Naquela noite, enquanto arrumava minhas coisas para a viagem, as palavras de Barnabé duelavam com as dela, ecoando advertências e medos que eu já carregava. Emilinha, com sua confissão, havia plantado em mim uma raiva cruel: era ela uma vítima, precisando de proteção, ou uma mulher que se entregou consciente aos prazeres da carne? Eu não sabia, mas esperava não ter mais o que descobrir, pois o meu coração, esse eterno sofredor, não teria condição de aguentar mais uma decepção.
[CONTINUANDO]
O sol, sempre tão generoso em sua luz, agora se escondia atrás de nuvens cinzentas, como se o céu soubesse que algo estava por vir. Parecia, naquela última semana antes da minha partida, conspirar para me manter preso às tramas de Passa-Vinte. A casa do meu pai, Ciro, já estava quase totalmente desocupada e alguns pedreiros já recebiam as orientações para começar a reforma assim que partíssemos. Meu pai, mais calado que de costume, parecia dividido entre a empolgação de Barnabé e a melancolia de deixar Passa-Vinte, onde cada árvore e cada cerca carregavam suas memórias, principalmente o cemitério local, última parada da minha mãe, local em que meu pai se refugiava quase diariamente nessa última semana.
Eu, por minha vez, carregava Emilinha. Não a Emilinha que agora atravessava a vila sob olhares tortos e cochichos mal disfarçados, mas a Emilinha do passado, a menina de olhos sonhadores que corria comigo pelas veredas, rindo como se o mundo fosse eterno. Sua confissão, naquela tarde no pesqueiro do Paulo do Seu Pedro, havia me partido ao meio. De um lado, o menino Paulinho queria protegê-la, curar aquela alma ferida pelo tal Leonardo e seus comparsas. De outro, o Coronelzinho, endurecido pelo sol de Goiás e pelas lições rústicas de Barnabé, via nela uma mulher que escolhera o abismo, que se entregara a prazeres que eu não podia compreender. Suas palavras, aquele “Eu ainda te amo, Paulinho”, ecoavam em mim como um sino rachado, que ressoa, mas não consola. Além disso, essa minha nova “persona” coronelesca, ansiava por encontrar com Leonardo algum dia, para que eu pudesse ensiná-lo como se deve tratar uma mulher.
Naquela manhã de sábado, o ar estava pesado, com um cheiro de chuva que teimava em não cair. Eu voltava da venda do Seu Zé Formoso, carregando um saco de café e um embrulho de linguiça pura, quando vi, ao longe, uma Brasília amarela subindo a estrada de terra que levava à vila. Não era um carro comum em Passa-Vinte, onde as carroças reinavam. A poeira que levantava parecia carregar um presságio, e meu coração, já inquieto, apertou no peito.
A Brasília parou em frente à venda e dela desceram três figuras. O primeiro, que saiu do volante, era um homem alto, de pele clara, com cabelo curto e uma barba rala que tentava dar seriedade ao rosto. Vestia uma camisa social branca, calça preta, gravata e um chapéu de aba reta que parecia gritar “sou um homem de Deus”. Mas havia algo em seu porte, uma curiosidade, uma preocupação... algo que não cheirava bem e não era a bosta de cavalo que eu havia pisado há pouco. Dois jovens, com camisas de mangas compridas e bíblias na mão, desceram também do bólido amarelo e o seguiram como sombras, com olhares subservientes que mais pareciam temor que devoção. O homem do volante olhou ao redor, como quem avalia o palco antes de uma apresentação, e seus olhos cruzaram com os meus, parado na esquina da venda e o que vi? Um brilho nos olhos e um sorriso ensaiado. Meu sangue gelou! Era ele, Leonardo, o talzinho de Beagá, o playboy que roubara Emilinha, que a fizera se perder no mundo. Entretanto, agora, não vinha num jipe reluzente, como outrora, mas numa Brasília caindo aos pedaços, com um ar de quem trocara o charme da cidade por uma máscara de santidade:
- Paulinho! - Chamou ele, com uma voz melíflua, carregada de uma humildade que soava falsa como nota de quatro cruzeiros: - Irmão, vim em missão de paz, pela graça do Senhor!
Senti meu sangue ferver e larguei o saco de café, que se espatifou no chão. O Coronelzinho, moldado pelo sol e pelas lições de Barnabé, tomou as rédeas. Leonardo, pastor!? O manipulador que usaria as pessoas como brinquedos, agora vinha com Bíblia na mão, falando de Deus? Minha vista escureceu enquanto eu seguia em sua direção e antes que pudesse pensar, meu punho já voava em direção ao rosto dele. O soco acertou o queixo e Leonardo se espatifou como um saco de batatas no chão, levantando poeira com um gemido que mais parecia ensaiado. Os dois cooperadores gritaram, tentando chamar a atenção, e fizeram menção de se aproximar, mas o olhar que lancei os fez recuar. Eu não era mais o menino Paulinho, que oferecia maçãs roubadas. Era o Coronelzinho, com o couro duro e o orgulho ferido:
- Paz, é, seu maldito!? - Gritei, enquanto esticava a corda de linguiça e passava a chicoteá-lo com ela: - Cê destruiu a Emilinha, seu canalha! Acabou com a vida da menina, maldito! E agora vem com essa palhaçada de pastor!? Acha que engana quem?
Açoitei o maldito com a linguiça até a pele arrebentar e carne voar para todo o lado. Depois, joguei-me sobre ele e passei a soca-lo com fúria, dessa vez no estômago. Leonardo se dobrou, tossindo, mas, mesmo ali, parecia manter aquele sorriso torto na boca, como se soubesse que cada golpe só aumentava seu palco. O povo da vila, que nunca perdia um espetáculo, começou a se reunir. Seu Zé Formoso saiu da venda, Dona Mariquinha apareceu na janela, e até o Coronel Del Rei, com seu chapéu coco, assistia de longe, com um meio sorriso. Padre Cláudio surgiu de dentro da igreja e veio ao socorro do indigente que eu socava, mas ao ver as vestes dele e dos seus asseclas, pareceu aquiescer com o meu triste espetáculo. Posso estar enganado, mas tive a impressão de ver sua mão subir em sinal da cruz para mim. Para mim! Ele estava me abençoando a surrar o crente, vê se pode... Então agora, com a proteção de Cristo e da Igreja, eu não via nada além de Leonardo, deitado na poeira, com o rosto sangrando, ainda tentando manter a pose:
- Paulinho, por favor! - Exclamou ele, segurando ambos os meus pulsos, como um mártir de novela: - Eu sei dos meus pecados! Fui um homem perdido, mas o Senhor me salvou! Vim pedir perdão à Emilinha. Não sabia que te encontraria, mas também te devo perdão. Deixa a paz do Senhor te acalmar e me ouça, por favor!
As palavras dele eram puro mel, escorrendo com a precisão de quem já convencera muitos com sua lábia, mas eu não era um dos fiéis de sua igreja fajuta. Minha raiva era um rio represado e cada soco era uma comporta que se abria:
- Perdão!? - Retruquei, desvencilhando-me das suas mãos e o segurando pelo colarinho: - Cê acha que um discurso bonito apaga o que fez com ela? Cê a obrigou, Leonardo! Deixou seus... amigos... E agora vem com essa cara de santo? Quer o meu perdão? Então, recebe...
Passei a esmurra-lo com a ira de Caim e só me faltou a pedra para o pecado ser completo:
- Paulinho, para! - Gritou uma voz e senti mãos me puxando.
Era o Seu Alfredo, com Barnabé ao lado, ambos com os olhos arregalados:
- Tá louco, rapaz? Vai matar o homem! – Gritou um deles.
- Matar!? Quero! É o mínimo que esse canalha merece! – Gritei.
Outras mãos, outros braços, vários, me tomaram e puxaram minha carcaça de cima daquele quase moribundo. Eu me debatia como se estivesse sendo levado ao cadafalso.
Leonardo, ainda no chão, limpou o sangue do lábio enquanto seus outros dois “companheiros” passavam lenços por ele todo, tentando tirar um pouco da linguiça que era feridas falsas num corpo mais falso ainda. Ele se levantou, ajudado pelos dois, que tremiam como varas verdes:
- Eu mereço, Paulinho, e te perdoo. Jesus também foi açoitado e...
- Me perdoa!? Me solta que meu pecado não acabou! – Gritei, derrubando dois e chutando três, mas o quarto, me dando um mata leão, me conteve.
Leonardo então disse, com a voz mansa, mas com um brilho nos olhos que traía sua falsidade:
- Fui um pecador, um homem vil, mas a graça divina me transformou. Vim aqui pra me redimir, pra pedir perdão à Emilinha e a todos que machuquei, e vejo que preciso ser especialmente humilde com você. Não sou mais aquele Leonardo. Agora sou um servo de Deus, guiado pela luz.
A multidão murmurava, dividida entre a curiosidade e a desconfiança. Dona Mariquinha balançava a cabeça, como se não acreditasse numa palavra, enquanto o Coronel Del Rei ria baixo, como quem reconhece um charlatão de longe. Eu tremia, o coração disparado, dividido entre a vontade de socá-lo de novo e a curiosidade de entender que jogo ele estava jogando:
- Fala então, maldito. - Cuspi as palavras: - E é melhor ser palavras boas, senão, juro por Deus que te arrasto até Beagá pra te enterrar de vez.
Ele sorriu, um sorriso que era ao mesmo tempo humilde e arrogante, como se soubesse que tinha o palco nas mãos:
- Não venho com mentiras, irmão! Vim pra consertar o que quebrei. Quero falar com a Emilinha, pedir perdão a ela, e mostrar que mudei. O Senhor me deu uma missão e Passa-Vinte é o começo. Quero trazer a palavra, ajudar a vila, curar as feridas que causei.
- Curar? Então, são essas suas palavras?- Retruquei, com um riso amargo: - Cê acha que a Emilinha vai querer te ver? Depois de tudo que cê fez?
- Isso é com ela. - Disse ele, com uma calma que me irritava ainda mais: - Só peço uma chance de falar. Se ela me rejeitar, aceitarei. Mas o perdão, Paulinho, é a chave pra libertar a alma. Não é só pra mim, é pra ela também.
Barnabé, prostrado ao meu lado, sussurrou:
- Deixa ele, Coronelzinho. Picareta de má qualidade, quebra na primeira pancada. Ele vai se enrolar sozinho. O povo de Passa-Vinte não é bobo.
Eu, mesmo bufando e relutante, assenti e deixei Leonardo ir, com seus cooperadores atrás, tal qual cachorrinhos obedientes, cambaleando para a casa de Dona Lurdes, uma crente do rabo quente que sempre encrespava com Padre Cláudio. Mas a raiva não saía de mim. Aquele homem, com sua voz doce e seus gestos calculados, não era um pastor. Era um ator, um charlatão que usava a Bíblia como escudo. E, no entanto, algo em seu olhar, um brilho que não explicava, um segredo que ele guardava, me dizia que sua vinda a Passa-Vinte não era só por perdão. Ele queria algo mais, algo que eu ainda não podia enxergar.
Naquela tarde, o boato correu mais rápido que o vento nas folhas de eucalipto. Leonardo, o agora pastor, estava na vila, hospedado na pensão da Dona Lurdes, e pregaria o perdão na praça da igreja católica com seus cooperadores. Padre Cláudio foi contra, mas o povo dizia que Cristo pregou em sinagogas, porque Leonardo então não poderia pregar na praça da igreja?
O povo, sempre faminto por novidades, lotaria a praça e ouviria suas palavras melífluas sobre salvação e redenção. Eu fiquei em casa, ajudando meu pai com os últimos preparativos de nossa viagem, tentando ignorar a inquietação que crescia em mim. Mas quando Seu Zé Formoso passou por lá, trazendo um novo saco de linguiças para a nossa viagem, trouxe a notícia que me fez parar:
- Paulinho, cê soube? O tal Leonardo tá lá na casa da Emilinha agora. Foi lá com aqueles dois rapazes, dizendo que quer conversar, pedir perdão.
Minha cabeça girou. Emilinha, recebendo Leonardo? Depois de tudo que ele fez? A imagem dela, cuidando do primo com sua bondade ingênua, enquanto ele destilava suas mentiras, me revirava o estômago:
- Como assim, na casa dela? - Perguntei, largando meus afazeres.
- É o que tão dizendo... - Respondeu Seu Zé, com um muxoxo: - Ouvi dizer que ele chegou pedindo cuidados e ela tá lá, dando os cuidado pra ele. Mas o povo tá falando, Paulinho. Uns dizem que ela tá sendo caridosa, outros... bem, cê sabe como é.
Eu sabia. Em Passa-Vinte, a caridade nunca vinha sem julgamento. Peguei o chapéu e saí, com o coração disparado, sem dizer uma palavra ao meu pai ou a Barnabé, que gritou algo sobre “não fazer besteira”. Minha cabeça era um turbilhão. Será que Emilinha acreditava naquele canalha? Será que ele estava manipulando ela de novo, com sua lábia de pastor falso? Ou seria ela, com seu coração mole, tentando encontrar redenção no homem que a destruíra?
Cheguei em passadas firmes à casa de Emilinha. A porta estava entreaberta e ouvi vozes lá dentro. Empurrei a porta, sem bater, e vi a cena: Emilinha, com um pano úmido na mão, limpava o rosto de Leonardo, que estava sentado numa cadeira, com um olho roxo e o lábio inchado. Os dois cooperadores, de pé ao lado, seguravam suas bíblias abertas, entoando hinos como se fossem curá-lo. Emilinha levantou os olhos na minha direção, assustada, e Leonardo, com aquele sorriso torto, me olhou como se nada tivesse acontecido:
- Paulinho, irmão! - Disse ele, com a voz sofredora: - Que bom que veio! Estava justamente contando à Emilinha como o Senhor me transformou.
- Cala a boca, Leonardo! - Retruquei, os punhos já cerrados: - Emilinha, que que cê tá fazendo? Esse cara te destruiu e cê tá aí cuidando dele como se fosse um coitado?
Emilinha largou o pano, os olhos arregalados com uma mistura de medo e determinação:
- Paulinho, ele veio pedir perdão. Eu sei o que ele fez, mas... ele é meu primo. Não posso virar as costas. E se ele mudou de verdade? Não posso fazer isso com um homem de Deus.
- Mudou!? - Ri, amargo: - Esse aí é um picareta, Emilinha! Olha pra ele! Cê acha que esse sorriso de santo é verdade? Ele tá te usando, como usou antes.
Leonardo ergueu as mãos, como um mártir de barro, esculpido para emocionar, mas oco por dentro:
- Paulinho, entendo sua raiva... Eu era um homem perdido, guiado pelo pecado, mas a graça divina me alcançou. – Então se voltou para Emilinha, segurando suas mãos agora: - Emilinha, você sabe, no fundo do coração, que o perdão é o caminho. Eu vim aqui pra consertar o que quebrei, pra te ajudar a curar as feridas que abri. E é em nome do senhor Jesus, Daquele que tudo pode e tudo vê, que hei de conseguir alcançar os corações dos ímpios!
- ALELUIA! – Gritaram os dois asseclas do maldito.
As palavras dele eram como mel envenenado e eu via nos olhos de Emilinha que ela queria acreditar. Mas também vi a dúvida, a mesma dúvida que me corroía:
- Emilinha, cê tá mesmo acreditano nesse “Zé Mané”? - Perguntei, a voz se elevando tamanho o descontentamento: - Ele te levou pra Beagá, te fez fazer coisas que cê não queria, te entregou pros amigos dele... E agora vem com essa conversa de Deus? Cê acredita mesmo nesse patife?
Ela hesitou, olhando de mim para Leonardo. Ficou em silêncio por um tempo, talvez pensando no que responder e no final me surpreendeu:
- Eu... não sei, Paulinho. Só sei que ele é meu primo, e tá aqui, pedindo perdão. Ele é da família e eu quero acreditar que ele mudou, mas... também não esqueço o que aconteceu. Só que, se eu não perdoar, como vou seguir em frente?
Fiquei boquiaberto e sem reação por um instante, mesmo assim olhei na direção do talzinho que tinha um leve sorriso na boca, mas ao ver que eu o encarava, abriu a bíblia e começou a falar em voz alta, encorpada, respirando com dificuldade (ou fingindo), era um teatro enfim:
- Eu... Eu mesmo sou o que apago as tuas transgressões por amor de Mim e não Me lembro mais dos teus pecados...”
- Aleluia! Aleluia! – Gritavam seus seguidores.
Vendo que eu o encarava e agora de punho fechado, Leonardo disse:
- Não sou em que digo, irmão, é Deus, através de Isaías, 43:25.
Virei-me para Emilinha, buscando algum sinal de incredulidade, de descontentamento, de que ela entendesse o que eu estava sentindo:
- Perdoar é uma coisa. – Insisti, inconformado com a cena: - Deixar ele te enganar de novo é outra.
Ela baixou a cabeça e suspirou profundamente. Continuei:
- Olha pra esses dois aí. - Apontei pros cooperadores, que pareciam mais perdidos que cego em tiroteio: - Cê acha que são fiéis de verdade? São capangas, Emilinha! Ele tá armando alguma coisa e cê tá caindo nessa de novo!
- Irmão... – Disse Leonardo, rindo baixinho um riso baixo, quase encantador, que quase me dava vontade de socá-lo outra vez: - Irmão Paulinho, sua desconfiança é natural, mas esses irmãos são servos do Senhor, como eu. Estamos aqui pra trazer a palavra, pra ajudar Passa-Vinte. E, Emilinha, eu... quero... te ajudar. Sei que te machuquei, mas agora posso te guiar, te mostrar o caminho da redenção.
Ele então tirou um embrulho de dentro de uma sacola e entregou para Emilinha que primeiro me olhou e depois pegou o embrulho, simples, sem ostentação, transpassado com alguns amarrilhos:
- É um presente desse nosso novo momento e em nome de Jesus, será eterno. SARALALAMAMBAIA!
- O quê!? – Perguntei, sem nada entender.
- É línguas... – Disse um dos seguidores do Leonardo.
- Oi!? – Insisti, levantando os ombros.
- É a língua dos anjos. O Pastor Leonardo é um escolhido...
- Ah vá... – Bufei e gritei em seguida: - CHEGA!
Avancei um passo e os cooperadores, seguidores, bajuladores, asseclas do Leonardo se encolheram, mas o talzinho não deu um único passo, mantendo apenas a pose de homem sério, colocando uma bíblia no peito, como se lhe servisse de escudo:
- Cê não vai guiar ninguém, Leonardo. Cê é um charlatão, um lobo em pele de cordeiro e se tocar na Emilinha de novo, juro que te quebro de verdade. EU TE MATO!
Ele novamente deu aquele sorrisinho, conciliador para ele, pura chacota para mim, e então fui para cima dele, mas Emilinha se colocou entre nós, as mãos erguidas no meu peito:
- Paulinho, por favor! Eu sei que cê tá com raiva, e tem razão. Mas deixa ele falar. Se for mentira, eu mesma mando ele embora. Mas se for verdade... talvez ele mereça uma chance.
Nu! Minhas vistas se escureceram por um momento. Eu parei, respirando pesado e olhei nos olhos dela. Já estava ficando com vontade de dar uns tapas nela. Só que havia ali uma súplica e não só, mas também uma força que eu não via desde os tempos de criança, quando corríamos juntos pelas veredas. O Coronelzinho via perigo em cada palavra de Leonardo, mas o Paulinho, aquele moleque de coração mole, tomou a decisão:
- Tá bom! Tá bom... – Respondi num tom mais ameno, mesmo prestes a explodir: - Fala, desgraçado... Aham! Digo... Leonardo. Pastorzinho Leonardo... E, ó, é melhor que seja verdade, porque cê tá prestes a descobrir porque me chamo Paulo e porque Passa-Vinte tem esse nome. Fala, peste ruim!
Leonardo ajeitou a gravata colete, como se preparando para um sermão, e começou:
- Emilinha, Paulinho, eu era um homem perdido. Em Beagá, vivi no pecado, na luxúria, na arrogância. Te levei por um caminho escuro, te pressionei, te fiz sentir que não tinha escolha. Fiz coisas horríveis com você e deixei que outros também fizessem, mas Deus me encontrou, no fundo do poço, quando eu não tinha mais nada. Hoje, sou pastor da Igreja da Graça Divina e minha missão é propagar a palavra de Deus, mas antes disso, eu tenho uma missão pessoal, que é reparar o mal que te causei. Quero te ajudar, Emilinha, a encontrar paz. E você, Paulinho, quero que saiba que lamento ter destruído o que vocês tinham.
As palavras eram perfeitas, ensaiadas, como um discurso de político em palanque, mas ainda assim não me convencia. Havia algo errado... O jeito como ele olhava pra Emilinha, com um brilho que não era de remorso, mas de desejo. O jeito como seus cooperadores evitavam meu olhar, como se escondessem algo, mas sempre olhavam na direção dela. Minha cabeça gritava que era uma armadilha, mas Emilinha parecia querer acreditar:
- Leonardo, eu... eu quero perdoar, mas o que cê fez... não é só pedir desculpas. Cê me mudou, me fez sentir que não valia nada. Cê me matou por dentro! Como eu posso confiar em você agora?
Ele se aproximou dela, da gente, com um gesto que parecia carinhoso e levantou a mão como se quisesse tocar seu rosto, mas isso me fez cerrar os punhos novamente. Então, ele deu um passo atrás:
- Confie no Senhor, Emilinha. Ele me transformou e pode transformar você também. Venha à tenda da igreja, no campinho de futebol, amanhã. Vamos orar juntos, curar essas feridas. E, Paulinho, você também é bem-vindo. O perdão é o caminho pra paz.
- Chega dessa lorota! - Explodi, incapaz de me conter e já dando um empurrão nele em direção à porta da casa.
- Irmão...
- Irmão coisa nenhuma, seu patife!
- Paulinho... – Disse Emilinha e, vendo que não me alcançava, subiu o tom de voz: - Paulinho!
- O que!? – Explodi com ela também: - Emilinha, cê não tá vendo? Ele tá te manipulando de novo! Esse cara não mudou! Ele tá aqui por algum motivo e não é coisa de Deus não. Tá mais com cara de coisa do tinhoso. E eu quero ele fora daqui!...
Emilinha me olhou, os olhos marejados, numa tentativa de tentar entender, talvez se aceitar:
- Paulinho, eu... eu não sei. Talvez ele esteja falando a verdade, talvez não. Mas eu preciso tentar, entende? Preciso acreditar que posso deixar isso pra trás.
- Emilinha, cê escolhe agora: ou ele, ou eu! – Bufei indo na direção dela e praticamente esfregando meu dedo em seu nariz.
Ela apenas abaixou a cabeça e deixou duas lágrimas descerem. Não me contive:
- Então tá então... Tenta sozinha. Mas, ó... – Apontei novamente o dedo para ela: - Tenta com outro, não com ele, não com esse canalha.
Virei-me para Leonardo que olhava quase para o teto como se tivesse tentando encontrar Deus e tive uma vontade imensa de dar uma ajudinha nesse encontro. Juro que tive, mas preferi não sujar novamente minhas mãos:
- E ocê, fica longe dela. Se eu te pegar rondando, se eu souber que ocê encostou um dedin nela, não vai ser só soco não...
Saí da casa, com o coração disparado, a cabeça um turbilhão e encontrei Barnabé ao pé da escada, junto de meu pai:
- Vambora, gente! A viagem é longa e o tempo não tarda mudar...
- Paulinho, espera... – Ouvi a voz de Emilinha logo atrás: - É só uma tentativa, uma palavra.
- Você fez sua escolha e novamente escolheu ele. Espero que encontre a paz que tanto procura.
Pisei fundo, forte e rápido, a distância entre eu e ela, e o passado ficando maior a cada passada. A imagem de Emilinha, cuidando daquele charlatão, ouvindo suas palavras graciosas, me doía no fundo da alma, pior que uma faca de serra em brasa cravada na carne. Será que ela estava caindo na lábia dele de novo? Ou seria eu, com minha raiva e desconfiança, que estava afastando a única chance de ela encontrar paz?
Chegamos à casa de meu pai e terminamos de colocar as coisas na Bandeirante. Barnabé dava as últimas orientações aos pedreiros enquanto meu pai caminhava meio perdido dentro da sua própria casa, quando ouvimos uma sirene se aproximando. Logo, uma guarnição da polícia estacionava em frente ao portão da casa de meu pai e desce o Sargento Guerra e mais dois milicos, vindo em minha direção:
- Paulinho Pamonha!? Saulinho do seu Zé das Couve?
Os dois milicos baixaram a cabeça e começaram a rir, balançando negativamente, afinal eram meus amigos e eu os reconheci de imediato. O Sargento, entretanto, não gostou e lhes deu um raspa saco caprichado, exigindo postura e compostura. Finalmente chegaram até onde eu estava:
- Paulinho, eu... Infelizmente, ocê precisa vir comigo. – Disse o Sargento.
- Mas ir pra onde? Eu tava de saída, vou viajar.
- Então... É isso que não pode. Ocê tá evadindo do local dos fatos...
- Oi!? Do que cê tá falando, Sargento?
- Cê cometeu um crime... Tentativa de assassinato de um homem humano. Não posso deixar ocê ir.
Meu pai saiu da casa e veio rasteiro até onde eu estava. Barnabé surgiu logo em seguida, brandindo como se fosse o dono de Passa-Vinte:
- O senhor sabe com quem o senhor está falando? – Disse Barnabé: - Sacudindo seu reluzente relógio e pulseiras de ouro quase que na cara do Sargento.
- Ói só seu moço... Se o senhor que é o senhor não sabe, imagina eu que nunca vi sua fuça antes! – Retrucou o Sargento Guerra.
Pronto! A viagem que estava acertada, desacertou de vez e agora eu, o Paulinho, o menino sonhador, vencido pelo Coronelzinho nervoso e rústico, estava prestes a ver o sol nascer quadrado. Ô sina...
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