No trote do peão - 7

Um conto erótico de Hollister
Categoria: Gay
Contém 2255 palavras
Data: 28/07/2025 20:21:34
Assuntos: Amor, Fazenda, Gay, peão, Romance

As manhãs estavam começando a esfriar, e cada nova camada de roupa que eu vestia parecia um reflexo do que eu tentava esconder por dentro.

Voltar pra casa depois daquele mês na fazenda foi como deixar uma parte de mim lá, enterrada na terra batida daquela estrada longa. Quando cheguei, minha mãe estava no sofá, de olhos atentos à TV, mas virou o rosto na mesma hora.

— Ué, cadê a Bárbara? — ela perguntou, surpresa.

— Vai ficar mais uns dias com o Diego. Eu precisava organizar minhas coisas antes da volta das aulas — respondi, jogando a mochila no chão e forçando um sorriso.

Ela não insistiu. Talvez tenha sentido o tom na minha voz. Ou apenas me conhecido bem o suficiente pra saber que alguma coisa estava fora do lugar.

Os dias seguintes foram silenciosos. Voltar pra rotina depois de tudo parecia uma tentativa frustrada de calçar um sapato que não servia mais. As lembranças da cabana, da pele do Francisco, do seu olhar perdido entre o medo e o desejo… tudo aquilo ficou preso em mim como um cheiro que não se vai.

No terceiro dia, já de noite, ouvi batidas na porta. Era Bárbara. Ela tinha voltado.

— Trouxe chocolate quente — ela disse, levantando a garrafinha térmica com um sorriso gentil. — E perguntas também.

Nos sentamos no sofá. Ela serviu as xícaras. A fumaça saía quente, mas por dentro, eu continuava gelado.

— Por que você foi embora daquele jeito, Samuel?

Olhei pra caneca, depois pra ela.

— Porque eu sabia que ele não ia conseguir me segurar.

Ela suspirou.

— Eu fiquei com medo que você estivesse magoado.

— Eu tô. Mais comigo do que com ele. Eu... precisava ir. Ele começou a me tratar como se nada tivesse acontecido. Como se tudo fosse segredo. Me tratou como um mero “convidado” na frente dos outros... era como se aquilo não tivesse sido real.

— Ele ficou sem entender sua partida. Não falou com ninguém direito depois disso. Se fechou de um jeito... até os funcionários comentaram. E olha que eles veem de tudo por lá.

Eu não respondi. Só bebi mais um gole do chocolate e esperei.

— Você sabe o quanto meu irmão é complicado, Sam. Ele não sabe lidar com sentimentos. O nosso pai nunca deixou ele ser quem ele queria. Ele carrega tanta coisa guardada, tanto medo de se perder em algo mais profundo… — ela disse, com os olhos fixos na parede — … que ele se prende onde é raso. E contigo, não é raso. Nunca foi.

Aquela frase me pegou em cheio. Eu me levantei, agradeci o chocolate, e só disse:

— Tá frio hoje, né?

— Tá, Samuel. E vai esfriar mais.

Ela foi embora.

O tempo mudou de verdade. O outono chegou inteiro. As aulas voltaram, e eu tentei me encaixar de novo na rotina do curso de Letras. Acordar cedo, assistir às aulas, escrever resenhas, discutir autores, sorrir pra professores que nem lembravam que eu existia antes das férias.

Voltei a ir à faculdade todos os dias. Minha mãe também estava na louca rotina do hospital, e a casa ficou mais silenciosa ainda. Às vezes, eu esquecia de almoçar. Outras vezes, comia sem fome, só pra preencher o vazio.

Na terceira semana, uma tempestade chegou de repente. Estava sozinho no quarto, os cadernos abertos, um livro de Clarice Lispector virado sobre a cama. A chuva caiu forte contra o vidro da janela, e ali, naquele som, eu voltei pra cabana. Senti o cheiro da pele do Francisco, ouvi a respiração dele perto da minha, o gosto da primeira vez. E eu chorei. Pela primeira vez, de verdade. Sem tentar segurar.

Chorei de saudade, de frustração, de amor.

Na sexta-feira, fui até a lanchonete perto da faculdade. Pedi um café preto, sentei num canto com meu livro. Era a minha rotina de fuga. Ninguém me incomodava ali. Até que esbarrei num rapaz ao sair com a bandeja.

— Desculpa! — falei, apressado.

Ele sorriu, gentil, ajeitando os óculos no rosto.

— Foi culpa minha também. Fiquei distraído com o título do seu livro. Gosta de Rubem Alves?

Assenti.

— Muito. E você?

— Sou apaixonado por tudo que ele escreve. Posso sentar?

— Claro.

O nome dele era Lucas. Cursava História, morava com a irmã e também adorava livros, chuva e pão com ovo. A gente se viu mais umas três vezes na mesma semana, sempre naquela lanchonete, sempre falando sobre literatura como se o tempo fosse outro.

Toda vez que ele ria, seus olhos se fechavam um pouco. E o riso era sincero. Era leve. Era diferente. Eu percebia que ele me olhava de um jeito bom, mas sem pressa. E eu gostava disso.

Mas mesmo assim, em silêncio, ainda havia uma parte minha que queria estar cavalgando numa trilha de terra, ouvindo o som dos cascos no chão e sentindo o cheiro da pele de alguém que eu ainda não sabia como esquecer. Parte de mim queria estar cavalgando naquele peão.

As manhãs foram ficando mais frias. A luz do sol passou a entrar pela janela sem calor. E ainda assim, em meio aos casacos, cafés quentes e sopros de vento gelado no rosto, algo dentro de mim foi voltando a respirar.

Lucas começou a surgir nos momentos em que eu mais precisava e nem sabia. Ele ria fácil, fazia piada com tudo — até com o caos do transporte público ou com as filas da cantina. E parecia sempre saber quando mudar de assunto ou quando apenas ficar em silêncio.

— Quer fazer alguma coisa hoje? — ele me perguntou numa segunda-feira gelada, enquanto dividíamos uma torta de frango numa lanchonete pequena, com paredes cobertas por quadros de escritores.

— Tipo o quê?

— Tem uma exposição de capas antigas de livros ali na galeria do centro. Depois a gente pode tomar chocolate quente. Me disseram que eles têm um com pimenta que esquenta até a alma.

— Pimenta? — ri. — Você é muito esquisito.

— E você precisa de um pouco mais de esquisitice na vida.

Fui. E fui de novo na semana seguinte. E mais uma. Nos vimos quase todos os dias. Era como se Lucas tivesse encontrado uma maneira sutil de ocupar espaços que estavam vazios demais — e eu, no fundo, deixei. Não por substituição, mas por sobrevivência.

Certa tarde, estávamos sentados sob um pinheiro da faculdade, livros abertos no colo e um vento gelado entre nós. Eu estava com um exemplar de "O lobo da estepe" e ele com "A insustentável leveza do ser".

— Gosta mesmo do Hesse? — ele perguntou, folheando o meu livro.

— Gosto. Mas às vezes ele dói.

— O bom da literatura é isso. Quando dói, é porque encontrou alguma coisa dentro da gente.

Olhei pra ele por alguns segundos. Tinha uma sinceridade nas palavras que me pegava desprevenido.

Numa sexta-feira, enquanto eu e Bárbara caminhávamos até o portão da faculdade, ela falou sem rodeios:

— Tá diferente, sabia?

— Como assim?

— Tá mais leve. Tá sorrindo mais. Aquele rapaz, o Lucas… vocês estão se dando bem, né?

— É só amizade — respondi, rápido demais.

Ela não insistiu, mas o nome de Francisco voltou na minha mente com uma força que me desconcertou. Dias sem lembrar dele. Ou melhor, sem permitir lembrar. Mas ali, entre passos apressados e as folhas secas no chão, percebi que o inverno finalmente tinha chegado — não só no calendário, mas também aqui dentro. O sentimento por Francisco não tinha morrido. Só estava… coberto por neve. Silencioso. Mas não morto.

Lucas começou a dar sinais. Pequenos gestos. Um toque a mais na mão quando passava o troco. O olhar que durava mais do que deveria. As mensagens no meio da madrugada com poemas curtos. Era estranho, mas confortável estar com ele, faziam três meses desde que começamos essa amizade. E então veio o convite:

— Vai ter um evento literário de inverno numa cidade vizinha, coisa de quarenta minutos de carro. Leituras, bebidas quentes, música boa. Você podia ir comigo.

— Parece coisa de casal.

— E se for? — ele sorriu.

Não respondi. Mas fui.

O evento era em um espaço de madeira, todo iluminado com luzes amareladas e sons de violino. Gente com cachecóis, xícaras de chá, olhos atentos nas leituras performáticas de poesia. Estava tudo bonito demais.

No meio de uma canção instrumental, Lucas encostou o rosto no meu ombro e ficou assim por minutos. Quando me virei, ele estava ali. Tão perto. Os olhos buscando os meus.

— Posso te beijar? — ele perguntou.

Assenti. E ele me beijou.

Foi doce. Macio. Um beijo seguro, sem ansiedade. E naquele momento, tudo pareceu certo.

Dormimos juntos naquela noite.

Fomos pro apartamento dele, onde havia livros empilhados e uma manta no sofá. Transamos devagar, com cuidado, com carinho. Era bom. Era leve. Mas tinha algo faltando.

Foi simples demais.

Quando acordei no dia seguinte, Lucas me observava do outro lado da cama, sorrindo.

— Tá tudo bem?

— Tá — menti. — Só tô com um pouco de frio.

Nos despedimos com um abraço demorado quando ele me deixou na frente de casa. Caminhei com o céu ainda opaco da manhã. Um domingo silencioso. Não encontrei ninguém na sala, subi devagar até o meu quarto.

Abri a porta com o casaco ainda nas mãos. A luz da janela iluminava parte da cadeira onde costumo deixar roupas. E ali, parado, estava Francisco.

Ele estava com uma camisa minha encostada no rosto, os olhos fechados, inspirando devagar como se tentasse guardar um pedaço meu dentro de si.

Ele estava ali. De verdade.

Meu mundo parou.

— Francisco? — sussurrei, quase sem ar.

Ele abriu os olhos devagar, surpreso, envergonhado. A camisa ainda nas mãos. Um silêncio denso se instaurou no quarto, e naquele momento, o inverno não era só uma estação — era o que existia entre nós dois.

— Eu... — ele começou, mas não completou.

Fechei a porta atrás de mim devagar. O som da maçaneta girando pareceu mais alto do que deveria. Estávamos nós dois ali, no meu quarto, depois de meses. Depois de tudo.

O mundo inteiro ficou pequeno. Só existia aquele espaço entre mim e ele. E uma centena de palavras engasgadas.

— o que faz aqui? — perguntei, minha voz baixa, quebrada pelas batidas do coração. Mas firme.

Francisco baixou os olhos. Passou a mão pelos cabelos, nervoso.

— Eu precisava... saber como você estava — disse por fim. — A Bárbara me falou que você estava bem. Mas eu não conseguia... parar de pensar.

— E cheirar minha camisa era parte disso?

Ele me encarou, sem graça, mas sem fugir.

— Era o que sobrou de você aqui.

Senti algo apertar no peito. Um misto de raiva, ternura e saudade. Muita saudade.

— Você podia ter me procurado antes.

— Eu queria. Mas não sabia se devia. Não sabia se você queria me ver. Depois que foi embora... eu senti que tinha estragado tudo.

— Eu fui embora porque você me tratou como um estranho. Como se a gente não tivesse dividido nada. Nem corpo, nem alma, nem silêncio.

Francisco sentou na beirada da cama. Os ombros curvados, a camisa ainda nas mãos.

— Você não foi um estranho pra mim. Foi o contrário. Foi o mais perto que eu já cheguei de alguém. E isso me deixou... com medo.

A raiva foi se dissolvendo no mesmo instante.

— Medo do quê?

— De me perder. De me ver naquele espelho que você segurava pra mim sem cobrar nada em troca. De me permitir amar alguém sem saber se eu conseguiria ser bom nisso. Eu não posso mais perder ninguém que amo, não sei se vou conseguir lidar se isso acontecer.

Me aproximei e me sentei ao lado dele. Não encostei. Só fiquei ali, tentando entender aquele homem que tantas vezes me afastou com os olhos, mas me buscava com o corpo.

— Você não precisa ser bom. Só precisa ser honesto.

— E se a minha honestidade for confusa?

— vai ser confusa, mas, se não permitir que as pessoas te deem afeto, te toquem além do corpo, você nunca vai encontrar a calmaria.

Ele sorriu. Um sorriso tímido. Aquele sorriso que eu via nas poucas vezes em que ele se deixava ser apenas Francisco — e não o homem forte, fechado e responsável que sempre tentava parecer.

— Você dormiu com ele? — ele perguntou de repente.

— como você sabe dele?

— eu tenho... Eu tenho visto fotos de vocês na Internet.

Demorei a responder. Mas respondi.

— Sim.

Ele assentiu devagar, como se esperasse por aquilo. Seus olhos marejaram, mas ele não desviou.

— E foi bom?

— Foi... tranquilo.

— Mas?

— Não vamos fazer isso, Francisco.

O silêncio voltou, mas dessa vez era outro. Mais leve. Mais honesto. Mais cheio de tudo aquilo que a gente nunca disse com todas as letras.

Me aproximei e toquei o ombro dele. Ele virou o rosto devagar e nossos olhos se encontraram, sem mais barreiras.

— Eu ainda gosto de você, Francisco. Mesmo depois de tudo. Mesmo com o frio. Mesmo com a distância.

— Eu não parei de gostar nem por um segundo. Só não sabia o que fazer com isso.

Ele se inclinou, devagar. Encostou a testa na minha. E ali, entre a respiração quente dele e o cheiro ainda familiar do seu corpo, tudo voltou. O rio. A cabana. As mãos trêmulas. O amor que se recusava a se apagar.

— Me deixa tentar de novo? — ele sussurrou. — Dessa vez, sem fugir.

Fechei os olhos e respirei fundo. Coração acelerado.

Levantei em silêncio, saí do quarto, do meu quarto e o deixei ali. Agora era eu quem estava confuso, quem estava com medo de me permitir voltar a tudo o que tinha me magoado, voltar a sentir aquela dor novamente.

Fora do quarto, o inverno continuava soprando pelas frestas da cidade. Mas ali dentro, pela primeira vez em semanas, eu senti calor.

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 20 estrelas.
Incentive Hollister a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários

Foto de perfil genérica

Não consegui encontrar no wattpad... nas não estou me aguentando pra ver esses dois juntos.

1 0
Foto de perfil genérica

Você pode encontrar buscando pelo título do livro, o mesmo que está aqui ou no link: https://www.wattpad.com/story/398332629?utm_source=android&utm_medium=link&utm_content=story_info&wp_page=story_details_button&wp_uname=ViictorCorrea

1 0
Foto de perfil genérica

Acabei de ler. Não estou me aguentando pra saber o final.

0 0
Foto de perfil de Jota_

Que capítulo intenso!

Hollister, você escreve tão bem que eu mergulho na história já no primeiro parágrafo. Esse estilo avassalador me lembra de outro autor aqui que anda meio sumido, conhece? https://www.casadoscontos.com.br/perfil/265171

1 0
Foto de perfil genérica

Não conhecia. Fico feliz que tenha gostado, espero poder te ver lendo também no Whatpad. Abraços.

0 0
Foto de perfil genérica

Verdades inconvenientes,desejos obscuros sonhos inacabados. Amores fluidos. Sonhos a serem concretizados.

1 0
Foto de perfil de Danttas

Eu super entendo o Samuel, pois estou passei recentemente pela mesma coisa, me permiti viver um ciclo que já estava encerrado e só depois percebi que deveria ter permanecido encerrado.

1 0
Foto de perfil genérica

MAS QUE VIADAGEM. QUANDO UM QUER O OUTRO NÃO E QUANDO O OUTRO QUER UM NÃO QUER. ME POUPE.

1 0
Foto de perfil genérica

Valter, entendo a frustração, mas faz parte da história. O objetivo é mostrar que as vezes o desejo e o medo andam lado a lado.

Vai ficar cada vez mais apaixonante. Pode confiar.

0 0