra retornarem — me respondeu.
— Ótimo! — exclamei. — E o restante? — questionei.
— Exaustos. Tem gente dormindo no plantão para não colocar a família em risco. O clima tá pesado, doutora. Eu queria pedir um suporte psicológico pra equipe. Não dá mais pra adiar — Davi sugeriu, com firmeza.
— Claro, você tem liberdade total pra designar um psicólogo e um psiquiatra da casa pra isso. Se precisar, eu me coloco à disposição — falei.
— E sua esposa me mata! — ele disse, rindo e me fazendo rir.
— Pelo visto, ela já deu uma carteirada aqui — disse-lhe, e ele confirmou.
— Tá tudo sob controle aqui, mas o emocional precisa de cuidado como qualquer outro sistema — falou Davi.
— Exatamente. Cuide deles! — pedi, antes de me despedir.
Nesse dia, saí da clínica e pensei: "Poxa, que cara maneiro eu encontrei para entregar a clínica... Está com certeza em boas mãos."
A clínica sempre foi o meu sonho, então estar distante dela me incomodava bastante. Saber que tinha um profissional tão humano no comando me deixou aliviada.
Cheguei em casa e Kaique, Milena e Júlia estavam assistindo TikTok na televisão. Tomei um banho e desci para ficar com eles.
— Já soube o que seu filho aprontou hoje? — perguntei.
— Não, o quê? — Juh o questionou.
— Conta, Kakaroto — brinquei.
Kaique olhou pra mim com aquele sorrisinho safado no canto dos lábios e respondeu, todo orgulhoso:
— A professora ficou brava e disse que eu não podia mais usar nome de personagem de anime.
Milena explodiu numa gargalhada que até se jogou pra trás, e agora os dois dividiam o colo da mamãe.
— Ai, meu Deus… Meu filho, eu não acredito nisso! — ela exclamou.
— Mas já mudei, mamãe — Kaká explicou.
— Muito bem, né? Não faz esse tipo de coisa, isso só dificulta para as profs — Juh pediu, e ele assentiu.
Também contei a história do barquinho de papel e eles riram. Quando percebemos, nós estávamos ignorando completamente a televisão e rindo do nosso dia.
Fomos para a cama e a gatinha deitou sobre mim. Achei que já íamos dormir.
— Amor, descobri por que o meu peito é pequeno — ela disse, analisando os dois.
— Por quê? — perguntei, envolvida no assunto aleatório.
— Então você acha o meu peito pequeno, Lore? — Juh questionou, se apoiando com as mãos em mim, me encarando séria.
— Não... Veja bem... — comecei a dizer.
— Foi o que você disse — ela se jogou contra a cama, de costas para mim e brava.
— Amor... Eu só segui a linha de raciocínio da sua pergunta... — falei, a abraçando.
— Hum — Júlia resmungou.
— Você é perfeita, para com isso... Desculpa! — pedi, enchendo o pescoço dela de beijinhos.
E após uns segundos, ela começou a rir muito... Sinceramente, eu não estava entendendo nada até que ela apontou para a mesinha de cabeceira dela e eu avistei um celular, aparentemente, nos gravando.
— Que muiezinha cretina... — falei, a agarrando, enquanto ela virava para rir mais ainda da minha cara.
— Sabia que você ia cair nessa, vi no TikTok — ela disse, convencida.
— Achei que ia ter que cortar o TikTok dos nossos filhos, mas pelo visto tenho que me preocupar é com o seu — afirmei, beijando a boquinha dela.
Enquanto a gente se ajeitava novamente para dormir, subi as mãos por baixo da camisa dela e apertei de leve seus seios, acomodando o meu rosto na curva do seu pescoço.
— Tire as mãos dos meus peitinhos! — Juh falou, de um jeito bem-humorado.
— Se você quiser eu ponho a boca — brinquei de volta.
~ Eu ri depois, mas pensem num susto que levei? 🤣
Trollagem quando a pessoa tá indo dormir, principalmente depois de um dia cheio, é sacanagem 🤣🤣🤣🤣🤣