O ar de Campo Grande em uma noite de sexta-feira não era apenas ar. Era uma substância. Densa, úmida, pesada. Colava a camisa no corpo, grudava o cabelo na nuca e carregava o cheiro de asfalto quente, de fritura barata vinda das lanchonetes e da promessa distante de chuva que nunca chegava para purificar nada. A cidade-fornalha respirava sobre seus filhos, cozinhando lentamente seus segredos, suas frustrações e seus desejos mais inconfessáveis. O som agudo e irritante de uma moto com o escapamento aberto rasgava a noite, um grito mecânico de pura testosterona que ecoava pelos quarteirões.
Na varanda do apartamento de Beto, um amontoado de cadeiras de plástico brancas e uma mesa bamba serviam de altar para o ritual semanal: o "esquenta". Garrafas de cerveja barata, já suando, formavam poças de condensação sobre a superfície plástica. Um celular esquecido num canto vomitava um sertanejo universitário, a batida repetitiva e a letra sobre traição e bebedeira servindo como trilha sonora para a masculinidade que ali era performada.
Lucas era um satélite silencioso nesse sistema solar. Sua cadeira estava estrategicamente um pouco mais afastada, o suficiente para pertencer ao grupo sem ser engolido por ele. Seus olhos, de um castanho escuro e profundo, eram ferramentas de observação. Ele segurava sua garrafa de cerveja com o rótulo já se desfazendo pela umidade, o vidro gelado um contraponto bem-vindo ao calor que emanava de sua própria pele. Ele ouvia as risadas, os tapas nas costas, as bravatas. E observava Marcos.
Marcos era o sol. O centro barulhento e incandescente em torno do qual os outros – Beto e Tiago – orbitavam. Ele estava de pé, gesticulando com uma garrafa na mão enquanto contava, pela enésima vez, uma conquista sexual inflada e inverossímil. A camisa de algodão barato, de um azul já desbotado, esticava-se sobre seus ombros largos e bíceps. Cada vez que ele se inclinava para a frente para enfatizar um ponto, o tecido repuxava nas costas, revelando o contorno dos músculos dorsais. O suor escurecia o colarinho e formava uma mancha sutil entre as omoplatas.
Lucas conhecia aquele espetáculo de cor. Era uma peça de teatro, e Marcos era o ator principal, diretor e dramaturgo. Um monólogo de virilidade para uma plateia que ansiava por acreditar.
"…aí eu falei pra ela, 'Se for pra vir com essa conversinha, a gente nem começa'. E a mina, bicho, a mina abriu um sorriso que… puta que pariu." Marcos jogou a cabeça para trás e riu, uma risada gutural, performática. A veia em seu pescoço saltou, uma linha pulsante de vida e sangue quente sob a pele bronzeada.
Foi nesse momento, no auge de sua performance, que aconteceu. Como sempre acontecia. O olhar de Marcos, varrendo a pequena plateia de amigos, escorregou e, por uma fração de segundo, cravou-se no de Lucas.
Não foi um olhar casual. Nunca era. Havia uma pergunta ali, uma provocação afiada. Era um teste. 'Você tá vendo? Tá vendo como eu sou homem? Tá vendo como eu como mulher?' Mas por baixo dessa camada de desafio, havia outra coisa. Algo mais sujo, mais desesperado. Uma busca por… algo. Uma reação que fosse. Desprezo, raiva, talvez até inveja. Qualquer coisa que provasse que Lucas estava prestando atenção.
E Lucas sempre estava.
Ele não desviou o olhar. Sustentou o de Marcos com uma calma fria, quase clínica. Dentro de si, no entanto, uma corrente elétrica percorria sua espinha. Era uma mistura nauseante e viciante de fascínio e desprezo. Ele via a armadura de Marcos, cada placa de metal forjada em piadas machistas e arrogância, mas via também as rachaduras. Via o garoto inseguro por trás do homem que gritava. E era essa visão, essa dissecação silenciosa, que o prendia.
Seu olhar desceu, lento, deliberado. Passou pela veia pulsante no pescoço de Marcos, pelo pomo-de-adão que subiu e desceu quando ele engoliu em seco, pelo suor que brilhava na clavícula exposta pelo colarinho aberto. Demorou-se na mancha de umidade que se espalhava em seu peito, imaginando o calor que emanava dali, o cheiro de pele, suor e do perfume amadeirado barato que ele usava.
A mente de Lucas era um arquivo. Ele catalogava cada detalhe de Marcos com uma precisão obsessiva. A maneira como ele roía a cutícula do polegar quando pensava que ninguém estava olhando. O jeito como seus olhos escureciam de raiva antes de ele explodir em uma piada homofóbica. A tensão em sua mandíbula quando Lucas falava com outro cara no bar.
Marcos, sentindo o peso daquela análise silenciosa, pareceu vacilar. A história perdeu o fôlego. Ele pigarreou, virando-se de volta para Beto e Tiago, que não haviam percebido nada. A energia em seu corpo mudou. A performance expansiva deu lugar a uma agitação contida. Ele precisava recuperar o controle.
"Falando em coisa esquisita," Marcos disse, a voz um pouco mais alta que o necessário, quebrando o fluxo da conversa anterior. "Outro dia na academia, tinha um viado me olhando no vestiário. Puta merda, cara. Vontade de chegar e quebrar a cara do maluco."
Beto e Tiago riram, um riso de concordância, de cumplicidade masculina. "Tem que ficar esperto mesmo," disse Tiago, acenando com a cabeça.
O comentário pairou no ar denso da varanda, uma granada lançada diretamente no colo de Lucas. Ele sentiu o impacto, uma onda de calor subindo por seu pescoço. Era sempre assim. Uma provocação, uma estocada para testar suas defesas. Anos atrás, aquilo o feriria, o faria recuar. Agora, era apenas parte do jogo sujo que eles jogavam sem nunca admitir.
Lucas não reagiu. Ele ergueu a garrafa de cerveja aos lábios e tomou um gole longo e lento, seus olhos fixos em Marcos por cima da boca da garrafa. O silêncio dele era uma resposta mais poderosa do que qualquer insulto. Era um espelho. Um espelho que dizia: 'Eu sei o que você está fazendo. E isso é patético.'
O olhar de Lucas era uma ofensa. Ele não se encolhia, não desviava, não mostrava a ferida. Ele observava, dissecava, e em seu silêncio havia uma forma de poder que desequilibrava Marcos completamente. Porque o silêncio de Lucas o expunha. Exigir uma reação de Lucas e não obter nada era como gritar para um abismo e ouvir apenas o eco da própria voz desesperada.
A cor sumiu levemente do rosto de Marcos. A raiva em seus olhos era genuína agora, não mais parte da performance. Era a fúria de quem se sente visto. De quem tem o blefe exposto. Ele deu um passo à frente, sua postura sutilmente agressiva, o corpo grande parecendo preencher todo o espaço da varanda.
"Que foi, Lucas? Perdeu alguma coisa aqui?" A voz dele era um rosnado baixo, a camaradagem falsa evaporando completamente.
O sertanejo no celular pareceu distante. O zumbido da cidade, um mero ruído de fundo. Naquele momento, a varanda inteira se resumia ao espaço elétrico entre os dois. Beto e Tiago ficaram em silêncio, finalmente percebendo que algo mais estava acontecendo.
Lucas baixou a garrafa lentamente, pousando-a na mesa com um clique suave. Ele não se levantou. Permaneceu sentado, o que, de alguma forma, lhe dava o controle da situação. Ele ergueu o rosto, e um sorriso mínimo, quase imperceptível e carregado de veneno, tocou o canto de sua boca.
"Não perdi nada, Marcos," ele disse, a voz calma, quase um sussurro, mas cortante como vidro. "Estava só pensando em como algumas pessoas precisam gritar bem alto pra tentar convencer a si mesmas do que elas são."
O golpe foi cirúrgico. Direto, preciso, no centro da insegurança que Lucas sabia que existia.
O ar estalou. O rosto de Marcos se fechou numa máscara de fúria pura. Ele deu mais um passo, o peito quase tocando os joelhos de Lucas. O cheiro dele – suor, cerveja, a fragrância barata – envolveu Lucas como uma mortalha. Era um cheiro animal, um cheiro de confronto. Os nós dos dedos de Marcos estavam brancos de tanto apertar a garrafa. Por um instante, o mundo pareceu prender a respiração. A violência era uma possibilidade real, uma entidade viva pairando entre eles.
Mas então, Marcos olhou nos olhos de Lucas. E o que ele viu ali não foi medo. Foi um convite. Um desafio sombrio e conhecedor. Um olhar que dizia: 'Vá em frente. Tente. Vamos ver onde isso termina.'
E naquele olhar, a raiva de Marcos se chocou com algo mais. Confusão. Desejo. Um pânico vertiginoso. Era a mesma vertigem que ele sentia ao olhar do alto de um prédio, a atração terrível pelo abismo. Ele queria quebrar Lucas. E queria ser quebrado por ele.
Ele recuou. Apenas um passo, mas foi uma derrota. A energia bestial se dissipou, deixando para trás um constrangimento pesado. Ele forçou uma risada, um som oco e falso.
"Tá louco, porra. Viaja não." Ele se virou para os outros, que olhavam sem entender. "Esse cara é muito esquisito. Vamos descer, tomar uma no posto. Cansei desse ar parado."
Ele não esperou por uma resposta. Atravessou a porta da sala e sumiu pelo corredor, sua retirada tão barulhenta e desajeitada quanto sua presença.
Tiago e Beto trocaram um olhar confuso e seguiram-no, deixando Lucas sozinho na varanda.
O silêncio que ficou era diferente. Não era mais tenso. Era um silêncio de rescaldo, de cinzas assentando após a explosão. O sertanejo continuava a tocar, ignorante do drama. Lucas permaneceu imóvel por um longo momento, o coração martelando contra as costelas, uma adrenalina amarga e doce correndo em suas veias.
Ele olhou para a cadeira vazia onde Marcos estivera, para a garrafa de cerveja suada que ele deixara para trás. Estendeu a mão e tocou a garrafa. Estava quente. Quase na mesma temperatura da pele.
Ele fechou os olhos. O cheiro de Marcos ainda estava no ar. Um cheiro de luta e de desejo. Um cheiro de promessa. A noite de Campo Grande continuava a sufocar lá fora, mas pela primeira vez, Lucas sentiu que podia respirar. A batalha silenciosa daquela noite havia terminado. E ele sabia, com uma certeza que arrepiava sua pele, que a guerra estava apenas começando.
A retirada de Marcos da varanda não foi um fim, mas um rearranjo de peças no tabuleiro. A frase dele, "Cansei desse ar parado", era uma confissão. O ar não estava parado; estava elétrico, saturado com a tensão que ele mesmo criara e da qual precisava fugir. A sugestão de descer para a conveniência de um posto de gasolina foi aceita com o alívio de quem escapa de uma sala onde a briga é iminente. Para Beto e Tiago, era uma mudança de ares. Para Marcos, uma troca de campo de batalha. Para Lucas, era apenas adiar o inevitável.
O choque térmico foi a primeira agressão. Sair do bafo quente e úmido da noite de Campo Grande para o frio artificial e cortante do ar-condicionado da loja de conveniência era como mergulhar em água gelada. A luz branca e impiedosa dos painéis de LED no teto eliminava todas as sombras, expondo a gordura nos azulejos, as marcas de dedo nos vidros dos freezers e a expressão tensa no rosto de cada um. O ambiente era um purgatório de transição: o zumbido constante e grave dos refrigeradores, o cheiro de gasolina misturado ao de salgado velho sendo reaquecido no micro-ondas, e o som de motores de carros entrando e saindo do pátio, cada um com sua própria trilha sonora vazando pelas janelas abertas.
O grupo se moveu em direção às geladeiras, um balé desajeitado de homens que não sabiam mais como ocupar o mesmo espaço. Marcos, com o álcool começando a azedar em seu sistema, tentava preencher o vácuo com barulho. Sua armadura, que na varanda havia sido apenas arrogância, agora ganhava um brilho mais feio, mais agressivo.
"Puta merda, olha aquelas minas ali," ele disse, a voz alta demais para o ambiente, gesticulando com a cabeça na direção de duas garotas perto do caixa, rindo e dividindo uma garrafa de energético. "Bebendo essa porcaria pra ficar ligada a noite toda. Mulher que bebe assim não presta, bicho. É puta querendo dar pra todo mundo."
A frase caiu na atmosfera estéril com um baque surdo. Tiago deu uma risadinha nervosa, um som fraco que mal se sobrepôs ao zumbido dos freezers. Beto apenas olhou para o chão, desconfortável. Lucas, que estava pegando uma nova garrafa de cerveja, sentiu os dedos apertarem o vidro gelado com mais força do que o necessário. Ele não disse nada. Apenas registrou o comentário, arquivando-o junto com as outras evidências da podridão que corroía Marcos por dentro. A misoginia dele era a preliminar, o aquecimento para o ataque principal que Lucas sabia que viria. Era sempre assim. O ódio dele era um espectro; precisava tocar em todas as cores.
Lucas se encostou em uma das gôndolas de salgadinhos, abrindo sua cerveja no abridor fixado na lateral. O silêncio dele continuava a ser uma presença incômoda, um buraco negro que sugava a energia barulhenta de Marcos.
E então, o gatilho.
Um carro mais antigo, um Celta rebaixado, passou lentamente em frente à loja, o som de um pop eletrônico pulsando de dentro. As luzes dos faróis varreram o interior da conveniência por um instante, iluminando o rosto dos dois rapazes no banco da frente. Um deles, o motorista, disse algo e o passageiro riu, a cabeça jogada para trás de uma forma livre e desinibida.
O rosto de Marcos se contorceu numa careta de repulsa visceral.
"Olha lá que nojo," ele cuspiu, a palavra "nojo" saindo sibilada, cheia de veneno. "Dois viadinhos desfilando. Na moral, essa porra tinha que ser doença. Um dia eu ainda pego um desses na rua e quebro na porrada, só pra ver se vira homem de verdade."
Se a misoginia fora um baque surdo, a homofobia foi uma explosão. As palavras pairaram no ar frio e clínico, sujas, violentas, irrevogáveis. Elas não eram apenas uma opinião; eram uma promessa de violência, um manifesto de ódio. E embora fossem dirigidas ao carro que já ia longe, cada sílaba foi uma bala disparada à queima-roupa contra Lucas.
Desta vez, a câmera imaginária do universo focou inteiramente em Lucas. O zumbido dos freezers pareceu recuar. O cheiro de gasolina desapareceu. Tudo o que existia era o eco daquelas palavras e a quietude que se seguiu.
Ele não se moveu. Não por choque, não por medo. Era algo diferente. Era a calmaria no olho de um furacão interior. Uma fúria tão imensa e tão profunda que se tornava perfeitamente imóvel, perfeitamente silenciosa. Seu rosto, sob a luz branca e cruel, era uma máscara de controle gélido. A mandíbula estava tão apertada que um pequeno músculo tremia perto da orelha. Seus olhos, antes observadores, agora eram pedaços de ônix, frios e duros. O desprezo e o fascínio haviam sido incinerados, e em seu lugar restava apenas uma chama fria de determinação.
Ele ergueu a garrafa de cerveja aos lábios. O movimento não foi rápido nem lento. Foi deliberado. Cada centímetro do trajeto da mão até a boca foi um ato de contenção, um exercício de poder sobre os próprios tremores. Seus olhos, por cima da borda de vidro da garrafa, nunca deixaram o rosto de Marcos.
Era um silêncio ensurdecedor. Um silêncio que gritava mais alto que qualquer insulto. Um silêncio que absorvia todo o ódio de Marcos e o devolvia, polido e afiado, na forma de um julgamento mudo.
Marcos percebeu o olhar. Ele viu a mudança. E, em sua arrogância encharcada de álcool, ele interpretou errado. Viu o silêncio não como a preparação para a guerra, mas como a rendição. Ele achou que tinha vencido. Que finalmente tinha conseguido quebrar Lucas, que o tinha encurralado com seu veneno.
Um sorriso de canto, lento e provocador, espalhou-se pelo rosto de Marcos. Era um sorriso feio, triunfante. Ele ergueu a própria garrafa num brinde zombeteiro, um gesto que dizia: 'Te peguei, seu viado. Te atingi.'
Lucas terminou o gole. O líquido gelado desceu por sua garganta, mas ele não o sentiu. Ele sentia apenas o fogo em seu peito. Ele baixou a garrafa, o olhar ainda cravado em Marcos. E então, com uma calma que era a coisa mais violenta na sala, ele se desencostou da gôndola.
Ele se endireitou, o corpo se movendo com uma fluidez contida, como um predador que finalmente decide atacar.
Sem dizer uma única palavra.
Sem um único olhar para Beto ou Tiago.
Ele começou a caminhar.
Ele passou por Marcos. Tão perto que o tecido de sua camisa roçou no braço de Marcos. Por uma fração de segundo, o calor do corpo dele atravessou as duas camadas de pano, um contato ínfimo e carregado de uma eletricidade mortal. Marcos estremeceu com o toque, o sorriso vacilando em seu rosto.
Lucas não parou. Continuou sua caminhada em linha reta, um caminho de propósito súbito, passando pelo caixa, e empurrou a porta que levava ao corredor dos banheiros. A porta rangeu e se fechou atrás dele, o som cortando o silêncio tenso.
Ele não estava fugindo. Ele não estava se escondendo.
Ele estava escolhendo o próximo campo de batalha. Um lugar menor. Mais fechado. Sem plateia. Um lugar onde o silêncio e as palavras teriam um peso diferente.
Na loja, Beto e Tiago olhavam para a porta do banheiro e depois para Marcos, sem entender. Marcos ficou parado, o sorriso provocador congelado no rosto, mas uma nova centelha de incerteza em seus olhos. Ele tinha jogado a isca, e a presa a tinha engolido. Mas agora, a linha estava esticada, e ele não tinha certeza do que exatamente estava sendo puxado do abismo.
O banheiro fedia. Era um odor complexo e nauseante, uma mistura do cheiro químico e agressivo de desinfetante barato tentando, sem sucesso, mascarar o cheiro azedo de urina velha e algo mais, um cheiro de umidade e bolor vindo do rejunte encardido dos azulejos. O chão estava úmido, pegajoso sob a sola do sapato de Lucas. Uma única lâmpada fluorescente no teto piscava intermitentemente, lançando clarões erráticos que faziam o espaço apertado pulsar como um nervo exposto. Cada vez que a luz falhava, a escuridão durava uma fração de segundo a mais, um microssegundo de breu total antes de voltar a iluminar o mictório amarelado e a pia trincada. Do lado de fora, os sons da conveniência chegavam abafados, distantes, como se viessem de outro mundo. Aqui dentro, o universo era claustrofóbico, íntimo e sórdido.
Lucas estava parado em frente à pia, mas não se via no espelho manchado. Seus olhos estavam desfocados. Ele abriu a torneira e a água saiu com um chiado asmático. Mergulhou as mãos sob o fio de água fria, o choque do metal gelado e da água em sua pele servindo para ancorá-lo. Ele não estava se limpando. Estava se armando. Cada segundo que passava, o álcool e anos de raiva acumulada fermentavam em seu sangue, decantando em uma coragem fria e letal.
A porta rangeu, abrindo-se.
Marcos entrou. Ele não olhou para Lucas, fingindo uma indiferença que a rigidez de seus ombros desmentia. Caminhou direto para o mictório, o som de seu zíper sendo aberto ecoando no pequeno espaço. O silêncio que se instalou era pesado, denso, quebrado apenas pelo som baixo do mijo dele contra a porcelana e pelo zumbido irregular da lâmpada.
Lucas fechou a torneira. O silêncio se tornou absoluto. Ele secou as mãos lentamente na calça jeans, seus movimentos deliberados, cheios de um propósito que fazia o ar vibrar. Marcos terminou, sacudiu-se e subiu o zíper com um puxão brusco. Ele se virou, pronto para sair, e parou.
Lucas estava parado na frente da porta. Bloqueando a saída. Seu corpo não era grande como o de Marcos, mas naquele momento, sua postura o fazia parecer uma muralha.
Marcos tentou a única defesa que conhecia: o escárnio.
"Tá perdido, princesa?" A voz dele era uma faca cega, tentando cortar. "O banheiro feminino é do outro lado."
Lucas não se moveu. Um sorriso que não tinha nada de humor, um simples repuxar de lábios, tocou sua boca. Sua voz, quando veio, era baixa, quase calma, mas cada palavra era um estilhaço de vidro.
"Você fala tanto de nojo, de doença..." ele começou, a voz ressoando estranhamente na acústica dos azulejos. "Grita pro mundo o quanto você odeia viado. Mas você não odeia, Marcos. Você quer ser um."
A acusação o atingiu em cheio. Marcos riu, mas o som foi um espasmo nervoso, oco. "Você bebeu demais, seu doente. Sai da minha frente." Ele deu um passo, esperando que Lucas recuasse.
Lucas não recuou. Em vez disso, deu ele mesmo um passo à frente, invadindo o espaço pessoal de Marcos, diminuindo o mundo a apenas os dois naquele cubículo fétido. O cheiro de Marcos – suor, cerveja, o perfume barato agora azedado – era forte, quase sufocante.
"Doente?" A voz de Lucas era um veneno sussurrado. "Doente é passar a vida inteira querendo chupar um pau e ter que xingar todo mundo que tem a coragem de fazer isso em voz alta. Você não me engana." O olhar de Lucas era como o de um legista, examinando um cadáver, vendo todas as verdades podres por baixo da pele. "Todo esse seu barulho, toda essa sua raiva... é tesão. É desejo reprimido. Você me olha na rodinha dos amigos, Marcos. Eu sinto seu olho nas minhas costas no vestiário da academia. Você me seca, porra. Você tá louco pra provar, não tá? Louco pra saber qual é o gosto."
A verdade era uma arma física. Marcos cambaleou para trás, as costas batendo na parede fria. Ele estava encurralado, exposto sob a luz piscante que revelava o pânico em seus olhos. Sua identidade, construída com tanto esforço sobre pilares de machismo e homofobia, estava ruindo. Restava apenas a violência.
"Eu vou quebrar a sua cara, seu filho da puta." O rosnado foi desesperado, o último recurso de um animal acuado.
Ele empurrou. A mão grande e pesada se chocou contra o peito de Lucas, um ato de repulsa, de negação, de pânico.
Mas no instante do empurrão, algo em Lucas, mantido sob rédeas por uma vida inteira, se partiu.
Ele reagiu com uma velocidade inesperada, quase bestial. A raiva lhe deu uma força que Marcos jamais imaginaria que ele possuía. Em vez de ser jogado para trás, Lucas usou o impulso do empurrão, girando e agarrando Marcos pela gola da camisa com as duas mãos. Ele torceu o tecido, puxou e, com um urro baixo e gutural, o jogou com toda a força contra a parede de azulejos ao lado da pia.
O impacto foi um baque surdo e úmido. A cabeça de Marcos bateu de leve nos azulejos, não o suficiente para machucar seriamente, mas o suficiente para chocá-lo, para tirar seu fôlego com um arquejo agudo. O choque da força de Lucas, da súbita e total inversão de poder, o paralisou.
Antes que Marcos pudesse sequer processar, Lucas colou seu corpo no dele. Prensou-o contra a parede com o peso de seu próprio corpo, a coxa forçando entre as pernas de Marcos, o peito contra o dele. Marcos, o grande e forte Marcos, estava imobilizado.
O rosto de Lucas estava a centímetros de distância. O hálito dele, com cheiro de cerveja e fúria, batia na pele de Marcos. A luz fluorescente piscou, iluminando os olhos de Lucas, e o que Marcos viu ali o aterrorizou e, em algum lugar profundo e inconfessável, o excitou. Era uma mistura incandescente de ódio puro e de um desejo tão voraz que parecia fome.
Lucas sussurrou, e a voz não era mais humana. Era rouca, um rosnado vindo do fundo da garganta, a vibração passando por seu peito e entrando no de Marcos.
"Quebrar minha cara?" ele sibilou, a boca quase tocando a de Marcos. "Ou quebrar meu cu? Decide, porra."
O quadril de Lucas pressionou sutilmente contra o de Marcos, um movimento mínimo, mas inequívoco.
"É isso que você quer, não é? Um viado pra te mostrar como é? Pra te fazer sentir o nojo que você tanto ama?"
A cena congelou. O tempo parou naquele cubículo fedorento. Marcos estava prensado contra os azulejos frios e encardidos, sua respiração ofegante, os olhos arregalados em choque, medo e algo mais... uma faísca de rendição aterrorizada. Sua força era inútil. Seu corpo, que ele usava como arma e escudo, agora estava subjugado.
Lucas, o observador silencioso, o gay reservado, estava em uma posição de poder absoluto. Sua mão, com os nós dos dedos brancos, apertava a camisa de Marcos, o tecido esticado até o limite. Seu corpo era uma prensa, sua presença, uma dominação total. O ar entre eles não era mais ar. Era uma promessa. A promessa de violência. A promessa de sexo. A promessa de que Marcos finalmente provaria o gosto do próprio nojo, e que Lucas estaria lá para fazê-lo engolir.
A luz piscou uma última vez, mergulhando-os na escuridão por um segundo que durou uma eternidade.
O tempo se partiu e se refez no cubículo fétido do banheiro. Por um instante que se esticou por uma eternidade, eles permaneceram congelados naquela posição de poder e submissão. Lucas, a personificação da fúria e do desejo, prensando Marcos contra os azulejos frios. Marcos, o monumento de masculinidade tóxica, desmoronado, com os olhos arregalados, vendo seu reflexo distorcido no brilho febril do olhar de Lucas.
A voz de Lucas ainda ecoava no ar, as palavras flutuando como esporos venenosos. "Pra te fazer sentir o nojo que você tanto ama?"
A resposta de Marcos foi uma pulsada em seu pau entregando toda a excitação do momento e a confirmação para Lucas e isso você pode acabar de ler em: https://privacy.com.br/@Regard