🔴 ⚠ AVISO DE CONTEÚDO SENSÍVEL ⚠
Este capítulo aborda temas delicados, como luto, abuso e violência contra crianças e adolescentes.
Algumas passagens foram propositalmente suavizadas ou omitidas.
A escolha foi feita com o objetivo de respeitar a sensibilidade do leitor, sem comprometer o impacto da história.
Recomenda-se discrição ao prosseguir com a leitura.
Se você estiver enfrentando uma situação semelhante ou precisar de apoio emocional, busque ajuda:
📞 DISQUE 100 – Violação de direitos humanos
📞 DISQUE 180 – Violência contra a mulher
📞 188 – CVV – Apoio emocional e prevenção do suicídio
Você não está sozinho. Falar é um ato de coragem. Cuidar de si é prioridade.
Capítulo 29 - Desabafo
...
Daniel
– Quer dizer que Samuel Freitas foi convencido a ir à festa junina? – provoquei meu melhor amigo enquanto caminhávamos em direção à aula de História.
– Seu irmão tem um jeito único de me persuadir – respondeu ele, me dando um leve soco no ombro.
– Me poupem dos detalhes sórdidos – comentou Léo, fazendo uma careta.
– E você, Daniel? Vai levar alguém para a festa? – Leonardo mudou de assunto rapidamente.
Foi nesse momento que o vi saindo de uma das salas, ao lado de Giovana e Théo. Seus olhos verdes encontraram os meus de imediato, como se fossem atraídos por ímã. Neles, havia dor e arrependimento – duas esmeraldas feridas. Tive que me controlar para não correr até ele e envolvê-lo em um abraço apertado. Meu frágil Bernardo baixou os olhos, claramente sem saber como agir, e pude notar um leve rubor colorindo seu rosto. Deus, como eu desejava aquele garoto de novo nos meus braços. Como queria despí-lo, dar-lhe prazer, senti-lo sob mim, nossos corpos em perfeita harmonia, aquecendo a cama até que o mundo lá fora deixasse de existir. Queria afagar seus cabelos castanhos e afastar sua franja só para vê-lo melhor e, então, beijá-lo com tanta paixão que nos transportaria para uma clareira mágica. Lá, uma música suave embalaria nossa dança em meio às flores, sob o brilho dourado do sol, enquanto pássaros celebravam nosso amor.
– Daniel? Terra chamando Daniel – Leonardo estalou os dedos diante de mim, tirando-me do meu devaneio romântico.
– Ele ficou em transe – disse Samuel, observando Bernardo se aproximar, com os olhos fixos no chão.
Leonardo também o encarou e, com um suspiro, revirou os olhos.
– Cara, você precisa superar isso. Conhecer alguém novo, se divertir como fez no meu aniversário – aconselhou – Vai ficar nesse limbo por quanto tempo?
– Eu já o superei – menti, percebendo que tinha até parado de andar. Retomei o passo, determinado a passar por Bernardo com a cabeça erguida, mas fui interrompido por Théo.
– Podemos conversar? – ele perguntou, com aquele sorriso leve que sempre me deixava mais calmo.
– Claro – respondi, um pouco sem jeito.
– A gente se encontra depois, Théo – disse Bernardo, com a voz abafada, evitando olhar para mim. Provavelmente não aguentaria.
Puxou o capuz cinza de seu moletom sobre a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos. Saiu andando ao lado de Giovana, que me lançou apenas um sorriso educado.
Ouvir sua voz foi ainda mais difícil do que ver seu rosto. A vontade de abraçá-lo me fazia tremer. Cruzei os braços para disfarçar e segui Théo. Antes, porém, olhei para trás – e o peguei fazendo o mesmo. Nossos olhos se cruzaram uma última vez antes de ele desviar o olhar e seguir em frente.
– Como está sua cabeça? – Théo perguntou.
Instintivamente, levei a mão até o curativo na nuca, onde levei três pontos na tarde anterior.
– Já não dói – respondi, tentando soar indiferente. Sabia que Théo tinha outra coisa para dizer além disso – Aconteceu algo?
Théo andou mais um pouco até sentar-se sob a sombra de uma árvore antiga, cuja espécie eu desconhecia. Sentei ao seu lado e o observei passar a mão pelos cabelos loiros com mechas azuis. Sorri, orgulhoso de ver meu irmão mais novo feliz de verdade.
– Esse seu olhar está me assustando, Dany – ele disse em tom de brincadeira.
– Só estou admirando o quanto você está bem – respondi com sinceridade.
– Me sinto feliz de verdade – ele sorriu – Pela primeira vez, me sinto livre. É a melhor sensação que já tive. Sem ressentimentos, sem mágoa. Apenas leveza.
Sabia exatamente o que ele queria dizer. Foi como me senti quando me entreguei a Bernardo. De repente, tudo parecia mais vivo: as cores, os sons, os cheiros… até os detalhes mais insignificantes ganhavam valor.
– Você não imagina como fico feliz por você – falei, colocando uma mão em seu ombro – Você merece tudo isso.
– E você também – respondeu Théo, me olhando nos olhos – Eu vejo o quanto você está triste. Parece sem rumo.
Desviei o olhar e passei a encarar a grama recém-aparada.
– Vou ficar bem – disse, tentando me convencer – Só preciso esquecê-lo.
– Talvez você não precise esquecer – agora era ele quem pousava a mão sobre meu ombro – Bernardo te fazia feliz como ninguém. Ele é o amor da sua vida.
– Mas ele me traiu – falei com amargura, as imagens dele com Nick invadindo minha mente.
– Ele errou, sim, mas está genuinamente arrependido – Théo disse com calma – Quem nunca errou?
Olhei para ele, hesitante.
– E como confiar de novo?
– Do mesmo modo que ele confiou em você, mesmo depois de todas as vezes que você o afastou sem explicação – disse Théo, me lembrando de algo que doía.
Lembrei dos olhos de Bernardo cheios de mágoa.
– Como poderia esquecer isso? – murmurei.
– Se ele conseguiu confiar de novo, acho que você também pode – concluiu.
– Ele falou que se arrepende? – perguntei, disposto a ouvir.
– Não com palavras, mas eu vi no olhar dele. Ontem, quando você se machucou, ele saiu correndo de onde estava para te ajudar. Não pensou em orgulho nem em mágoas. Só queria estar ao seu lado. Mas eu e Samuel achamos melhor que ele se afastasse, para você não ficar mais agitado.
– Ele estava assistindo ao meu treino escondido? – perguntei, tentando lembrar, mas tudo que vinha era o sangue na água.
– Estava – Théo riu – Deve fazer isso com frequência. Só para poder te ver de perto.
Sorri com a ideia. Bernardo escondido nas sombras, só para me admirar. Aquilo era tão típico dele, tão… fofo. Mesmo longe, ele continuava me amando. E eu sabia disso.
– Eu sinto tanta falta dele – confessei, com a voz embargada – Eu o amo, Théo.
Meu irmão me puxou para um abraço apertado.
– Então perdoe – sussurrou – Não deixa o orgulho te impedir de ser feliz.
O sinal tocou, anunciando o início da próxima aula.
...
Gabriel:
Hey, Jude, don't make it bad
Take a sad song and make it better
Remember to let her into your heart
Then you can start to make it better
Os Beatles tocavam em meus fones de ouvido naquele final de tarde quando resolvi ir até seu quarto. Subi as escadas e bati três vezes na porta com os nós dos meus dedos. Não demorou muito para que ele abrisse a porta ligeiramente surpreso em me ver ali.
– Oi – ele disse franzindo o cenho – Aconteceu alguma coisa?
– Não – falei segurando meu braço direito com o esquerdo e percebi que seus olhos rapidamente foram de encontro a este meu gesto – Só queria conversar com você.
Bernardo parecia um pouco inquieto com o fato de eu segurar o meu braço. Claramente ele estava se lembrando da última vez em que conversamos e eu tinha feito o mesmo e sem perceber eu me apertava com força. Agora tinha uma marca levemente arroxeada onde eu mesmo garroteei meu braço com meus dedos.
– Entra – disse abrindo caminho para mim.
Seu quarto que estava iluminado apenas por um abajur. A janela estava coberta por uma persiana que impedia quase toda a luz do sol poente entrar no ressinto.
Tirei meus fones de ouvido e percebi que uma música tocava no seu notebook. Me aproximei e vi que era uma música do Bon Jovi: What do you got.
– Gostei da música – falei me sentando na cama arrumada que não parecia pertencer a ninguém.
– É a preferida de Daniel – ele disse trancando a porta.
Ao dizer isso pude perceber uma pontada de tristeza em sua voz. Obviamente ainda lhe machucava muito falar de seu ex-namorado. Mas por algum motivo ele escutava a sua música preferida. Talvez como uma forma de mártir pessoal ou talvez para lembrar dos bons momentos que passaram juntos. Seja qual for a resposta, ambas não me pareciam felizes.
– Como você descobriu que era gay? – fui direto ao assunto.
– Não sei – Bernardo deu de ombros sentando-se a minha frente – Acho que sempre soube. Desde criança. Você acha que possa ser gay?
– Nunca pensei no assunto – disse pegando um livro da mesa de cabeceira. Era O gato preto de Edgar Allan Poe – Nunca me apaixonei e nem me senti atraído por ninguém.
E nem queria levando em conta as experiências sexuais que eu tinha.
– Mas algo mudou – Bernardo disse – Você está sentindo algo.
Olhei em seus olhos verdes com ligeira desconfiança, mas de certa forma querendo lhe confiar aquilo que eu sentia.
– Acho que sim – disse colocando o livro de volta no lugar. Me levantei e sentei-me ao lado de Bernardo.
Olhei mais uma vez no fundo de seus olhos verdes e intensos sentindo uma paz ao fazê-lo. Era uma sensação estranhamente agradável como mergulhar em uma piscina em um
dia quente de verão. Era como aproveitar o último dia de sol. Senti algo parecido com Dylan ontem à noite e isso me confundia muito. Até aquele momento eu tinha certeza de estar apaixonado por Bernardo, mas Dylan mexia comigo também. Ou talvez eu tenha penas simpatizado com ambos e confundido isso com paixão. Afinal de contas, o que eu conhecia do amor?
Os lábios de Bernardo tremularam e sua respiração tornou-se mais pesada. Ele sabia o que eu estava pensando e sentia o que eu estava prestes a fazer. Então deixei de hesitar. Repousei meus lábios gentilmente sobre os dele e foi estranho. Não foi como os beijos que Jair e Izac me forçavam a dar, era algo bom e intenso. Nossos lábios se moviam silenciosamente e gentilmente enquanto minha mão ia até seu cabelo castanho. Foi quando ele se afastou de mim.
– Me desculpe, Ian – disse começando a chorar – Mas eu ainda não esqueci de Daniel.
– Eu sei – disse fitando o chão.
Gabriel
Hey, Jude, don't make it bad
Take a sad song and make it better
Remember to let her into your heart
Then you can start to make it better
A voz dos Beatles preenchia meus ouvidos naquele fim de tarde enquanto eu subia lentamente as escadas em direção ao quarto dele. Parei em frente à porta e bati três vezes com os nós dos dedos. Pouco depois, Bernardo apareceu no vão, com um leve espanto nos olhos.
– Oi – disse ele, franzindo o cenho. – Está tudo bem?
– Está, sim – respondi, cruzando os braços de forma automática. Notei que seus olhos foram direto para o gesto. Talvez se lembrasse da última vez que fiz o mesmo, e do quanto aquilo o preocupou.
– Entra – ele disse, dando espaço.
O quarto estava mergulhado em meia-luz, iluminado apenas por um abajur. A persiana fechada barrava os últimos raios do dia. Tirei os fones de ouvido e percebi que uma música tocava baixinho em seu notebook. Me aproximei e reconheci: What Do You Got, do Bon Jovi.
– Gosto dessa – comentei, me sentando com cuidado na beirada da cama arrumada.
– Era a preferida do Daniel – respondeu, com um toque de saudade na voz, enquanto trancava a porta.
A menção ao ex-namorado o atingia visivelmente. Talvez escutar aquela música fosse uma forma de lidar com a ausência ou de manter alguma lembrança viva. Seja como for, o sentimento ainda estava lá.
– Posso te perguntar uma coisa pessoal? – disse, encarando o chão por um instante. – Quando você soube que... gostava de meninos?
Bernardo suspirou, pensativo.
– Acho que sempre soube. Desde pequeno. E você? Está se questionando?
– Não sei – falei, pegando um livro da cabeceira. Era O Gato Preto, do Poe. – Nunca me senti atraído por ninguém. Nem tive vontade.
– Mas isso mudou, não foi?
Ele me olhava com atenção, e por mais que eu tentasse esconder, a resposta estava no meu silêncio. Devolvi o livro ao lugar e fui me sentar ao lado dele. Olhei bem dentro dos seus olhos, e foi como se o tempo parasse por um instante. Era calmo, era leve. Uma sensação que eu nunca tinha experimentado.
E então aconteceu. Me inclinei e encostei meus lábios nos dele. Com delicadeza. Com hesitação. Mas com sinceridade.
Não era como antes. Não havia medo, nem vergonha, nem dor. Só dois garotos tentando entender o que estavam sentindo.
Ele se afastou devagar, com os olhos marejando.
– Me desculpa, Gabriel – disse, emocionado. – Eu ainda estou tentando superar o Daniel.
– Eu entendo – murmurei.
– Não quero te confundir, nem te magoar. Você é incrível, mas eu ainda não estou pronto.
Assenti, engolindo o choro que subia. E mesmo assim, sussurrei:
– Foi o beijo mais verdadeiro que já tive.
As lágrimas escaparam sem controle. Bernardo me abraçou com força, tentando me acolher da forma que podia. Chorei como há muito tempo não chorava. Por dor. Por alívio. Por algo que nem eu mesmo sabia nomear.
– Eu não queria te machucar – ele disse baixinho.
– Você não machucou – falei, ainda entre soluços. – É que... pela primeira vez, eu quis esse momento. Os outros... nunca foram assim.
A revelação escapou antes que eu pudesse pensar. Me afastei, assustado com o que acabara de dizer, e fui para um canto do quarto, escondido na penumbra.
– Tem algo a ver com o seu padrasto? – ele perguntou, quase num sussurro.
Hesitei, mas não neguei.
– Não conta pra ninguém – pedi, sem forças.
– Nunca faria isso – ele garantiu. – Você pode confiar em mim.
Fechei os olhos. Era difícil acreditar nisso. Difícil confiar em qualquer um depois de tudo que vivi. Respirei fundo.
– Eu tenho medo... de todo mundo – murmurei.
Bernardo se sentou no chão ao meu lado. Respeitou meu espaço. Não forçou contato.
– Eu também já me senti assim – ele disse. – Fui rejeitado, humilhado, traído por gente que dizia me amar. Sabe... quando me assumi, minha mãe não aceitou. Fui motivo de piada. Me perdi por um tempo. Fiz escolhas ruins. Mas... estou tentando encontrar um novo caminho.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Ele falou mais:
– Mas não foi só isso. Quando eu tinha d0ze anos meu primo me iludiu e tirou minha virgindade. Eu era apaixonado por ele, mas ele só me usou. A alguns meses eu fui atrás dele novamente então ele me forçou a transar com ele.
Essa parte eu conhecia bem até demais. A sensação degradante de ser violentado e a impotência em poder reagir eram as piores coisas que um ser humano podia suportar e eu não sabia como aguentava aquilo.
– E o que você fez? – indaguei tentando controlar meu tom de voz para que ele não percebesse minha curiosidade, mas acho que falhei.
– Na hora eu apenas chorei e fui embora com raiva – admitiu um pouco triunfante em ter conseguido minha atenção – Mas nesse sábado ele veio até a minha casa e tentou novamente. Mas desta vez eu o enfrentei – ele deu uma risadinha que quase passou despercebida sobre a pouca luz – Ainda não acredito que dei um soco na cara do meu primo que tem o dobro do meu tamanho – a satisfação era notória em sua voz – Contei para o pai dele e para o meu. Eu não vi, mas meu tio garantiu ao meu pai que deu uma boa surra nele
Ouvir aquilo me tocou. De alguma forma, me senti menos sozinho.
– Seu padrasto abusa de você? – ele indagou para ter certeza.
– Ele e o Gustavo – admiti tirando um peso colossal de meus ombros. Me sentia o Titã Atlas finalmente podendo largar o peso do céu – Um não sabe do outro.
Falar aquilo em voz alta foi como soltar um peso que eu carregava há anos.
– Gabriel... – ele sussurrou, colocando a mão sobre o peito. – Eu sinto muito.
– Nunca contei pra ninguém. Nem pra minha mãe. Tenho medo dela não acreditar. Tenho medo do que o Gustavo possa fazer.
Ele assentiu, em silêncio. Me olhava sem julgamento.
– Você contou pra mim – disse, com um olhar gentil.
– Porque você também compartilhou algo seu – respondi. – E porque, de algum jeito, eu precisava falar.
A tensão no quarto era intensa, mas não pesada. Era como se, pela primeira vez, eu pudesse respirar com alguém do lado.
Bernardo então olhou para meu braço. Eu havia apertado tanto a pele que deixei marcas profundas. Ele se levantou e trouxe papel para me ajudar a limpar.
– Você faz isso sempre – disse, com tristeza. – Às vezes parece que está querendo arrancar o braço fora.
– E o pior é que, muitas vezes, nem percebo – confessei, com um sorriso apagado.
Ele segurou minha mão. Notou uma cicatriz mais antiga, no meu pulso. Nossos olhos se encontraram e ele entendeu sem precisar dizer nada.... Tentei me matar.
(Abri os olhos devagar, sentindo a luz branca e intensa logo acima de mim. Levei um tempo para entender onde estava. Em volta, cortinas delimitavam meu espaço e, ao olhar para os braços, vi curativos nos pulsos. Um cateter fincado na dobra do cotovelo deixava o soro escorrer lentamente. Estava em um hospital.
Não fazia ideia de como tinha parado ali. E, para ser honesto, nem me importava tanto. A única coisa que eu sabia era que parecia não ter sofrido o bastante — o destino, Deus, o acaso ou qualquer outra força que governasse o mundo tinha decidido me manter por aqui, mesmo quando eu já não aguentava mais.
A verdade é que eu tinha tentado desistir. Pensei que talvez, se esperasse até mais tarde, até o silêncio da noite, as coisas tivessem sido diferentes.
– Achou que ia se livrar de mim assim, Gabriel? – ouvi uma voz conhecida ao lado, vinda da abertura das cortinas.
Jair entrou no espaço, com um sorriso estranho. Sentou-se na cadeira próxima à cama, como se aquele fosse um encontro casual entre conhecidos.
– O que... aconteceu? – perguntei com esforço. Minha voz saía fraca, quase um sussurro.
– Você cortou os pulsos no banheiro – ele respondeu, quase como se contasse uma anedota – Quando caiu, derrubou umas coisas da pia. O barulho me alertou. Te encontrei a tempo e trouxe até aqui.
Fiquei em silêncio. Parte de mim lamentava por não ter conseguido. Parte de mim queria gritar.
– Devia ter me deixado – murmurei, sem forças para mais nada.
Ele apenas sorriu. Um sorriso frio, calculado.
– Eu não quero que você se vá, Gabriel – disse, passando a mão pelo meu cabelo como se fosse um gesto de carinho – Sentiria falta de você.
– Eu te odeio – respondi. E logo tudo escureceu de novo.
Os dois meses que se seguiram foram estranhos. Na casa, todo mundo parecia andar em ovos perto de mim. Faziam de tudo para me agradar ou distrair, mas evitavam completamente falar sobre o que aconteceu. Era como se ignorar aquilo fosse me ajudar a esquecer.
Minha mãe estava diferente. Podia ver nos olhos dela que algo tinha se quebrado. Ela não sabia como me alcançar, e eu já não sabia como pedir ajuda. Foi um período confuso, cheio de silêncios e tentativas frustradas de reconciliação comigo mesmo.)
...
– Sinto muito que as coisas tenham chegado a esse ponto – Bernardo disse com suavidade, passando os dedos com cuidado sobre a cicatriz no meu pulso – Eu queria muito poder te ajudar a sair disso.
– Como? – retruquei, puxando a mão de volta, num gesto automático de proteção.
– Meu pai é juiz. Tenho certeza que, se soubesse, ele não negaria ajuda.
– Por favor... não conta a ele – pedi, sentindo os olhos arderem de novo – Ainda não.
– Mas por quanto tempo você vai aguentar tudo isso sozinho, Gabriel? – ele me olhou, confuso e genuinamente angustiado.
– Prometo que não por muito tempo – murmurei, esfregando os pulsos cobertos de curativos.
– Tirar a própria vida não é a saída – ele disse – Você pode sair disso. E eu quero te ajudar.
Ele estendeu a mão para mim. Um gesto tão simples, mas que doía só de olhar. Eu cheguei a erguer a minha, quase tocando a dele... mas no último segundo, me levantei. Não podia correr esse risco. Ainda não.
Se Jair ou Gustavo soubessem, eles poderiam machucar Pedrinho. Minha mãe. E eu não sobreviveria ao peso de causar isso.
– Por favor... só não conta pra ninguém – pedi com a voz tremendo, antes de sair correndo do quarto.
Me enfiei no banheiro do dormitório e me sentei no chão frio, com as costas na porta. O quarto era dividido com um garoto que mal falava comigo. Ele estava lá, lendo um gibi, e apenas me lançou um olhar confuso. Mas eu não me importei. Estava sufocado por dentro. O medo, a raiva, a dor… tudo me apertava o peito como uma corda invisível. Eu queria muito confiar em Bernardo. Aceitar aquela ajuda. Mas e se algo acontecesse com meu irmão? E se eu fosse tarde demais para protegê-lo?
Não sei quando apaguei ali mesmo, encolhido no chão. Mas despertei de um susto com o toque do celular vibrando no bolso. Era madrugada. O visor mostrava o nome que eu mais temia ver: Jair.
Por um momento, pensei em não atender. Mas alguma coisa me dizia que o pior poderia acontecer se eu ignorasse.
– Alô? – falei com a voz fraca, ainda grogue.
– Pega suas coisas. Tô indo te buscar – ele disse, seco, com a voz pesada.
– O quê? Jair, você tá louco? São duas da manhã!
– Faz o que eu mandei, moleque! – ele rosnou. No fundo, ouvi o som de buzina insistente. – Eu chego em uma hora.
– A direção da escola não vai deixar eu sair assim – tentei argumentar, com a esperança de que ele recuasse.
– Deixa essa merda comigo! Toma banho, veste aquela camiseta do Batman… você sabe que fica certinho nela.
E desligou.
Fiquei ali, paralisado. Depois fui ao espelho. Meus olhos estavam inchados, a cara cansada. Mas eu sabia que aquilo não importava pra ele. Ele só via o que queria.
A vontade de gritar era imensa. De fugir. De fazer qualquer coisa… mas aí a ameaça velada voltou à minha mente: Se você não for, eu posso muito bem procurar seu irmãozinho.
Pedrinho.
Tomei banho. Me vesti como ele queria. Fui até o portão da escola com o coração despedaçado.
Não demorou muito. O Fox prateado apareceu logo atrás da grade. Jair estava no volante. Mas o que congelou meu sangue foi ver quem estava no banco de trás, dormindo com a cabeça encostada na janela.
Era Pedrinho.
...
Continua...