Ficar ou não ficar?... - Parte 7

Um conto erótico de Paulinho (Por Mark da Nanda)
Categoria: Heterossexual
Contém 4288 palavras
Data: 24/07/2025 12:25:56
Última revisão: 24/07/2025 15:09:03

Ela deu uma risada curta, enxugando as lágrimas com as costas da mão:

- Só se tiver aquele doce de leite com pimenta...

- Ara! Nem sonhando! - Ri também de uma lembrança gostosa da nossa infância, mas completei: - Não tô prometendo nada! É só um almoço mesmo, entre dois amigos.

E assim, sob as primeiras estrelas de Passa-Vinte, senti que, talvez, o mistério que me assombrava tanto pudesse, enfim, ter encontrado sua resposta, mesmo que ainda estivesse mergulhado em dúvidas e agora, em desconfianças quanto ao futuro.

[...]

O convite que fiz a Emilinha me lembrou que eu ainda não havia comprado a carne. Me despedi dela, justificando e fui até a venda do Seu Zé Formoso. Agora eu tinha um problema: fiz o convite quase sem pensar e ele ecoava em minha cabeça como o badalar de um sino. Outrora, ela seria recebida como uma princesa pelo meu pai, mas agora eu não tinha essa mesma certeza. Ele havia dificultado para lhe dar o número do telefone de Goiás e isso só podia significar uma coisa: ele não aprovava mais.

Só depois de ter feito o convite, entendi que não era apenas um convite, mas um chamado inconsciente, um gesto que, sem que eu percebesse, abria uma porta que eu julgava trancada. As palavras dela, carregadas de arrependimento e saudade, haviam mexido comigo de um jeito que eu não queria admitir. O coração, esse conspirador insensível, insistia em reacender brasas que eu, com tanto custo, julgara quase extintas. Caminhei de volta à venda do Seu Zé Formoso, o chapéu na mão, a mente perdida entre o passado que me puxava e o presente que me desafiava.

Na venda, o burburinho dos fregueses e o tilintar das moedas no balcão criavam uma sinfonia familiar, quase reconfortante. Seu Zé, com seu jeito de quem já viu o mundo sem sair de Passa-Vinte, cumprimentou-me novamente com um sorriso que misturava afeto e malícia:

- Quem diria, hein, Paulinho? Quem te viu e quem te vê... - Deu uma risada divertida e serviu uma dose da cachacinha especial que ele só servia para os amigos, a primeira que ele me servia na vida, sinal de que me via agora como um homem, não mais o menino: - Tô vendo que o Goiás te fez bem. Só toma cuidado pra não virar forasteiro de vez!

- Que é isso, Seu Zé? Sou o mesmo de sempre, só mais queimadinho.

Rimos da brincadeira e ele me perguntou em que poderia ajudar:

- Leitoa... Eu queria levar uma leitoa. Vamos fazer um almoço em casa e Seu Barnabé me pediu que comprasse. Ah, e se tiver uma cachacinha dessa que o senhor me serviu à venda, vou querer levar também.

- Fio... Leitoa inteira, eu não tenho, mas tenho dois quartos traseiros bons de um porco caipira que chegou ainda hoje. Quer dar uma olhada?

Fui até os fundos da venda e era mesmo bons demais, grandes, pesados, com uma capa de gordura bem boa, ótima para dar sabor no assado. Acertamos o preço depois de uma discussão boa, típica de mineiros onde um quer ganhar muito e o outro pagar pouco. Enquanto pagava, notei os olhares dos outros clientes, meio curiosos, meio invejosos, como se eu fosse uma novidade que não se explicava. Talvez fosse o jipe, talvez o chapéu, ou quem sabe a aura de quem voltou mudado, mostrando que aquele lugar não me definia mais. Saí carregando os pacotes, sentindo o peso não apenas da carne, mas de algo mais, algo que não se embrulha em papel pardo. Assim que pus o pé no alpendre da porta, Seu Zé me chamou:

- E a pinga, homem, não vai levar?

A pinga... Claro que eu esquecia de algo. Voltei para trás e já me preparei para uma nova rodada de negociações, mas essa foi fácil. Ele embrulhou duas garrafas da cachaça especial dele num papel pardo e me entregou:

- Essas, são por conta da casa...

- Ah vá... Sério? Logo o senhor!? - Falei enquanto chacoalhava um punho fechado que ele entendeu de imediato.

- Tá me chamando de muquirana, menino? Ó lá, hein! Só pode ter crescido, mas eu ainda te escorraço daqui como fazia lá de casa quando você entrava para roubar goiaba! - Falou dando uma gargalhada depois.

Também ri, tomado por aquela lembrança gostosa e muito saborosa. Agradeci o presente e com as sacolas de carne e da bebida, voltei até o Bandeirante. Ela continuava sentada no mesmo lugar onde a deixei. Acenei com a mão, me despedindo e ela retribuiu, os olhos me olhando com saudade e talvez arrependimento. A saudade, eu até acreditava, pois podemos sentir falta até de um amigo, mas arrependimento? Será? E qual? De ter me abandonado, acreditando num sonho, ou de ter visto que poderia ter sonhado comigo que agora começava a realizar os meus?

De volta à casa do meu pai, uma moda de viola raiz, entoada por Pena Branca e Xavantinho inundava o ambiente, misturado ao aroma de café que parecia nunca abandonar aquelas paredes. Barnabé e meu pai estavam na varanda, proseando sobre os velhos tempos, tempos em que minha mãe ainda alegrava a vida daqueles dois. Ao me ver, Barnabé ergueu uma sobrancelha, como se pudesse ler o epitáfio da minh’alma:

- E então, Coronelzinho, trouxe o banquete? - Perguntou, com aquele tom que misturava brincadeira e provocação.

- Coronelzinho? - Perguntou meu pai, curioso.

- Contei para tu ainda não? - Perguntou Barnabé, sorrindo: - Paulo já contabiliza respeito lá na região. Todo mundo chama ele de “Coronelzinho”. Por lá, o menino aí, digo, o homem aí sabe mandar e se fazer ser respeitado.

Meu pai apenas me encarou e abriu um sorriso, orgulhoso de mim. Correspondi o sorriso, embora um pouco embaraçado, e falei:

- Leitoa não, padinho, não tinha, mas trouxe dois quartos traseiros bem graúdos de um porco caipira dos bão, e a pinga, é claro, como o senhor mandou. Mas não sei se o estômago aguenta tanta comemoração. - Retruquei, tentando manter o tom leve.

- Mas não é pra agora, é pra amanhã. Até lá a fome já fez morada novamente... - Barnabé retrucou, servindo-se de uma xícara de café.

Meu pai era só sorriso, mas seus olhos, sempre perspicazes, pareceram perceber que algo agora me inquietava. Ele não disse nada e eu agradeci por isso. Há momentos em que o silêncio de um pai é mais sábio que qualquer palavra. No entanto, sabia, pela própria Emilinha, que meu pai hesitara em dar meu número. Ele negara, com a teimosia de um homem que protege o filho, talvez temendo que ela trouxesse novas dores ao meu coração. Era justo, justíssimo. Essa desconfiança, que eu só agora começava a entender melhor, pesava em mim como uma sentença.

Naquela noite, enquanto ajudava a temperar as carnes, minha mente vagava. Emilinha viria mesmo? E, se viesse, eu tinha medo de como meu pai a receberia? E Barnabé então, com o seu jeito direto de dizer as coisas, o que faria? O convite fora impulsivo, quase uma traição do coração contra a razão. Eu, que me julgava endurecido pelo sol do cerrado, ainda me via frágil diante dela, como se simplesmente eu voltasse a ser somente o menino Paulinho, que sonhava com Emilinha sob as estrelas de Passa-Vinte.

O dia amanheceu com um sol tímido, escondido por nuvens que prometiam chuva. A casa do meu pai ganhou vida cedo, com o cheiro de lenha estalando no fogão de taipa. Meu pai e Barnabé já conversavam alto, rindo de alguma coisa, enquanto estavam nos fundos da nossa casa. O cardápio, como mandava a tradição mineira, era um convite à fartura: além da carne, haveria feijão tropeiro, rico em pedaços de linguiça e bacon, uma farofa de couve crocante que só meu pai sabia preparar, arroz branco, salada de tomate, alface e cebola e uma surpresa de última hora, uma cumbuca de quiabo frito com pimenta dedo-de-moça, tudo cortado em rodelas finas.

Assim que apareci, cumprimentando aos dois, já enfiamos os quartos do porco no forno do fogão. Eles seriam assados com a calma e o devido zelo que mereciam para justificar o bom nome da culinária mineira. Quando estivesse pronta, se não errássemos a mão, deveria estar dourada e crocante, com a pele estalando de tão bem assada e exalando um aroma pecaminoso. Como homens só pensam no durante, não no depois, ninguém se lembrou da sobremesa:

- Sobremesa pra quê? - Perguntou Barnabé com o seu típico sorriso matreiro: - Eu vou é me empanturrar de carne até o umbigo fazer bico.

Barnabé, sempre o mestre das celebrações, sentou ao lado do fogão e já abriu uma das garrafas de pinga, enchendo até a metade de um copo americano. Depois me olhou e perguntou:

- Meio cheio ou meio vazio, Seu Paulo? O que tu vê?

Eu olhei para o copo e depois para ele, já esperando alguma piadinha típica do velho fazendeiro:

- Uai! - Dei uma risada: - Tanto faz. A quantidade é a mesma...

- Tu não me respondeu ainda. - Ele insistiu, dando uma cheirada no copo.

- Pra mim, tá meio... cheio. Ara! Sei lá...

Barnabé virou a cachaça de uma vez e soltou um alto:

- EIIIIIITA! Essa é das boas mesmo! - Disse soprando o ar para fora, como se queimasse a garganta.

Depois, nos encarou, sorriu e serviu outra meia dose. Agora me olhando, filosofou:

- Tua vida é igual tua vista. Quando tu vê meio cheio, está vendo as coisas de forma positiva. Isso é bom, você está otimista, focado no presente e nas possibilidades de um futuro melhor. Quem vê o copo meio vazio, tá pessimista, vivendo no passado e no que faltou.

Ouvimos aquilo, eu e meu pai, de queixo caído, inclusive chegamos a nos entreolhar, surpresos, mas eu não podia deixar de brincar com o meu padinho:

- Pai, cadê o padinho Barnabé? Alguém levou aquele velho muquirana daqui e deixou um doutor professor no lugar...

- Velho muquirana é tua bunda, seu desabusado... Te dei um jipe e tu ainda me chama de muquirana!? - Disse, enquanto fingia tirar a cinta: - Tu me respeita ou o couro vai comer no teu lombo!

Mas era tudo brincadeira, claro, e logo caímos os três numa risada gostosa, das boas, leve e descontraída. Barnabé passou a comandar a preparação como um general em campanha, enquanto meu pai, mais reservado, cuidava do arroz e da farofa da couve com uma atenção que parecia ritualística. Eu, por minha vez, tentava me ocupar com tarefas pequenas ajudando aos dois, mas meus olhos traíam-me reiteradamente, voltando-se para a estrada, esperando, ou talvez temendo, a chegada de Emilinha.

Por volta do meio dia, quando o cheiro da carne já começava a atiçar a sinfonia de trombetas em nossos estômagos, vi uma figura se aproximar pela estrada de terra. Era ela, Emilinha. Caminhava com passos leves, lentos, quase hesitantes, rumo a casa do meu pai. Usava um vestido amarelo de mangas curtas e decote discreto no busto que parecia dançar com o vento. Trazia consigo uma travessa coberta por um pano e seu rosto, mesmo à distância, trazia aquele misto de timidez e determinação que normalmente me deixava mole. Meu coração, esse mesmo traidor, que tantas vezes reprimi durante esta história, deu um salto, mas o Coronelzinho, o homem que eu me tornara, segurou as rédeas:

- Parece que tem visita chegando... - Disse Barnabé, dando-me um susto que quase levou minha alma para o além, aparecendo sei lá de onde ao meu lado com um copo de cachaça na mão.

Seu tom era de quem sabe mais do que diz e pior, havia uma sombra em seu olhar, como se ele, assim como eu temia de meu pai, não visse Emilinha com bons olhos:

- Eu... convidei Emilinha para almoçar com a gente. - Falei encabulado comigo mesmo: - Será que fiz mal?

- Bem... Bão não foi. - Disse Barnabé, virando o copo e relembrando aquela mesma pérola: - EIIIIITA! Caramba, que troço forte!

Depois, ele me olhou e fez um meneio de cabeça, praticamente me mandando ir receber a Emilinha, o que fiz, pois era o certo a fazer. Aproximei-me dela, tentando manter a compostura:

- Emilinha, que bom que veio. - Falei, a voz mais firme até do que eu imaginava.

Ela sorriu um sorriso nervoso e ergueu a travessa:

- Trouxe o doce de leite com pimenta. Já que ocê não quis comprar, eu fui. - Um leve tom de provocação que me fez rir, apesar de tudo.

- Ora, cê não esquece daquele dia, né? - Respondi, recebendo a travessa e apontando para a varanda: - Vem, entra. Senta com a gente. O almoço tá quase pronto.

Barnabé havia voltado para o seu ofício nos fundos de casa, fiscalizar a carne. Logo, meu pai surgiu, o olhar uma confusão de sentimentos:

- Emilinha chegou, pai. Eu... convidei ela.

Emilinha esticou a mão em sua direção e por alguns segundos, pensei que meu pai não fosse cumprimenta-la, mas cumprimentou, dizendo um simples:

- Bem vinda.

Fomos para o ranchinho dos fundos onde havia uma mesa rústica e dois bancos compridos de cada lado. A carne ficou pronta pouco depois e foi bom, porque o silêncio que surgiu com a chegada de Emilinha, constrangeria até mesmo o mais pândego dos demônios do inferno. Levamos todos os pratos para lá e nos sentamos, meu pai ao lado de Barnabé, Emilinha ao meu lado, dois à frente de dois, para equilibrar o caos caso uma discussão começasse. O almoço foi uma mistura de alegria e tensão, como se todos soubessem que havia mais em jogo do que uma refeição. Meu pai tratava Emilinha com uma cortesia fria, calculada, sem o calor que reservara no passado. Barnabé, por sua vez, era efusivo, como sempre, mas suas palavras, embora gentis, impunham uma distância sutil, como se ele a visse como uma visita passageira, não como alguém que pudesse, ou devesse, fazer parte da nossa vida. Emilinha parecia perceber isso, pois falava pouco, os olhos quase sempre baixos, concentrada na comida, ou fingindo bem:

- Esse feijão tropeiro tá um negócio, Ciro. Tu devia abrir um restaurante, homi. - Disse Barnabé, enchendo o prato pela segunda vez: - Tu sempre teve mão boa pra isso.

- É receita da minha mãe, Barnabé. - Respondeu meu pai, com um leve sorriso: - Mas também tem mérito do Paulinho aí. Ele ajudou a temperar e fazer.

- Aprendeu direitinho lá no Goiás... - Brincou Barnabé, dando um talagada na maldita, ou bendita pinga: - E é bão que seja assim, porque logo eu e o Coronelzinho aí vamo voltar pra lá, que é lá que ele tá virando homem de verdade.

Emilinha pigarreou, como se tivesse se afogado. Ofereci um suco de laranja que ela bebeu rápido, agradecendo e dizendo que havia mordido uma pimenta do quiabo. Eu sabia bem qual o diabo tinha mordido ela, ou melhor qual a pimenta do quiabo ela tinha mordido... Barnabé continuou, agora me encarando:

- Sabe cozinhar, dirigir, cuidar da fazenda... Só falta agora esquecer o passado, e botar a cabeça e o coração no lugar de vez.

O comentário, embora disfarçado de brincadeira, tinha um tom que não me passou despercebido. Olhei para meu pai que assentiu levemente com a cabeça com o comentário dele, deixando claro o lado em que estava, e principalmente com o que ainda não fora dito. Emilinha, sentada ao meu lado, parecia alheia à conversa, mas só parecia, porque seus dedos apertavam o garfo e o garfo a carne com mais força do que o necessário:

- A leitoa tá mesmo uma delícia! - Disse ela, tentando se enturmar e mudar de assunto: - Fazia tempo que não comia algo assim, tão gostoso.

- Pois é, moça... - Respondeu Barnabé, com um sorriso que não alcançava os olhos: - Eu e a gente dos Sandoval Silva gostamos das coisas simples, mas sempre bem feitas. E não desperdiçamos, não jogamos nada fora, como certas pessoas por aí.

O comentário era vago, mas direto, e eu sabia que não era apenas sobre a comida. Emilinha baixou o olhar e eu senti uma pontada de raiva misturada com pena, e fiz questão de encarar o Barnabé com a cara fechada. O meu pai, logo ele que sempre foi o mais grosso da família, mudou de assunto, falando sobre os preparativos da próxima festa de São João, mas o clima na mesa permanecia pesado, como se uma nuvem invisível pairasse sobre todos nós.

Após o almoço, enquanto Emilinha ajudava a levar os pratos para a cozinha, um gesto que meu pai aceitou de bom grado, mesmo sem o menor entusiasmo, Barnabé puxou-me para um canto da varanda da frente. Meu pai ficou na cozinha com a Emilinha, e o tom da conversa mudou, como se ele tivesse esperado o momento certo:

- Paulinho, tu tá vendo aonde tá se metendo, não tá? - Começou a falar, a voz baixa, mas firme: - Essa moça, a Emilinha, ela já te fez sofrer uma vez. E tu sabe o que eu penso de homem que se deixa levar por paixão boba, num sabe?

- Ela não é como a Vivi, padinho. - Retruquei, sentindo o sangue subir. - Emilinha tá diferente.

- Diferente, é!? - Interveio, com uma dureza que raramente usava comigo: - Coronelzinho de meia pataca... Teu pai me contou que não queria passar o telefone lá de Goiás para ela. Sabe por quê? Porque ele sabia que ela ia ligar e ele, melhor do que ninguém, viu o que ela te fez. Tu partiu pra lá com o coração em pedaços e agora que tá mais ou menos colado, tu tá querendo entregar na mão dela de novo?

- Mas ela mudou, padinho. - Insisti, embora uma parte de mim duvidasse das minhas próprias palavras: - Ela tá arrependida. Tá tentando consertar.

Barnabé riu, um riso seco, quase cruel, chacoalhando a cabeça negativamente:

- Fio do céu, homem de cabeça oca e coração fraco, arrepender em palavras é fácil; o difícil é ser confiável de novo. Tu lembra da Vivi? Tu falou que tava apaixonado pela puta e eu te disse que mulher assim só traz confusão. Emilinha pode não ser uma puta, mas já mostrou que sabe machucar igual uma. Tu é homem agora, Paulo, firma o pé no chão, cabra! Não deixa o coração te fazer de bobo outra vez.

As palavras deles doíam, não porque fossem injustas, mas porque ecoavam as dúvidas que eu mesmo carregava. Antes que eu pudesse responder, Emilinha reapareceu na varanda, trazendo a travessa com o doce de leite com pimenta. Sorriu, alheia à conversa, e colocou o doce num banquinho:

- Trouxe pra sobremesa. - Disse, com uma timidez que contrastava com sua tentativa de parecer à vontade.

- Obrigado, dona moça. - Respondeu o Barnabé, com a mesma cortesia fria do meu pai: - Vou pegar um queijo pra acompanhar...

Ele nem precisou ir, pois meu pai já vinha com uma roda de queijo minas frescal. Vi que eles se olharam rapidamente, mas aquele olhar dizia mais do que palavras, e eu percebi que, para eles, Emilinha era uma estranha, alguém que não pertencia mais àquele círculo de confiança na família. O almoço terminou com o doce que, apesar da pimenta, não conseguiu apagar o amargor que pairava no ar.

Mais tarde, quando Emilinha e eu nos sentamos na varanda, o peso da conversa com meu pai e Barnabé ainda me acompanhava. Ela, como se sentisse a tensão, falou primeiro, a voz baixa, quase um sussurro:

- Paulinho, eu sei que não sou mais bem vinda aqui como antes. Teu pai, o Seu Barnabé... eles me olham como se eu fosse uma doença. - Ela então deu uma risada curta e triste: - O pior é que entendo eles. Fiz por merecer...

- Não é bem assim, Emilinha. - Menti, tentando suavizar a verdade: - Eles só são... meio chucro.

Ela riu novamente o mesmo riso triste, que parecia carregar mais do que ela dizia:

- Chucros, é? Talvez cê tenha razão, mas eles estão só tentando te proteger. Eu não fui boa pra você, Paulinho, não antes, pelo menos e a vida não foi boa pra mim também...

Havia algo em seu tom, uma sombra que me fez estremecer. Não era apenas arrependimento, mas algo mais profundo, mais doloroso. Eu quis perguntar, mas ela continuou a falar, olhando sempre em frente, buscando talvez um lugar para ir, como se as palavras fossem uma confissão que ela não podia mais segurar:

- Sabe, quando eu tava lá com o Leonardo... Ele não era só bruto com palavras. Era... - Ela hesitou, os dedos brincando com a bainha do vestido, como se uma verdade doesse quando rememorada: - Ele queria que eu fosse dele de um jeito... Às vezes... Às vezes, ele me fazia fazer coisas que eu não queria. Eu só não podia, não conseguia...

Meu coração parou por um instante. Havia algo na maneira como ela falava, no jeito como seus olhos evitavam os meus, que me fez desconfiar de algo pior, algo que talvez nem mesmo eu quisesse saber:

- Coisas? - Perguntei, tentando não pressioná-la, mas precisando saber.

Ela respirou fundo, como se buscasse coragem no fundo da alma:

- Ele gostava de... me exibir, sabe? De mostrar que eu era dele. Às vezes, ele chamava os amigos, e... eu tinha que estar lá, sorrindo, sendo a moça perfeita, obediente... E, se eu não fizesse do jeitin que queria, ele ficava... maldoso! Não com tapas, mas... - Disse, a voz quase sumindo: - Ah, se arrependimento matasse... Daí eu... fingia que não era eu, que tudo logo ia passar, mas demorou tanto...

As palavras dela caíram sobre mim como uma pedra. Não era apenas o ciúme que me roía agora, mas uma raiva nova, misturada com uma pena que eu não sabia como lidar. Comecei a desconfiar, embora ela não dissesse diretamente, que o Leonardo tivesse feito algum mal maior pra ela. Havia algo nos gestos dela, no jeito como ela se encolhia ao falar, principalmente dos amigos dele, que sugeria horrores que eu mal podia imaginar. Seria possível? Teria ele a forçado a se submeter, não apenas a ele, mas a outros? A ideia me revoltava, mas eu não podia perguntar diretamente, não sem machucá-la ainda mais:

- Emilinha, ele te... Cê quer me contar alguma coisa? - Perguntei, escolhendo as palavras com cuidado, meu coração batendo descompassado.

Ela não respondeu de imediato. Seus olhos marejaram e ela seguiu olhando o horizonte, fixando-se em um ponto distante, como se tentasse fugir da memória:

- Ele me convenceu a... - Sua voz tremia e ela se calou brevemente: - Me convenceu de que eu seria poderosa, empoderada, E, às vezes, eu acreditava, mas no fundo em sentia que não valia era nada, Paulinho. Só que eu não quero mais ser aquela pessoa. Eu quero ser a Emilinha de antes ou pelo menos tentar.

Aquilo não era um pedido de desculpas, nem uma justificativa, era uma confissão dela para ela mesma, mas que, para mim, embora incompleta, era suficiente para plantar uma nova semente de pavor. Não era apenas abuso físico ou emocional, era algo mais, algo que ela não conseguia, ou não queria, nomear. E eu, agora dividido entre a raiva e a compaixão, não sabia como reagir. O Coronelzinho queria confrontar o Leonardo, arrancar dele a verdade ou mesmo enfiar a verdade de um homem no seu rabo, mas o Paulinho, o menino que ainda amava Emilinha, queria apenas abraçá-la, protegê-la, mesmo que corresse riscos novamente:

- Não sei o que aconteceu, Emilinha, mas você não precisa mais ser quem ele queria que você fosse. - Falei, por fim, tentando controlar um nervosismo em minha própria voz: - Mas, se ele te fez algo, contra a sua vontade... algo pior do que xingar ou humilhar, você precisa falar. Que não seja para mim, mas você precisa colocar para fora.

Ela sorriu, um sorriso triste, e balançou a cabeça, concordando:

- Um dia, talvez. Mas agora... agora eu só quero tentar viver de novo.

O silêncio que se seguiu era pesado, mas necessário. Ficamos um tempo ali, apenas tomando a fresca, como se ela tivesse o poder de levar para longe todo o mal que nos atingiu. Levantei-me então, oferecendo a mão para ajudá-la:

- Vamos entrar? O padinho vai querer que a gente prove o café dele.

Ela assentiu e seguimos para dentro, mas a conversa ficou gravada em mim, como uma ferida sobre a ferida que ainda não havia cicatrizado.

Nos dias seguintes, Emilinha aparecia com frequência, trazendo bolos, doces, ou apenas a vontade de conversar. Cada encontro era um teste para meu coração, que oscilava entre a mágoa e o desejo de protegê-la. Meu pai e o Barnabé, porém, continuavam firmes em sua desaprovação. Não diziam diretamente, mas os olhares, os silêncios, as indiretas, tudo apontava para a mesma mensagem: Emilinha não era mais bem-vinda como antes.

Emilinha, com seu passado e seus mistérios, era uma incógnita, e eu, apesar de tudo, ainda me via preso a ela. Mas agora, com a desconfiança do que ela sofrera nas mãos de Leonardo, minha raiva se voltava menos para ela e mais para ele. Aquele borra-botas que não apenas roubara algo de mim, parecia ter tirado algo ainda mais valioso dela.

Os dias passaram, e a presença de Emilinha em Passa-Vinte tornou-se uma constante. Em alguns dias, vi ela ajudando na venda do Seu Zé, cuidando das contas e parecia tentar reconstruir sua vida, passo a passo. Noutros, ela ajudava na cantina de uma escola. Eu a via sorrir mais, mas os olhos, estes sempre carregavam uma sombra que não explicava tudo. Minha desconfiança sobre o que ela sofrera crescia, alimentada por pequenos gestos: o jeito como ela se encolhia quando alguém mencionava Belo Horizonte, ou como evitava falar dos amigos de Leonardo. Era como se ela guardasse um segredo que pesava demais para ser dito. Eu queria saber, mas temia a verdade.

OS NOMES UTILIZADOS NESTE CONTO SÃO FICTÍCIOS, E OS FATOS MENCIONADOS E EVENTUAIS SEMELHANÇAS COM A VIDA REAL SÃO MERA COINCIDÊNCIA.

FICA PROIBIDA A CÓPIA, REPRODUÇÃO E/OU EXIBIÇÃO FORA DO “CASA DOS CONTOS” SEM A EXPRESSA PERMISSÃO DOS AUTORES, SOB AS PENAS DA LEI.

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Foto de perfil de Mark da NandaMark da NandaContos: 297Seguidores: 683Seguindo: 27Mensagem Apenas alguém fascinado pela arte literária e apaixonado pela vida, suas possibilidades e surpresas. Liberal ou não, seja bem vindo. Comentários? Tragam! Mas o respeito deverá pautar sempre a conduta de todos, leitores, autores, comentaristas e visitantes. Forte abraço.

Comentários

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Não sou de criticar quem comenta até porque estamos numa democracia, portanto respito todas as opiniões, massssss. !!!!

Pessoal , este conto é terrivelmente prazeroso de ler porque é isso que nós fascina , a ruptura do casal de namorados que se apaixonou e entrou uma outra pessoa na vida deles , ok , até aí tudo bem , mas vamos aos motivos , uma menina que está numa cidadezinha bem pequena quer voar , conhecer novos ares e se sentir empolderada.

A viagem dela a beaga e do Paulinho a Goiás acaba mudando todo o conto pq eles ganham experiência.

A Emilinha e o Paulinho são outras pessoas depois de um ano .

E o coração esse fdp que manda na gente as vezes calha de aprontar com pessoas que nos machucaram .

Eu posso lhe garantir que este conto vai ser um dos melhores da casa pq sei que Mark na hora de bater um pênalti Ele olha pra um lado e bate no outro .

O melhor conto que já li em toda minha vida é do Gervásio e a Lucinha , e vejo muita coisa da Lucinha na Emilinha , uma pessoa com corpo de mulher e coração de criança

Espero ansioso pelos novos capítulos e vamos aguardar ,e me perdoem pelos erros de português rs

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Vi seu comentário e fui procurar que conto é esse do Gervásio e Lucinha. Achei e to maratonando. Obrigado pela dica involuntária hahahah

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Boa Poseidon88

Fico super feliz que esteja lendo

Na minha humilde opinião este conto é o melhor que já li em minha vida .

Boa leitura 🥰

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Agora sim ficou mais interessante. Estória muito boa e no estilo que eu esperava.

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Com certeza também acho que o Paulinho não deve ficar com a Emilinha como amante,namorado ou marido, mas a magnitude dele em ajuda-la como amigo, mesmo ela não merecendo, mesmo ele não tendo obrigação, mesmo não sendo aconselhável sequer uma aproximação; na verdade ele está tendo um gesto altruísta sem igual. Seria legal se ele ajudasse a Emilinha a se levantar e quando ela estivesse bem, aparecesse uma mulher que merecesse o amor do Paulinho, realmente demonstrando amor por ele, deixando a Emilinha no vácuo, experimentando uma dose amena do que ela fez o Paulinho passar, ainda vendo durante sua vida inteira, um amor verdadeiro nascer, crescer e procriar, sabendo que poderia ter sido dela, entretanto com a percepção que ela jogou tudo no lixo por deslumbramento.

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Paulinho não está tendo um gesto autruista, ele é somente um trouxa apaixonado q está começando a enfiar os pés pelas mãos em se reaproximar de alguém q não dá a mínima pra ele, vendo a lógica do q já foi apresentado o notório q assim q surgir algo melhor Emilinha não pensaria duas vezes pra meter o pé no rabo do trouxinho, quero dizer Paulinho kkkkkk

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Mas isso é a definição de altruísmo, fazer o bem até para quem não merece, agora se isso é parte de ser trouxa ou empático, é uma questão de visão de vida particular de cada indivíduo . Para se ter idéia, o altruísta ajuda até aquele que o ofende, então cuidado hein, o Paulinho pode até te ajudar um dia. Kkkkkk

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Calma Velhaco , olha o coração rs

Gosto de ler seus comentários pq vc não fica em cima do muro rs

Vamos dar um crédito para Emilinha , me parece que ela sofreu em Beaga e está querendo se reestruturar dos traumas

Vamos aguardar os próximos capitulos

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Ainda continuo vendo na Emilinha uma pessoa egoísta e de caráter duvidoso, a cada capítulo fica mais claro q Emilinha não voltou por amar o Paulinho, mas sim por ter quebrado a cara, como já disse, repito, Emilinha quer usar o Paulinho como muleta emocional, quer ele pra salvar sua reputação e não por ama-lo, Paulinho é e sempre será a segunda opção pra ela, ela é do tipo "vou ficando por aqui até aparecer coisa melhor", e quanto a suas feridas emocionais, Paulinho não tem obrigação nenhuma em ajuda-la a se curar, pois isso é resultado das suas escolhas erradas

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Também não consigo confiar em Emilinha, ela ainda continua daquele jeito, "nem que sim e nem que não".

Precisamos saber a real dessa história, se de fato houve um abuso grave da parte de Leonardo ou se na verdade rolava mesmo uma putaria entre ela e a galera de BH e depois ela que foi trocada por outra ou perdendo espaço, ou se o negócio saiu fora do controle e pra não estragar a imagem de menina santa do interior ela decidiu pular fora.

Certo é que Emilinha esconde o jogo, ela é bem analítica e tá com medo de alguma coisa que pode surgir de BH.

Trair Paulinho ela traiu, se só foi um beijo na varando, se rolou algo a mais na casa e se os amigos do primos estavam envolvido desde aquela época já não sabemos.

Toda história tem dois lados, precisamos ouvir o lado de lá.

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Independente do q tenha acontecido em BH, acho q o Paulinho não deveria se envolver com a Emilinha novamente, ao fugir pra BH e mentir pros seus pais q tinha terminado com o Paulinho, ela deixou claro q ele era sua segunda opção e ninguém merece ser segunda opção na vida de ninguém, os problemas q ela passou ou adquiriu psicologicamente, cabe somente a ela se resolver e não tentar usar o Paulinho pra se curar ou tapar um buraco, pois se realmente aconteceu algo de ruim com ela em BH e a notícia chegar em passa vinte ela passará a ser mau vista e mau falada, por isso acho q ela está tentando se garantir com o Paulinho antes de dizer a ele tudo q se passou, e digo mais uma vez, o arrependimento dela foi de ter quebrado a cara e nao de deixar o Paulinho pra trás, se ela tivesse se dado bem, nem se lembraria do bobão q ela abandonou

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Será que Paulinhi está ajudando pq ainda senti um friozinho na barriga ?

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Para pensar...

Se Emilinha não tivesse passado pelo que passou...

Teria voltado?

Teria se arrependido?

Como diz a sabedoria popular... Só se sente falta de algo depois que perde... Ela quer Paulinho de volta depois de ter menosprezado o que ele representava

Mesmo que tenha sofrido... Ela até o momento não se mostrou digna do amor e do perdão de Paulinho

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Emilinha pagou caro por escolher a aventura incerta, a incerteza veio de forma cruel, que jamais deveria acontecer com mulher alguma, mas infelizmente é inerente a escolha que ela fez. Espero que ela consiga se recuperar em todos os sentidos, é um processo árduo, mas não é impossível, e o Paulinho está tendo uma participação vital nessa recuperação, independentemente de estar junto dela como um casal de amantes, mas oferecendo um ombro amigo e empático.

O Paulinho é um ser humano que nasceu diferenciado, que mesmo sendo oriundo de um universo machista, com feridas emocionais abertas, com raiva, com ressentimento, com decepção, com coração partido, ele teve uma atitude sublime em colocar o amor fraternal, que vem desde os tempos da tenra idade, acima de qualquer sentimento mesquinho e autodestrutivo, ele está dando uma lição na Emilinha, de empatia e responsabilidade emocional, mesmo ela não tenha demonstrando o mesmo tratamento a ele.

Tenho que admitir que se o Paulinho fosse de carne e osso, seria um ser humano mais evoluído emocionalmente do que eu. Kkkk

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Eita, lasqueira. Pelo visto, o que aconteceu com a Emilinha foi bem pior do que eu pensei, espero que o primo dela conheça o "Coronelzinho" em algum momento, ele merece.

Esse capítulo foi muito bom, como sempre. Gostei que explorou como a repercussão de uma aproximação da Emilinha com a família dele. Esperando o dia passar pra ler o próximo capítulo hahaha sinto que tô vendo uma série, tá fazendo parte do meu dia almoçar e ir ver o desenrolar dessa história no tempo ainda livre.

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