Ficar ou não ficar?... - Parte 2

Um conto erótico de Paulinho (Por Mark da Nanda)
Categoria: Heterossexual
Contém 4258 palavras
Data: 18/07/2025 20:58:53

Agora, olhando pros morros de Passa-Vinte, me perguntava: Emilinha era minha ou seu coração já pertencia a outro? O ciúme que Léo trouxe agora gritava mais alto, e eu já não sabia se amava, se temia saber que não sou amado, ou saber que sou amado, mas já fui passado pra trás por um espertalhão da cidade grande. Teve um homem que certa vez disse um negócio bonito demais: ser ou não ser, eis a questão? Então, a minha é mais ou menos nesse mesmo rumo: ficar ou não ficar? Eis a minha questão...

[CONTINUANDO]

Os dias que se seguiram à partida de Leonardo foram como o lento gotejar de uma torneira mal fechada: cada gota, um pensamento; cada pensamento, uma dúvida; e cada dúvida, uma pontada do meu peito. Passa-Vinte, com seus morros verdes e o ranger dos carros de boi, seguia sua rotina, indiferente à tormenta que me consumia. E Emilinha, com seu jeito de sempre, continuava a me sorrir, a segurar minha mão nos passeios pelo coreto, a rir das minhas tentativas desajeitadas de poesia. Mas havia algo diferente, uma sombra que pairava entre nós, como a névoa que sobe do rio nas manhãs frias. Era nos silêncios dela, nos olhares que fugiam dos meus, que eu buscava respostas. E, Deus me perdoe, quanto mais eu buscava, mais me afogava em dúvidas.

Leonardo, com seu jipe reluzente e suas histórias de Belo Horizonte, havia partido, mas deixara um rastro fundo em nossa história. Cada risada que Emilinha dera às suas palavras, cada toque casual que eu testemunhara, voltava à minha mente como um filme que se repete sem que eu pudesse desligar a projeção. Será que ela, minha Emilinha, tão direita, tão filha de Dona Clara e Seu Zé Maria, teria cedido ao encanto daquele primo de fala mansa? Ou seria eu, com meu coração atabalhoado, que via fantasmas onde só havia saudade de uma infância compartilhada?

Resolvi que precisava agir. Não podia mais viver preso a esse “senão” que ela deixara no ar, naquela noite do forró, quando seus olhos brilhavam sob a luz da fogueira. Mas como? Confrontá-la seria como cutucar um vespeiro: e se a verdade doesse mais que a dúvida? E se, ao perguntar, eu a afastasse de mim para sempre? Meu pai, Ciro, com sua sabedoria rústica, já me dissera que ciúme é um tempero dos bão, mas aos montes, vira veneno. Então, como medir a dose certa? Resolvi observar... É, só observar, como quem estuda o céu antes da chuva, buscando sinais se vem uma garoa ou um pé d’água.

Naquela semana, Passa-Vinte preparava-se para a festa de Nossa Senhora do Carmo, padroeira da cidadezinha. A praça da igrejinha estava um alvoroço: mulheres trançavam fitas para as bandeirinhas, homens carregavam lenha para a fogueira, e as crianças corriam, alheias ao peso dos corações adultos. Emilinha, como sempre, estava no centro de tudo, ajudando Dona Clara a preparar os doces para a barraca da quermesse. Eu a vi de longe, com seu simples vestido de chita, o cabelo preso num coque frouxo, o rosto corado pelo calor da cozinha. Continuava bela, ainda mais até, mas notei que havia algo novo em seu jeito: uma pressa nos gestos, como se quisesse ocupar as mãos para não deixar a mente vagar.

Aproximei-me, com o pretexto de ajudar a carregar uma cesta de pães de milho. Ela me olhou, com aquele sorriso que ainda me fazia tremer, e disse:

— Uai, Paulinho, tu tá virando ajudante de quermesse agora?

O tom era leve, mas os olhos... Ah, os olhos... Estes pareciam querer me pregar uma troça, escondendo de mim um segredo:

— Ara! Só tô tentando te ajudar, Emilinha, posso não? — Respondi, forçando um sorriso e ainda brinquei, despistando: — E, ó, se precisar de alguém pra provar esses doces, eu me sacrifico.

Ela riu, mas o riso não chegou aos olhos. Dona Clara, que amassava a massa de um bolo com mãos firmes, correu o olho por ela e me lançou um olhar que não decifrei. Era aprovação? Era desconfiança? Era um aviso? Ou apenas o cansaço do inconformismo de uma mãe que sabia mais do que se dizia? Voltei para casa com o coração apertado, decidido a encontrar um jeito de saber a verdade, mesmo que doesse. “A verdade libera!”, disse o Padre Cláudio numa pregação da semana passada, mas que dói... Ô, se dói!

A festa de Nossa Senhora do Carmo trouxe a Passa-Vinte um movimento incomum. Gente de cidades vizinhas, como Pouso Verde de Cima e São Tomé das Vinhas, aparecia para rezar, comer, gastar e dançar nas barraquinhas da quermesse. Foi numa dessas noites, entre o cheiro de churiço frito e o som do acordeão de Seu Alaor, que ouvi uma notícia que me fez gelar: Leonardo estava voltando. Sem má intenção, peguei o locutor pelo braço, e cobrei uma explicação:

— Foi o que ouvi, Paulinho. Parece que ele ligou para o Seu Zé Maria, que disse para a Dona Clara que disse para... Ah, nem lembro pra quem! Mas que ele disse que vem pra festa, ele disse, até para ajudar na organização. — Contava inocentemente o menino Juca, que já havia ouvido essa de outro: — Parece que tá trazendo uns amigos de Beagá, pra mostrar como é o interior.

O nome de Leonardo caiu sobre mim como um granizo do final de junho. Por que ele estava voltando tão cedo? Não havia se passado nem 1 mês da sua partida. Por que ele não ia para os quintos dos infernos? Será que Emilinha já sabia? Claro que já, né!? Ele ligou para o pai dela, que contou para a mãe, que certamente contou para a filha e... Será que era por ela que ele retornava? AAAARA!

Fui até a casa dela, com o pretexto de convidá-la para um passeio na praça, mas, na verdade, queria sondar seu coração. Encontrei-a na varanda, descascando milho com Dona Clara. O sol poente pintava o céu de laranja, e Emilinha, com os cabelos soltos, parecia uma pintura. Mas havia um silêncio entre as duas, um negócio diferente, um leve franzido de testa que não me passou despercebido.

Cumprimentei as duas com um típico “Bão!?”. Troquei meia dúzia de palavras e perguntei, tentando soar casual:

— Emilinha, eu soube que o tal Léo tá voltando? — Minha ansiedade pisoteou a casualidade nas palavras mal ajambradas.

Ela não parou de descascar o milho, mas diminuiu, quase parou, suas mãos ficando lentas, lentas... Dona Clara, sem levantar a cabeça, nos olhos de rabo de “zóio” e continuou seu trabalho, atenta a nossa prosa, mas notei que suas mãos também lerdiaram:

— Soube sim, Paulinho. — Respondeu Emilinha enfim, com um tom que tentava ser neutro: — Ele disse que gostou tanto de Passa-Vinte que queria voltar e perguntou se podia trazer uns amigos pra conhecer. Sei lá... Coisa de gente da cidade grande, sabe?

— E tu acha isso bom? — Perguntei sem nem saber porquê, mas quando vi já tinha perguntado e Dona Clara olhava para a filha, com a cabeça inclinada na direção das espigas de milho, curiosa.

Emilinha me olhou, com aqueles olhos que pareciam enxergar além de mim, mas que insistiam em me esconder algo. Deu um leve sorriso que não entendi pra quê e respondeu:

— Ara, Paulinho, que mal tem? Ele é meu primo, oras.

O tom que usou era firme, mas havia uma sombra de hesitação, como se ela escolhesse as palavras com cuidado. Não insisti. Não porque não quisesse, mas porque o olhar de Dona Clara, agora fixo em mim, parecia dizer: “Cuidado, menino, não estica senão arrebenta!”

Voltei para casa com a testa quente, a cabeça em ebulição, cada palavra de Emilinha piorando o mistério que já me assombrava fazia tempo. “Primo!”, disse ela. Mas primo não abraça com tanto calor, não tantas vezes, nem sussurra no ouvido durante um forró, e o pior, não faz uma moça rir com os olhos do jeito que ela já não ria mais para mim. Ou fazia?

Passados uns dias, chegou a noite principal da festa de Nossa Senhora do Carmo, e com ela, o maldi... digo, o tal do “Léozinho”. Eu sabia que ele já tinha chegado há dois dias, mas sabia que ele e Emilinha pouco falaram, ela porque estava ocupada nos preparativos, eu porque a “ajudei” a todo dia e hora, e ele porque não vi a fuça do tal. Mas nessa noite, ele apareceu, na praça, com mais dois amigos, ambos com o mesmo ar de cidade grande: camisas bem passadas, cabelos penteados com gel, risadas altas que ecoavam sobre o som do acordeão. As meninas da região se derretiam por eles e não sei porquê, nunca vi nada demais no tal Léo e também não via nos seus amigos.

Emilinha estava lá também, linda demais. Usava um vestido xadrez, típico de festa junina com um aventalzinho branco na frente, todo rendado. Além disso, havia feito duas tranças, passado um batom vermelho e feito um tanto de pintinha nas bochechas. Ela estava na barraca dos doces e quando Leonardo a viu, foi direto até ela, com aquele sorriso todo cheio de dentes que eu já começava a querer quebrar:

— Prima! Tô de volta! — Disse ele, abraçando-a com uma familiaridade que me fez cerrar os punhos.

— Ara! Eu sei, Léo, cê tá dormindo em casa, primo. – Ela retrucou, rindo graciosamente na sequência.

— É, né!? Mas você nem para lá para a gente conversar. Até achei que já tivesse casado com o Paulinho e me abandonado. – Riu e apontou para os amigos: - Trouxe uns amigos pra conhecer o melhor de Passa-Vinte: tu e os doces da tia Clara!

Emilinha foi apresentada ao Gustavo e ao Felipe, dando três beijinhos em cada um, coisa de interior, “tem que ser três para casar.” Ele disse alguma piada que não consegui ouvir, mas ela sim e riu, só que o riso me pareceu forçado demais. Ou seria minha imaginação, mais uma vez, pintando sombras? Eu me aproximei, com o coração batendo como tambor, e cumprimentei o talzinho com um aperto de mão que, confesso, foi mais forte do que o necessário:

— E aí, Paulinho? Nem vi você aí... — Disse ele, com aquele tom que misturava simpatia e provocação.

Ele me apresentou para os amigos que, primeiramente, me olharam de cima a baixo e, segundamente, deram um sorrisinho que me pareceu da mais pura zombaria:

— Preparado pra mostrar pros meus amigos como é um forró de verdade? – Leonardo falou, sorrindo também, mas de um jeito mais... esquisito.

— Se for pra dançar com a Emilinha, tô mais que preparado. — Respondi, tentando soar firme, mas minha voz tremia: - E, ó, melhor ocês irem ajeitando umas moças por aí, senão vão tudo ficar morgando nas beirada.

Não sei se o meu tom foi meio fora do tom, mas Leonardo riu, como se minha resposta fosse uma piada. Emilinha, ao meu lado, tocou meu braço e deu um leve apertão, como quem pede calma, mas seus olhos me olhavam sem me enxergar direito, pareciam querer estar em outro lugar.

Durante a noite, dancei com ela todas as músicas, mas a presença do talzinho era como uma pedra no meu sapato. Cheguei a trupicar mesmo! Ele e seus amigos dançaram com outras moças e bem que ele tentou dançar com a minha, mas não deixei. Ela chegou a dizer que eu tava de cricagem e acho que tava mesmo! Ele contava histórias que faziam a praça inteira rir, mas seus olhos, vez ou outra, cruzavam com os de Emilinha. E ela, para meu desespero, retribuía com um olhar que eu não sabia decifrar.

Resolvi que naquela noite, depois do forró, seria a noite da verdade. Não podia mais viver com aquela dúvida me gasturando. Depois da quadrilha, quando a fogueira já estava baixa e o povo começava a se dispersar, puxei Emilinha para um canto, perto da igrejinha, onde as sombras nos escondiam dos olhares curiosos:

— Emilinha, eu quero falar cocê e tem que ser já! — Comecei, com a voz rouca de emoção: — Eu... Eu preciso saber... Tu e o talzinho... é... é... digo, o Léo... tem algo entre vocês?

Ela que me olhava curiosa, arregalou ainda mais aqueles olhões para mim, chegando a abrir um pouco a boca, mas sem dizer nadica de nada:

- Não minta pra mim, por favor. Eu vejo o jeito que ele te olha, o jeito que você olha para ele, como ocê ri das coisa que ele fala... Eu tô ficando louco, Emilinha. Fala, fala pra mim!

Ela seguia me encarando com os olhos arregalados, como se eu tivesse jogado uma pedra no meio do rio calmo que era sua vidinha. Por um instante, pensei que ela fosse rir, dizer que eu era bobo, que via coisas onde não havia. Mas ela não riu. Seus olhos baixaram e suas mãos, que seguravam as minhas, tremeram levemente:

— Paulinho... — Começou ela, a voz tão baixa que mal ouvi: — Tu é importante demais da conta pra mim. Sempre foi. Mas...

Nu! Essa palavra não... Esse “mas” caiu sobre mim com o peso de uma marreta grandona que o Seu Ciro guardava lá na tulha de casa. Meu coração parou e o ar pareceu fugir dos meus pulmões:

— Mas o quê, Emilinha? – Perguntei numa voz apertada, quase como um gemido de dor: - Fala logo, pelo amor de Deus!

Ela hesitou, os olhos brilhando com lágrimas que não caíam:

— O Léo... ele é diferente. Ele fala de coisas que eu nunca vi, de um mundo que eu só imagino. Não é que eu não goste de tu, Paulinho, mas às vezes eu penso... e se eu estiver perdendo algo? E se o mundo lá fora for mais do que Passa-Vinte pode me dar?

Suas palavras foram como um soco. Não era uma confissão de traição, de um beijo, de uma noite mais íntima num canto qualquer de sua casa, mas era quase pior: era a confissão de uma dúvida, de um desejo que eu, com meus pés fincados na terra de Passa-Vinte, talvez nunca pudesse satisfazer:

— Então tu tá dizendo que gosta dele? — Perguntei, com a voz embargada: — Que ele é melhor que eu?

— Não, Paulinho, não é isso! — Ela segurou minhas mãos, com força, como se quisesse me impedir de fugir, ou talvez para ela mesma se firmar: — Eu não sei o que sinto. O Léo é meu primo, mas ele... ele me faz pensar, me faz querer mais. Só que às vezes eu...

Ela se calou sem coragem de terminar o que havia começado e desviou o olhar de mim, encabulada que só. Eu quis gritar, quis chorar, quis correr até o talzinho e reformar o sorriso dele no tapa. Mas fiquei parado, olhando para a Emilinha, tentando entender se ela era minha ou se já pertencia a um sonho em que eu já não fazia mais parte. Nossa prosa morreu ali. Ninguém tinha mais assunto, nem pergunta, nem resposta. Eu a levei até a casa dela e não ganhei um beijinho sequer, só um abraço que mais me pareceu de ato de despedida.

Os dias seguintes foram um martírio. Emilinha tentou agir como se nada tivesse mudado, mas eu via a diferença em cada gesto, em cada palavra. Leonardo e os amigos ficaram mais alguns dias em Passa-Vinte, soube até uma história meio enviesada entre um deles, o tal do Felipe, e a Isaurinha da Dona Tonica. Diziam que eles tinham sido pego tomando banho no rio, pelados, os dois. Se era verdade, eu não sei, porque não vi, mas o povo todo comentou e a Isaurinha não saiu de casa mais. Sumiu.

Eu evitava o talzinho como se ele fosse a própria peste. Mas a dúvida, essa sim, era minha companheira constante. E a Emilinha, a única que poderia me acalmar o coração, era quem mais me deixava perdido. Será que ela havia cedido a ele? Será que, nas conversas na varanda, nos momentos em que eu não estava, algo mais havia acontecido? Ou seria tudo apenas o reflexo da minha insegurança, como meu pai sugerira?

Resolvi buscar conselhos onde sempre encontrava respostas: na venda do Seu Zé Formoso com o meu pai. Lá, entre uma pinga, um guaraná e uma moda de viola, meu pai ouviu meu desabafo com sua costumeira ironia matuta:

— Paulinho, tu tá parecendo galinha que perdeu o ninho. — Disse ele, limpando a boca com as costas da mão: — Se a Emilinha tá com dúvida, isso é problema dela, não teu. Mostra quem tu é, menino. Firma o pé e cobra tenência dela. Se ela não te enxergar, se não te entender, é porque não te merece.

— Mas e se ela já... — Hesitei, incapaz de dizer a palavra “traição”: — E se ela já olhou pra outro?

Meu pai me olhou, com aqueles olhos que pareciam enxergar o fundo do tal rio que é os mistérios de uma mulher:

— Teu medo é outro, Paulinho, que eu sei. E se for esse o caso, se tiver acontecido, tu vai ter que decidir: Ou tu luta por ela, ou tu deixa ela ir. Mas ficar se matando por um “e se” é coisa de menino, não de homem, não do homem que Ciro Sandoval Silva tá criando! – Disse e bateu um copo na mesa.

As palavras dele ecoaram em mim, mas não trouxeram paz. Só que trouxeram clareza... Resolvi, então, fazer algo que nunca havia pensado que faria: confrontar o talzinho. Fui até a casa do Seu Zé Maria e encontrei somente a Dona Clara que, quando soube por quem eu perguntava, arregalou levemente os olhos e me puxou para dentro:

- Que ocê quer com o Léo, Paulinho?

- Proseá! Preciso colocar uns trem às claras.

- Paulinhooooo...

- Tem nada demais não, Dona Clara. É só uma prosa mesmo, entre dois homens adultos...

Ela balançou a cabeça negativamente com um olhar que era pura gastura. Ali vi que tinha coisa escondida mesmo. Ela me serviu um café e um bolo de fubá que, para não fazer desfeita, bebi e comi. E tava bão demais... Conversamos sobre o futuro, ela me falou de como a Emilinha gostava de mim e eu ouvi tudo, mas falei quase nada. Depois de um tempo, ela me mandou para casa. Fingi que fui e não fui. Voltei a caçar o talzinho como se fosse o Lampião, meu cachorro caramelo que na verdade era preto e peludo. Fui encontrar o tal na roça do Seu Zé Maria, ajudando a carregar uns sacos de milho. Os amigos dele estavam embaixo de uma sombra, vermelhos como se tivessem sido fritados no óleo fervente, se abanando como se o ar estivesse fugindo deles. Seu Zé Maria foi o primeiro a me ver e eu o cumprimentei com o nosso “Bão!?”, mas ele notou que “bão” era o que menos parecia estar. Tentou conversar comigo, mas logo o talzinho se aproximou, com aquele sorriso que eu tanto odiava:

— E aí, Paulinho? Tá com cara de quem comeu e não gostou...

Seu Zé Maria o encarou e parece não ter gostado do tom, mas antes que dissesse algo, eu me adiantei:

- Tô precisando prosear cocê.

- Prosear... Conversar, é isso? — Disse ele, limpando o suor da testa.

— Isso! Quero sim... — Respondi, com a voz firme pela primeira vez em dias.

— Que que tá acontecendo aqui cocêis? – Perguntou seu Zé Maria: - Cês não tão pensando em fazer besteira não, né?

- Ara, Seu Zé, claro que não! – Bufei sem querer com ele: - Desculpa. Eu só tô precisando trocar um dedinhos de prosa com o moço aí.

- Vê lá, hein!? Vê lá, Seu Paulinho... – Advertiu meu quase futuro ou talvez ex sogro.

Eu e o talzinho fomos andando até perto de um tulha onde o Seu Zé guardava as sacas de milho e já fui mostrando o que eu viera fazer ali:

— O que tu quer com a Emilinha, Leonardo? Fala a verdade. Tu tá de olho nela, não tá? Ou só tá querendo mangá dela, ou de mim, não sei?...

Ele riu, mas não era uma risada de deboche. Era algo meio estranho, meio triste, meio cansado:

— Paulinho, tu tá vendo coisa onde não tem. A Emilinha é só minha prima, da minha família, cara! Eu gosto dela, claro, mas não do jeito que tu tá pensando. Ela é especial, e eu só quero que ela seja feliz. Se tu acha que eu sou uma ameaça, é porque tu não confia nela. E se não confia, talvez o problema não seja eu...

Suas palavras me desarmaram. Por um instante, quis acreditar nele. Mas então lembrei dos olhares, das risadas, do “senão” de Emilinha, daquele maldito “mas”. E a dúvida voltou, mais forte que nunca. Saí da roça com as palavras dele ecoando na cabeça, como um sino que não para de tocar. Ele falava com uma calma que me irritava, como se soubesse algo que eu não sabia.

Os dias após minha conversa com Leonardo arrastaram-se como um carro de boi em dia de chuva, cada passo, já lento e pesado, agora carregava uma sujeira na alma. As últimas palavras dele, “Se tu acha que eu sou uma ameaça, é porque tu não confia nela. E se não confia, talvez o problema não seja eu...”, ainda ecoavam em minha mente, mas em vez de apaziguar, acendiam brasas. Confiar!? Como, se cada sorriso dela, agora melancólico, e mesmo o seu silêncio, parecia feito para esconder um mistério que me comia vivo por dentro? Verdade é que o ciúme, esse bicho traiçoeiro, havia feito morada em meu peito, e crescia forte e robusto, prestes a se transformar em um mostro que eu temia, poderia engolir a todos nós.

Resolvi que precisava vê-la, olhar nos olhos dela e arrancar a verdade, ou pelo menos uma sombra que me guiasse. Era uma noite de julho, clara e estranhamente quente por estarmos no inverno, uma lua cheia pendia no céu limpo como uma lanterna divina, lançando sobre Passa-Vinte um brilho prateado que tornava tudo ao mesmo tempo nítido e enganador. As estrelas, testemunhas silenciosas da minha sina, pareciam procurar respostas para me contar, mas mesmo elas lá de cima, se frustravam.

Fui até a casa de Emilinha, com o pretexto de convidá-la para um passeio qualquer, talvez só tomar uma tubaína na venda do Seu Zé Formoso, mas, na verdade, eu estava movido por uma inquietação que me roía como cupim em madeira velha. Ao me aproximar da casa dela, vi a varanda mergulhada na penumbra. As luminárias, em formato de lamparinas, que costumavam batalhar para derrotar a escuridão, estavam apagadas. A única luz vinha da lua, que desenhava contornos fantasmagóricos nos objetos. Foi então que os vi em uma cena que congelou meu sangue e fez meu coração palpitar...

Pisquei os olhos duas, três vezes, mas não havia dúvidas, Emilinha e Leonardo estavam lá, na varanda, envoltos nas sombras que brigavam com a luz prateada para ocultar o casal. E era um casal sim senhor! Não eram duas pessoas uma do lado da outra, era um casal no braço um do outro! Ele a pressionava contra a mureta de proteção, os braços envolvendo-a com uma intimidade que não era de primo, mas coisa de gente homem, que queria algo mais, algo íntimos, mais proibido. Seus rostos estavam tão próximos que, por um instante, sob a guerra traiçoeira entre a luz e a escuridão, vi que se beijavam. Ou talvez não, porque, da distância onde eu estava, mais a miséria de claridade que entrava na varanda, poderia ser apenas um enganamento meu.

Eu me escondi atrás de uma árvore, o coração batendo tão alto que temi que eles ouvissem. A varanda, silenciosa, parecia um palco onde se encenava minha desgraça. Leonardo sussurrava algo no ouvido da Emilinha que, com a cabeça inclinada e apoiada em seu peito, parecia ouvi-lo com uma atenção que nunca me dera. Ou seria apenas minha mente, envenenada pelo ciúme, transformando um abraço de família em traição? A lua, como uma testemunha indiferente, iluminava apenas o suficiente para alimentar a dúvida, escondendo a verdade nas sombras da maldade que existe em cada coração. Cada movimento deles, eu vi: o toque de uma mão, o contato de um rosto, um sorriso de satisfação. Ara! Aquilo era como um punhal sendo girado no meu peito. E então, como se sentissem minha presença, eles se separaram, e Leonardo rapidamente entrou na casa, falando alto como se conversasse com alguém, deixando apenas a Emilinha ali, olhando para o céu com uma expressão que eu não decifrava.

Não me anunciei. Não podia. Minhas pernas tremiam, e minha voz, se eu a encontrasse, seria apenas um grito de raiva ou desespero. Voltei para casa, tropeçando nos próprios pés, a lembrança daquela imagem na varanda queimando em minha mente. Eles se beijaram mesmo? O abraço foi mais que um abraço? Como diria a Joelma, cheia de seus rebolados e quebradas de pescoço, “a lua me traiu” com sua luz fria, ou seria eu mesmo que, com meu ciúme, traía a mim mesmo? Deitei-me na cama, mas o sono não veio. Em vez disso, vinham as imagens: o corpo de Emilinha contra a mureta, os braços de Leonardo, os braços dela, as bocas tão próximas, o beijo que podia não ter sido um beijo. E, pior, o silêncio. O silêncio da varanda, o silêncio da Emilinha, o silêncio do meu próprio coração, que não sabia mais no que acreditar.

OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO SÃO FICTÍCIOS, E OS FATOS MENCIONADOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL SÃO MERA COINCIDÊNCIA.

FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DOS AUTORES, SOB AS PENAS DA LEI.

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Foto de perfil de Mark da NandaMark da NandaContos: 292Seguidores: 681Seguindo: 26Mensagem Apenas alguém fascinado pela arte literária e apaixonado pela vida, suas possibilidades e surpresas. Liberal ou não, seja bem vindo. Comentários? Tragam! Mas o respeito deverá pautar sempre a conduta de todos, leitores, autores, comentaristas e visitantes. Forte abraço.

Comentários

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Uh, que angustia pelo nosso Paulinho. Esse conto está me deixando bem imerso em toda a atmosfera do interior de minas, muito bom isso.

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