O acidente que mudou a minha vida - Cap. 5

Um conto erótico de Pedro
Categoria: Gay
Contém 4550 palavras
Data: 19/07/2025 00:43:55
Assuntos: Bissexual, Casado, dúvida, Gay

Acordei cedo, antes do despertador. Dormi bem, surpreendentemente bem, considerando tudo que tinha vivido nas últimas vinte e quatro horas. O corpo descansado, a cabeça... quase.

Lembrei da noite anterior enquanto calçava o chinelo. O riso leve, a conversa que não parecia ter fim, o toque na barba, o abraço que carregava mais do que palavras. Sorri. Por dentro, mais do que por fora. Mas, como sempre, a aflição vinha logo depois. Era inevitável. Como se o corpo soubesse que aquilo não era só memória — era presente também.

Não precisei correr pro trabalho naquele dia. A primeira reunião seria só às dez. Mesmo assim, não quis ficar deitado à toa. Levantei, lavei o rosto, preparei o café. Enquanto a água fervia, peguei o celular e dei uma olhada rápida nos e-mails. Alguns cronogramas atualizados, mensagens de fornecedores, revisões de pauta para a reunião com os engenheiros.

Era uma rotina.

Pelo menos uma vez ao mês, os responsáveis por cada obra se reuniam comigo, André e Paulo — os três diretores da empresa. Era o nosso encontro presencial obrigatório, mesmo que todos enviassem relatórios semanais. A gente gostava de ouvir as coisas da boca de cada um, olhar no olho, entender os detalhes que email nenhum consegue explicar.

Obras espalhadas pela Bahia inteira. Sete engenheiros em campo no total. Equipes grandes, problemas grandes.

Com o café pronto, preparei os lanches das crianças. Dois sanduíches, frutas cortadas, um suco pra cada um. Deixei tudo separado. Também montei o da minha esposa — ela ainda dormia. Gostava de deixá-la encontrar a garrafinha térmica e o pão fresco quando levantava. Era meu jeito de estar presente, mesmo nos dias em que a cabeça estava longe.

Vesti uma roupa leve. Ainda não tinha decidido se correria mais tarde, ou se aquela manhã merecia pausa. Talvez o silêncio já fosse exercício o bastante.

Olhei mais uma vez pro celular.

Nenhuma mensagem.

Suspirei.

E segui a manhã como se tudo estivesse exatamente no lugar onde deveria estar.

As horas passaram devagar, mas sem peso.

Por volta das oito, minha esposa acordou.

Trocamos um bom dia calmo, com o toque leve de quem já sabe a rotina um do outro de cor.

Ela já estava atrasada pra levar as crianças pra escola — mas nem reclamou.

Gostava daquela rotina.

Dizia que era o único momento do dia em que podia ver a cidade antes de todo o caos que ela se tornava no decorrer do dia.

Levava os meninos, passava no mercado, resolvia alguma coisa ou outra e voltava pra casa.

Sempre foi assim. E foi uma escolha nossa.

Nos conhecemos no trabalho, anos atrás.

Ela era técnica em segurança do trabalho.

Longa história, muitos desdobramentos...

Mas, no fim, foi uma decisão conjunta: ela queria se dedicar à casa e aos meninos enquanto eles ainda eram pequenos.

Nunca gostou da ideia de babá, muito menos de deixar com familiares.

Preferia ela mesma cuidar de tudo — e eu sempre respeitei isso.

Naquela manhã, saiu com as crianças primeiro que eu.

Beijou minha testa na despedida, e partiu.

Fiquei ali mais uns minutos, depois fui tomar banho.

Procedimento completo: barba, escovar os dentes, desodorante, perfume discreto.

Vesti uma calça escura, sapato fechado, e uma camisa social cinza com o logo da empresa bordado no peito.

Peguei a mochila, o notebook, desliguei as luzes da casa e desci em direção à garagem.

O céu estava nublado.

Ameaçava chover.

No carro, tocava algum MPB aleatório no rádio.

Um toque suave, uma voz conhecida.

O tipo de trilha sonora que não exige atenção — mas preenche o fundo do pensamento.

A cada pequena pausa no trânsito, minha mente escapava.

Voltava pro domingo.

Pro toque.

Pro riso.

Pro mar.

Pra barba acariciada.

Para aquela confusão boa que ainda estava inteira dentro de mim.

Em um desses sinais fechados, parei.

Peguei o celular.

Abri a conversa com Daniel.

“Bom dia. Boa semana pra você.”

“Espero que o dia esteja mais leve hoje.”

Enviei.

Bloqueei a tela.

Voltei a encarar o trânsito.

Faltavam menos de cinco minutos pro escritório.

Mas já fazia horas que meu dia tinha começado — dentro da cabeça.

Estacionei o carro na garagem do prédio pouco depois das nove.

O céu ainda ameaçava chuva, mas a manhã seguia firme, abafada.

Subi pelo elevador observando o próprio reflexo no aço escovado das portas.

O rosto tranquilo, a camisa bem passada, o logo da empresa no peito.

Por fora, tudo no lugar.

Cumprimentei a recepcionista logo na entrada com um sorriso:

— Bom dia, Lu. Como foi o fim de semana?

— Tranquilo demais, senhor Pedro. O senhor parece bem disposto hoje, hein.

— Tô treinando pra parecer — respondi, rindo de leve.

Fui seguindo pelos corredores.

Falei com o pessoal do RH, com dois estagiários que cruzaram comigo no hall, cumprimentei o segurança da copa. Era automático. Mas não era falso.

Sempre fui assim.

Nunca levei problema pessoal pro trabalho.

Nunca levantei a voz com ninguém.

Nunca precisei ser duro pra ser ouvido.

As pessoas respeitavam — e isso era tudo pra mim.

Aquela era a parte do mundo que eu sabia como controlar.

Cheguei à minha sala.

Coloquei a mochila sobre a mesa, tirei o notebook, organizei os papéis que tinha trazido.

Mas não me sentei de imediato.

Saí. Fui até a copa.

Peguei um copo d’água, brinquei com a equipe de serviços, troquei uma piada com o pessoal da manutenção.

Pedi um café fresco.

De volta à mesa, com o café esfriando ao lado do notebook, o celular vibrou novamente.

Daniel.

“Fiquei feliz com sua mensagem hoje de manhã.”

“Me pegou num momento meio corrido, mas bom demais ver que você lembrou.”

“Tô aqui no escritório agora, tentando me concentrar… mas confesso que ainda pensando um pouco em ontem.”

Li devagar. Como se a tela carregasse mais calor do que um celular deveria ter.

Demorei alguns segundos, depois respondi.

“Imagino a correria aí.”

“Também ando tentando focar por aqui, mas a cabeça ainda tá cheia das conversas de ontem.”

“Acho que foi tudo mais intenso do que pareceu na hora.”

Apertei enviar.

Fiquei olhando para a tela, como quem espera que ela devolva mais do que só uma notificação.

Mas logo o celular vibrou de novo.

“É isso mesmo...”

“Foi diferente.”

“Não sei se a gente se encontrou ou se a gente se reconheceu, sabe?”

“Enfim. Tô aqui, tentando digerir tudo com calma. Mas não vou mentir: deu vontade de te ver de novo.”

Apertei o aparelho entre os dedos.

A respiração ficou mais curta.

Olhei em volta. Tudo normal.

A empresa funcionando como sempre. Mas dentro de mim, outra coisa acontecia.

Respondi:

“A vontade é mútua.”

“Mas... vamos com calma. Não sei muito bem como lidar com tudo ainda.”

“Só sei que, sim. Ontem foi diferente.”

Enviei.

Bloqueei a tela.

Respirei fundo.

E antes mesmo de tocar no teclado do notebook novamente, sabia: o dia já não seria mais o mesmo.

O celular vibrou de novo.

“Desculpa.”

“Não quis te deixar desconfortável.”

“Às vezes falo mais do que devia, sem pensar muito.”

“Não quero ser chato. Nem parecer que tô forçando nada.”

Parei.

Li devagar.

Relendo as palavras mais pelo tom do que pelo conteúdo.

Suspirei.

Talvez eu tivesse sido duro.

Ou pelo menos, frio demais na resposta.

Respondi.

“Ei, não foi isso.”

“Desculpa.”

“Não quis soar grosseiro... é que tudo isso ainda é novo pra mim.

De verdade.”

“Eu tô assustado. Não sei o que tô sentindo. Ainda não sei dar nome.”

A resposta veio rápido.

“Eu entendo.”

“De verdade.”

“Acho que eu também não sei o que tô sentindo.”

“Tá tudo meio confuso... muita coisa aconteceu muito rápido.”

“Mas eu gostei da nossa conversa. Da sua companhia.”

“E sim... fiquei com vontade de te ver de novo.”

“Se fosse por mim, chamava pra sair hoje ainda.”

“Porque ontem foi bom. De um jeito que faz falta logo depois.”

As palavras tocaram como se tivessem som.

E som de verdade, não notificação de celular.

Era como se ele tivesse falado do meu lado.

Fiquei olhando pro aparelho, o polegar ainda sobre a tela.

E naquele instante, percebi que não fazia ideia de quanto tempo tinha se passado desde que abri a primeira mensagem.

O café já estava frio.

O notebook, em modo de descanso.

E eu... ali.

Preso em três ou quatro frases que mudavam o rumo de um dia inteiro.

Respirei fundo.

No fundo, eu sabia.

Sabia que, mesmo com toda aquela confusão dentro de mim...

eu também queria sair de novo.

Era estranho admitir isso pra mim mesmo.

Mas era verdade.

Gostava daquela sensação de algo novo.

Da leveza da conversa.

Da maneira como o tempo parecia desacelerar quando estávamos juntos.

Mas também não queria parecer emocionado.

Não queria dar a impressão de que estava atropelando tudo, pulando etapas, correndo sem olhar.

Então respirei mais uma vez.

E digitei.

“Sendo sincero com você… eu também sairia hoje de novo contigo.”

“Quero entender tudo isso que tô sentindo.”

“E gostei demais da sua companhia.”

“Pra ser sincero, fazia tempo que eu não me sentia tão bem assim na presença de alguém.”

Enviei.

E imediatamente me perguntei se não tinha ido longe demais.

Se devia ter esperado.

Se devia ter guardado.

Mas a resposta veio pouco depois.

Sem vírgulas demais. Sem floreios.

“Então por que não?”

“Depois do trabalho.”

“A gente se encontra no Outback.”

“Sem bebida alcoólica, prometo.”

“Imagino que esteja de carro. Eu também.”

“A gente toma um chá gelado e conversa mais.”

Sorri.

Mas antes que pudesse sequer digitar uma resposta, ouvi três batidas leves na porta da minha sala.

Era a voz da Lu, firme, educada:

— Seu Pedro... os “meninos” já chegaram. Todo mundo na sala de reunião.

Olhei para o canto da tela.

10h05.

Nem percebi o tempo passar.

— Obrigado, Lu — falei, ainda com o celular na mão.

Ela sorriu e se afastou pelo corredor.

Coloquei o aparelho sobre a mesa, com a tela virada pra baixo.

Não respondi a mensagem naquele instante.

Peguei o notebook, conferi se estava carregado e segui em direção à sala de reuniões.

Ao abrir a porta, a cena já era conhecida:

Paulo e André sentados próximos ao centro da mesa longa, conversando baixo.

Ricardo e Fernando rindo de alguma piada interna.

E a equipe de engenharia posicionados em volta, alguns com pastas, outros com notebooks abertos.

Foi Paulo quem me viu primeiro e lançou a provocação:

— Ué, Pedro... você, atrasado? Hoje vai chover.

Geralmente é você quem chega primeiro e limpa essa sala pra receber a gente!

Risos leves preencheram o ambiente.

— Me passei aqui revisando umas planilhas — respondi, já sorrindo. — Nem vi a hora.

E fui cumprimentando um por um.

Aperto de mão firme com Marcelo.

Um abraço rápido em Carla, que comentou sobre o trânsito infernal.

Toquei no ombro de Juliana, cumprimentei Beatriz, que estava com os óculos tortos como sempre.

Renata veio com aquele sorriso tímido, mas receptivo.

Tiago falou sobre um novo orçamento que precisava de liberação.

Eduardo brincou sobre a planilha que eu disse estar lendo — “Devia estar boa demais pra te prender, hein!”

Abracei Ricardo.

Bati nas costas de Fernando, que já me ofereceu café antes de qualquer palavra.

E por fim, sentei em uma das cadeiras vazias, deixando o notebook sobre a mesa.

A reunião estava prestes a começar.

Mas minha cabeça...

ainda estava a uma notificação de distância do Outback.

A reunião durou pouco mais de uma hora.

Foi o tempo necessário pra ouvir tudo o que precisava ser dito.

Falaram sobre as obras em andamento — reformas de praças públicas, requalificação de colégios, projetos residenciais em bairros nobres e também algumas obras viabilizadas por licitações de prefeituras do interior.

Cada engenheiro apresentou os dados mais recentes: prazos de entrega, avanços, gargalos, pontos de atenção.

Surgiram demandas por mais material, reforço de equipe, contratação de mão de obra extra, necessidade de novos EPIs, atraso no recebimento de alguns insumos.

Tudo anotado, debatido, encaminhado.

O clima da reunião foi bom.

Sério, como deveria ser — mas sem tensão.

Todo mundo ali sabia o que fazia.

Ao final, os diretores agradeceram o empenho de cada um.

E eu, como de costume, completei com algo simples, mas sincero:

— Obrigado pelo comprometimento de vocês. De verdade.

Houve aquele murmúrio de encerramento — cadeiras sendo empurradas, vozes se cruzando, alguns comentários paralelos sobre o tempo e o café da máquina que nunca melhora.

E, aos poucos, a sala foi esvaziando.

Mais uma reunião concluída.

Mais um mês em movimento.

Voltei pra minha sala com o notebook debaixo do braço.

Coloquei sobre a mesa, empurrei a cadeira e me sentei devagar.

Inclinei o encosto pra trás, fechei os olhos por alguns segundos e respirei fundo.

Nem tinha pego o celular ainda.

Só queria um instante de silêncio — ou pelo menos algo que parecesse isso.

Poucos minutos depois, três batidas leves na porta.

— Posso? — Beatriz entrou com a cabeça meio inclinada.

— Claro — respondi, erguendo o tronco na cadeira.

Ela entrou, fechou a porta devagar.

— Desculpa te incomodar, eu não quis levantar isso na reunião, mas... deixa eu falar com você rapidinho.

Assenti com o queixo.

— Fala.

— É sobre o pessoal do RH. Mais especificamente o menino que tá responsável pelos funcionários de campo. Ele tá... complicado.

— Complicado como?

— Eu tô tendo dificuldade com ele pra fechar a alimentação da equipe nas obras. Já conversei algumas vezes, deixei margem pra ele se organizar, expliquei os prazos, os pedidos, a rotina… mas ele não consegue acompanhar. Tá dando dor de cabeça toda semana. E a equipe depende disso. A comida precisa estar no lugar e na hora certa. Não tem como errar nisso.

Ela falava firme, mas com respeito.

Beatriz era direta, e por isso mesmo eu confiava.

— Você já conversou com ele direito?

— Já. Três vezes. Duas por e-mail, uma pessoalmente. E sempre a mesma coisa: desculpa, justificativa, promessa… e nada muda.

Suspirei.

Cruzei os braços sobre a barriga e olhei pra tela do notebook ainda escura.

— Se não tá funcionando, Beatriz, não tem por que insistir. Vê com a encarregado do RH como a gente pode substituir. Analisa o contrato dele, e, se for o caso, segue com o desligamento.

— Posso seguir com isso, então?

— Pode. Mas documenta tudo. Tudo que ele deixou de cumprir, os alertas que você deu. Isso precisa estar alinhado pra não ter problema depois.

— Fechado. Obrigada — ela disse, já se levantando.

Abri um sorriso rápido.

— E desculpa por trazer isso agora.

— Tá tudo certo. Melhor resolver enquanto é pequeno.

Ela assentiu, abriu a porta, saiu.

Menos de um minuto depois, antes que eu pudesse abrir o e-mail, Ricardo e Fernando entraram na sala sem bater.

— Ei! — falei, erguendo a mão como se pudesse pará-los. — A porra da porta foi abolida agora?

— A gente tem acesso vitalício, esqueceu? — Fernando respondeu, já puxando uma cadeira.

Ricardo encostou na parede, com aquele sorriso de canto.

— Você sabe que a Beatriz é louca por você, né?

Revirei os olhos.

— Ah, pronto...

— Tô falando sério. O jeito que ela fala contigo é outro. Olha o cuidado...

— Para de ser otário — cortei. — Para de ver coisa onde não tem.

— Mas ela é casada... — Ricardo completou, no mesmo tom.

— E isso impede alguma coisa hoje em dia?

Ficaram os dois me encarando, como quem joga a provocação e aguarda a faísca.

Não respondi.

Apenas encostei de novo na cadeira e olhei pro teto por um instante.

Porque, por mais absurdo que fosse...

aquilo me fez pensar.

Mas não sobre Beatriz.

Sobre mim.

Sobre tudo o que eu estava vivendo.

Sobre o que significava o desejo, o impulso, o limite.

E o quanto tudo, ultimamente, estava fora do lugar.

Aproveitei o embalo dos dois na minha sala e falei:

— Aproveitando que vocês dois estão aqui... deixa eu adiantar um ponto.

Os dois me olharam ao mesmo tempo, já com cara de quem esperava bronca.

— Provavelmente vamos iniciar uma obra em Sergipe. Interior. Tá em negociação ainda, mas parece que vai sair.

E, se tudo for confirmado, vou precisar que vocês dois façam uma vistoria técnica lá.

Fernando já fez uma careta.

— Nós dois?

— Tô sendo legal — respondi, com um sorriso. — Mandar os dois é luxo. O certo era mandar só um.

Mas pelo menos vão conversando na estrada e não se perdem no caminho.

Ricardo riu, já se encostando na cadeira.

— Ah, ótimo. Um road trip com Fernando ouvindo arrocha.

— É educativo — Fernando rebateu.

— A ideia é sair cedo, fazer a vistoria, anotar tudo direitinho. Conferir as medidas, fotografar, avaliar o terreno, identificar qualquer adequação fora do previsto. Tudo.

E voltar no mesmo dia.

— É sério isso? — Fernando perguntou, franzindo a testa.

— Sério. Mas calma, ainda não tem data. Só tô adiantando pra vocês se prepararem.

Eles assentiram, mas não sem fazer cara de poucos amigos.

— E por hoje? — Ricardo perguntou.

— Hoje, preciso que um de vocês vá na obra da revitalização da fachada lá no bairro da Federação. Quero uma olhada mais técnica sobre os detalhes que mudaram no projeto.

— E o outro?

— Reunião em Lauro de Freitas. Cliente novo. Possível contrato pra expansão de uma escola particular. A reunião é às três da tarde.

Os dois se olharam, tentando decidir quem pegava o quê.

Já era rotina. Um bom e velho “par ou ímpar” definiria tudo no corredor.

Eu sorri e voltei a encostar na cadeira.

Ali, por alguns minutos, tudo parecia simples.

Fiquei olhando pra eles.

Dois adultos completamente responsáveis, competentes, focados…

e, ao mesmo tempo, dois meninos disfarçados.

Rindo, discutindo pra ver quem pegava qual tarefa, como se fosse aposta de recreio.

Sorri sozinho.

A verdade é que eu gostava de tê-los por perto.

Gostava da amizade dos dois.

Da forma como se tratavam.

Da leveza que traziam pro ambiente, mesmo nas semanas mais tensas.

Nunca me deram dor de cabeça.

Nunca faltaram com profissionalismo.

E talvez eu não dissesse isso com frequência.

Então falei:

— Obrigado pelo trabalho que vocês fazem, tá?

— De verdade. Eu admiro muito.

Os dois me olharam, meio sem saber se eu tava brincando ou falando sério.

Mas não disseram nada. Só assentiram.

E antes que virasse conversa sentimental, completei:

— Agora, saiam da minha sala. Preciso trabalhar.

Eles riram, já se levantando.

— Vai lá, chefia. Mas vê se almoça hoje, viu? — disse Ricardo, saindo primeiro.

Fernando bateu no batente da porta com a mão e completou:

— Qualquer coisa, grita. A gente escuta da outra sala.

E saíram, como sempre: falando alto e rindo baixo.

Fernando e Ricardo sabiam que eu ia sair pra tomar uma cerveja com o Daniel. Eles só não sabiam onde ou quando. E naquele instante, preferi não falar nada. Com certeza fariam alguma brincadeira, daquele jeito deles, e tirariam tudo do contexto — não por mal, mas... naquele momento eu não tava afim. Nem com cabeça pra lidar com isso.

Fiquei ali por alguns segundos, com a porta ainda aberta, sentindo o silêncio voltar.

Mas, dessa vez, era um silêncio bom.

Com a sala silenciosa de novo, respirei fundo e peguei o celular.

A tela ainda exibia a última mensagem de Daniel:

“A gente toma um chá gelado e conversa um pouco mais.”

Toquei na conversa, senti o peso leve de aceitar algo que eu já sabia que queria.

Mas que, até então, ainda não tinha coragem de assumir nem pra mim mesmo.

Escrevi devagar:

“Desculpa a demora pra responder.”

“Acabei entrando numa reunião.”

Parei por um segundo, olhando a tela como quem pesa cada palavra.

E então, deixei vir:

“Sim.”

“É uma boa ideia.”

“Vamos no Outback.”

“Eu aceito seu convite.”

“Saio daqui mais ou menos umas 17h.”

Enviei.

E mesmo antes de ele responder, algo em mim se aquietou por dentro.

Como se o simples ato de dizer "sim"...

já fosse, por si só, um alívio.

O celular vibrou quase imediatamente depois da minha última mensagem.

Daniel:

“Tudo bem!”

“Às dez e meia entrei numa audiência e só acabou agora há pouco.”

“Foi favorável pro cliente, tô feliz.”

“Então tá combinado: 17h30, 17h40 no Outback.”

“Por sinal, qual Outback? Pode ser o do Shopping da Bahia?”

Li a mensagem, ainda com o polegar sobre a tela.

Sorri.

Shopping da Bahia.

Claro que podia ser lá. Era perto, fácil, discreto.

Tudo certo.

Comecei a digitar:

“Pode ser, sim. Te encontro lá.”

Enviei.

E por um instante, fiquei ali...

sorrindo sozinho com o celular na mão.

Era um sorriso pequeno.

Contido.

Mas sincero.

E, pra ser honesto, eu nem percebi que estava sorrindo.

Foi só quando relaxei o rosto que percebi o quanto estava leve.

E era sempre assim desde o ocorrido.

Momentos de leveza.

Momentos de tensão.

Uma oscilação que vinha e voltava como maré.

No fundo, eu ainda não entendia como tudo aquilo tinha se desenhado.

Um acidente leve.

Uma batida simples

Uma porta arranhada.

Um homem desconhecido que desce do carro e encontra um motoqueiro em choque.

Uma conversa casual.

E depois… tudo muda.

Que chance havia disso?

De um acidente se transformar em conexão.

De uma colisão de lata se transformar em um convite pra cerveja ou chá gelado, no caso.

De conhecer alguém no trânsito… e esse alguém gostar de mim… e eu, dele.

Tão rápido.

Tão natural.

Parecia absurdo demais.

Ou era só a vida se ajeitando onde eu não sabia mais mexer?

Inclinei o corpo pra trás, encostei na cadeira.

Deixei os braços caírem sobre os apoios.

E respirei fundo.

Fiquei assim.

Quieto.

Com os olhos presos no teto e a cabeça girando devagar, como quem vê o mundo inteiro mudar por dentro... sem que nada pareça ter mudado por fora.

Voltei o foco pro trabalho.

Respondi mais alguns e-mails, recebi dois ou três funcionários que sempre têm alguma coisa pra tratar direto comigo — dúvidas sobre relatórios, ajustes em cronogramas, solicitações de material.

Também conversei com Paulo e André sobre outras obras que estavam pra começar, além de um edital que parecia promissor.

Nada urgente. Mas tudo importante.

Na hora do almoço, desci sozinho.

Comi em um restaurante simples ali pelas redondezas do edifício.

Sem pressa, mas sem companhia também.

A tarde seguiu no mesmo ritmo.

Planilhas de gastos, controle financeiro, aprovações de compra, algumas transferências bancárias.

Tudo parte da rotina que, mesmo quando cansa, ainda me faz bem.

Perto das quatro da tarde, Lu bateu na porta da sala avisando:

— Pedro, o pessoal do marketing tá aí pra gravar com você.

Suspirei.

Tinha esquecido completamente.

Eles vinham fazendo esse rodízio de gravações toda semana com os diretores e engenheiros da empresa.

Dessa vez, sobrou pra mim.

Como sempre, fui o último a aceitar.

Fui até a salinha ao lado onde montavam o equipamento.

A social media estava acompanhada do parceiro, o fotógrafo da empresa.

Sugeriram um vídeo curto sobre inspeção de fachadas — cuidados, tecnologias utilizadas, pontos de atenção.

Eu travava nas falas, esquecia termos, gaguejava, ia de engenheiro e diretor a um estudante de engenharia no primeiro dia de aula, era negativamente incrível a tensão que uma iluminação em led e uma câmera apontada pra mim, causavam.

Eles riam, incentivavam, falavam que eu era “engenheiro modelo” e que as postagens comigo, que eram pouquíssimas, sempre rendiam mais.

Aquilo só me deixava mais tímido.

Mas depois de umas quatro ou cinco tentativas… deu certo.

Gravamos em uns vinte minutos, no máximo.

Me despedi, cumprimentei os dois, ainda meio sem graça, e voltei pra sala.

O restante da tarde seguiu normal.

Não troquei novas mensagens com Daniel.

A última tinha sido aquela, marcando o encontro no Outback.

Desde então, o silêncio era confortável.

Como se já estivesse tudo combinado.

Até que, por volta das 16h40, o celular vibrou em cima da mesa.

Peguei sem pressa.

Daniel.

“Tá tudo certo pra logo mais?”

Respondi rápido:

“Sim. Tá tudo certo.”

“Já termino aqui. Quando eu estiver saindo, te aviso.”

Demorou menos de um minuto pra resposta chegar.

“Tranquilo.”

“Não me leva a mal, mas… tô ansioso pra te ver de novo.”

“E desculpa ser tão expressivo assim.”

Fiquei olhando pra tela.

Aquelas palavras…

tinham coragem.

Uma coragem que eu ainda não sabia ter.

Mas, de alguma forma, me fizeram sorrir.

Como se, mesmo sem saber o que fazer com aquilo, parte de mim quisesse ser encontrado ali — nessa simplicidade toda.

As palavras de Daniel ainda acesas ali.

Respirei fundo.

Escrevi uma única palavra.

“Também.”

Enviei.

E sorri.

Pequeno. Curto. Mas real.

Era o máximo que eu conseguia dizer naquele momento.

O máximo que minha confusão permitia.

Porque quanto mais eu tentava entender aquilo… mais eu percebia que talvez não fosse só desejo.

Talvez não fosse só curiosidade.

Tinha algo de amizade também.

De reconhecimento.

De conforto.

E isso...

só tornava tudo mais difícil de nomear.

Desliguei o notebook.

17h05.

O andar já estava mais silencioso.

Alguns setores já vazios, outros com poucas luzes acesas.

A semana mal tinha começado, mas a segunda já parecia longa.

Peguei a mochila.

Guardei o notebook.

Fechei a sala.

E segui pelo corredor até o banheiro.

Ali dentro, abri o estojo que sempre carrego comigo: pasta de dente, escova, um frasco pequeno de enxaguante.

Escovei os dentes com calma, como quem se prepara pra algo que não sabe nomear.

Passei água no rosto.

Enxuguei com a toalha que guardo na mochila.

Depois, um pouco do mesmo perfume da manhã.

Nada marcante — casual, discreto. Familiar.

Olhei pro espelho.

Não sei o que procurei ali.

Mas o reflexo parecia mais calmo do que eu me sentia.

Peguei o celular.

Escrevi:

“Tô saindo agora.”

Assim que eu chegar no shopping, te aviso.

Enviei.

Saí do banheiro.

No caminho até o elevador, fui me despedindo das poucas pessoas que ainda cruzavam o corredor.

Um “boa noite”, um sorriso, um aceno com a cabeça.

Tudo como sempre.

Cheguei ao estacionamento.

Entrei no carro.

Coloquei o cinto.

Dei partida.

No rádio, tocava alguma música leve, dessas que sempre tocam no final de tarde nas estações de Salvador.

O céu já começava a mudar de tom.

E a cidade seguia viva, mas mais lenta.

Fui dirigindo em silêncio.

A cabeça... não.

A cabeça fazia barulho.

O que eu tava fazendo?

Pra onde tudo isso ia?

E, mais uma vez... só o tempo poderia responder.

---

Continua

---

São 00:33 da madrugada deste sábado, 19 de julho. Acabei de corrigir este capítulo e estou publicando para vocês. Faço questão de reforçar o quanto isso tem sido terapêutico para mim.

Acabei pegando uma virose e precisei me afastar do trabalho por pelo menos dois dias — foi quando tive tempo para escrever mais. Como uso uma fonte razoavelmente grande e sempre dou bastante espaçamento, percebi que no Word o arquivo ficou com 56 páginas. Mas, na publicação de hoje, coloquei apenas uma parte disso, para não ficar extenso demais... e também porque estou bem cansado. Sempre releio tudo, vou corrigindo, pontuando, cortando algumas partes.

Agradeço de verdade aos leitores que vêm acompanhando toda essa história. A vocês que comentam com tanto carinho e emoção: eu leio todos os comentários, e o apreço de vocês pela minha narração, pela escrita — e até pela torcida por mim — me conforta de um jeito especial. Confesso que isso me incentiva a continuar escrevendo em toda brecha que encontro. Como eu disse: terapêutico.

Peço desculpas por possíveis erros. Acredito que não demorarei para publicar a continuação, porque ela já está redigida. Só preciso corrigir. Geralmente, vou pensando e escrevendo, relembrando, sentindo e digitando... depois volto para revisar. Mas aí vem a rotina, e complica um pouco.

Mais uma vez, obrigado por lerem!

Forte abraço e até a próxima.

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Comentários

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Parabéns, ótimo conto. Louco pra chegar na hora dos encontros!!!!

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É um conto perfeito, uma linda história de conhecimento do outro, de se conhecer, de respeitar o tempo de cada um. Apenas continue.

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Meio cansativo, gosto de contos detalhados, mas vc é perfeccionista no quesito. Escreve muito bem, mas sendo um conto erótico faz falta essa parte.

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Sempre impecável. Esse ritmo poético, íntimo e profundo é muito impressionante. Você está nos apresentando sentimentos, realidade, descobertas. Mas para quem caminha com a língua afiada para julgar, sua história não seria nada mais do que a história de mais um homem casado que vai trair a esposa, que vai fazer os filhos sofrerem, que é um mau caráter e que o Daniel também é uma pessoa ruim pois não pensou nisso ao se envolver com o homem casado. A forma como você imprime cada emoção nas suas palavras nos coloca dentro de casa cena, nos faz sentir tudo como se estivéssemos assistindo sentados do seu lado tudo que você narra. Parabéns! Ansioso pelos próximos capítulos.

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Linda a história da sua vida, e você narra tão bem. Ansioso para os próximos capítulos...

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Sua história é uma chance para as pessoas perceberem como tudo é possível. As ações acontecem, os sentimentos mudam, a sua forma de narrar, o jeitos que as palavras se encaixam e o charme desse relato. Agradeço muito pela atenção que dá aos seus fãs.

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Cada detalhe importa e é revelador. Ótimo conto.

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Amigo, eu estou mesmo apaixonado por sua história, juro que quando você concluir isso, irei juntar todos os capítulos em um documento e importar pro meu kindle para ler do começo ao fim novamente. Imagino que sua rotina seja puxada mesmo pela forma que narra um pouco da sua vida.

Admiro demais sua narração, todo seu relato porque não é sobre um cara casado querendo comer um cara fora do casamento, seu textos tem identidade, silêncio emocional, rotina, a busca por algo que você está sentindo e não consegue nomear. Você não fala de traição ou de uma vida paralela, você fala sobre despertar, se conhecer, você tem mostrado que é possível e normal alguém se perder dentro da própria estabilidade. Eu acho que você vai trair, vai ceder, mas a minha curiosidade é em como isso irá desenrolar em sua vida.

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