O internato - Capítulo 26

Um conto erótico de Bernardo, Daniel e Theo
Categoria: Gay
Contém 4145 palavras
Data: 15/07/2025 21:38:24

Capitulo 26 - Perdido

...

Bernardo:

O sol começava a se pôr quando chegamos à cabana do zelador. A luz alaranjada projetada sobre a madeira envelhecida dava ao lugar uma aparência assustadora, como se fosse cenário de um filme de terror.

— Tem certeza que eles vão gostar de mim? — perguntei a Lorenzo, que já havia colocado a mão na maçaneta.

— Acho que sim — respondeu, com o mesmo tom calmo de sempre. — Talvez tenha um pouco de problema com o Gabriel, mas... todo mundo tem.

Assenti em silêncio enquanto Lorenzo abria a porta, revelando cinco adolescentes vestidos de preto sentados em círculo. O lugar era iluminado apenas por velas, o que aumentava ainda mais a atmosfera sombria.

— Demorou, hein? — comentou uma menina baixinha, um pouco cheinha, com o cabelo liso cobrindo parte do rosto.

— Sabe que eu adoro ver o treino de natação, Irina — Lorenzo respondeu, largando um livro sobre a bancada ao lado de algumas ferramentas. — E aproveitei pra trazer alguém novo. Esse é o Bernardo.

Todos os olhares se voltaram para mim, e por um segundo temi que eles fossem se levantar, me cercar e iniciar algum ritual satânico. Logo percebi que meu julgamento tinha sido completamente preconceituoso.

— Oi... — falei, sentindo meu corpo travar de tão desconfortável.

— Finalmente tomou coragem de chamar o crush pra sair — provocou um garoto de olhos verdes e cabelo loiro-escuro, revirando os olhos. — Já estava ficando constrangedor tanta troca de olhares.

— Muito engraçado, Gabriel — disse uma garota esbelta com um rosto jovial e voz ainda infantil. — Dá um tempo, vai.

— Você ainda dá ouvidos pro Gabriel? — Lorenzo se sentou ao lado da garota e lhe deu um selinho. — Quando ele fala comigo, entra por um ouvido e sai pelo outro. Senta aí, Bernardo.

Obedeci e me acomodei entre Lorenzo e um garoto de pele morena, com piercings no nariz e na sobrancelha. Ele me analisou de cima a baixo, e aquilo me deixou um pouco desconfortável.

— Seja bem-vindo, Bernardo — disse Irina com um sorriso. — E não liga muito pro Gabriel, ele é babaca profissional.

— Ei! — Gabriel protestou, visivelmente ofendido. — Vocês que são um bando de agourentos! Uns demônios sem alma!

— E ainda o mais dramático entre nós — Irina completou, rindo. — Eu sou a Irina. Essa é a Eliza, namorada do Lorenzo — olhei pra menina ao lado dele e vi que estavam de mãos dadas. — Aquela ali é a Roberta — ela apontou para uma garota alta com uma capa preta. Ela tirou o capuz, revelando os cabelos loiros e o batom vermelho, parecendo uma versão gótica da Britney Spears. — Ela é a nossa Barbie. Esse aqui do seu lado é o Everton — o garoto dos piercings sorriu com gentileza. — E o que te traz aqui?

Olhei ao redor e me dei conta de como era estranho estar ali. Da última vez, Gabriel quase nos expulsou dali. A cabana onde tantas vezes eu e Daniel tínhamos feito amor agora parecia pertencer a outro mundo — mais sombrio, mais introspectivo. Mas não era ruim. Eles não eram ruins. Eram apenas adolescentes com gostos diferentes.

— Eu... acho que foi a forma como o Lorenzo aprendeu a lidar com a dor — confessei.

— Quer aprender a suportar a dor de perder seu namorado? — Irina perguntou de forma direta, como se lesse meus pensamentos.

— Sim — respondi, sincero.

— Não é só isso — Roberta disse. — Você não está só machucado por perder seu namorado. Há mais dor aí dentro. Raiva, angústia. Elas estão te consumindo e você nem percebe.

— Como sabe disso? — perguntei, lembrando da dor que minha mãe me causava ao seguir internada, se recusando a me ver.

— A Roberta tem uma sensibilidade absurda — Lorenzo explicou. — Ela sente as coisas. Às vezes até demais.

— Até demais — Gabriel murmurou, olhando para Roberta, que respondeu com um olhar cúmplice. Algo havia entre eles, mas não quiseram compartilhar.

— Sabe o que somos, Bernardo? — Irina retomou, trazendo a atenção de volta — Amantes de música, arte e poesia. Muita gente acha que somos um bando de satanistas drogados. E ok, alguns talvez até sejam. Mas a verdade é que só vemos o mundo de outra forma. Não somos um grupo de autoajuda. O que aconteceu com o Lorenzo é que ele se identificou com a gente. Isso o ajudou a conviver com a dor.

— Tornou a dor suportável — Lorenzo completou, com um tom de voz que transmitia exatamente isso. Eliza encostou a cabeça em seu ombro.

— Eu sei que vocês não estão aqui pra resolver a vida de ninguém — falei, sentindo um nó na garganta. — Mas preciso de um espaço onde eu possa ser ouvido... sem julgamento. Só isso.

— Então vamos continuar — Irina disse, pegando um livro de poemas.

E a roda começou. Cada um recitou um poema preferido, explicando os motivos. Ao contrário do que eu esperava, não havia exaltação à morte. Pelo contrário: a maioria via a morte como punição, não como solução. Apenas Gabriel destoava do grupo. Seu poema falava sobre a morte como alívio para uma alma destruída. Mórbido. Mas estranhamente... reconfortante.

— E aí, o que achou? — Lorenzo me perguntou depois que nos despedimos das garotas, que foram para seus dormitórios.

— Aposto que acha a gente maluco — disse Gabriel, no mesmo tom sombrio de seu poema.

— Eu gostei — confessei. — De verdade.

— Que bom — Lorenzo parou comigo no segundo andar, ao lado de Gabriel. — Amanhã tem mais, no mesmo horário.

— Eu venho — prometi.

— Aqui, pra você — Lorenzo me entregou um exemplar de O Gato Preto, de Edgar Allan Poe. — Vai curtir.

— Valeu mesmo — falei, segurando o livro.

Eles acenaram e seguiram para seus quartos. Olhei a capa do livro: um homem observando algo com desconfiança, enquanto um gato preto com olhos amarelos o encarava.

Foi então que uma porta se abriu, me tirando dos pensamentos. Era o antigo quarto onde eu e Théo dormíamos. E foi Samuel quem saiu de lá... beijando Théo.

Aquilo me pegou completamente desprevenido. Eu não sabia que isso estava acontecendo.

— Oi — Théo me cumprimentou ao me ver na escada.

Aquilo me pegou mais ainda. Ele sabia tudo o que eu tinha feito... e ainda assim estava me dirigindo a palavra?

– Oi – respondi e subi correndo a escada.

...

Théo

— Bom dia, vadias — disse, sentando-me ao lado de Fábio naquela manhã. Alice parou de falar na hora, e todos me olharam com uma mistura de surpresa e desconforto. — Que caras são essas?

— Você não fala com a gente há duas semanas — Alice respondeu, sem jeito. — Achei que não era mais nosso amigo.

Revirei os olhos.

— Por causa desses dois? — apontei de Nick para Bernardo, que estavam o mais longe possível um do outro. — Já superei isso. Agora é bola pra frente.

— Tem certeza? — Giovana perguntou com desconfiança. — Se estiver desconfortável, a gente entende.

— Já disse que está tudo bem, Gi — falei, mordendo um pedaço da minha maçã. — Quer que eu prove? — Olhei para Nick. — Você foi um babaca, mas agora é passado. E você também, Be, mas eu te perdoo. Vamos todos passar uma borracha nisso e seguir em frente. Estava até pensando em você voltar pro quarto, Bernardo.

— O quê? — Bernardo parecia chocado. — Você enlouqueceu?

— Não — respondi, experimentando meu cereal com leite. — Só quero que as coisas voltem a ser como eram antes de todo mundo pisar na bola. E repare que eu disse todo mundo. Me incluo nisso. Eu também não fui um bom amigo pra você. Agora quero consertar as coisas.

— Claro! — Nick debochou. — Vamos todos ser amiguinhos de novo... Quem sabe a gente chama o Patrick de volta pro grupo também!

— Por que não? — dei de ombros. — Ele pode nos indicar uns jogos legais na Steam — falei, soltando uma risadinha que Fábio e Alice acompanharam.

— Olha bem pra minha cara, Théo — ele disse, e eu fiz o que pediu. Seu nariz ainda estava um pouco inchado, e o lábio quase cicatrizado. — Você acha mesmo que dá pra sermos amigos?

— Para de drama, Nick — zombei. — Se eu consegui superar o fato de você ter comido o Bernardo, você pode superar essa surrazinha.

— Vamos mudar de assunto, por favor? — Bernardo pediu, com um tom melancólico. — Essa história já deu o que tinha que dar.

— Relaxa, Be — falei, bebendo meu suco de laranja. — Prometo não tocar mais no assunto.

Bernardo me olhava desconfiado, como se achasse que eu estava tramando alguma coisa. Ingênuo. Sorri. Era tão difícil assim acreditar que eu estava sendo sincero? Pensei melhor e percebi que ele tinha motivos pra duvidar. Eu realmente tinha pisado feio na bola. Mas ele também. Acho que estamos quites.

— Como eu estava dizendo... — Alice retomou o assunto, convencida de que eu não estava ali pra causar confusão. — Eu juro por Deus que te mato se você não for caracterizado pra festa, Fábio.

— Pode matar — ele deu de ombros. — Nem pagando eu visto aquela roupa brega de caipira.

— Se você não aparecer no vestiário com aquela camisa xadrez e um chapéu de palha, eu te esgano!

— Vai ter festa junina? — perguntei, ultrajado por não saber, mas logo lembrei que andei meio ausente nos últimos meses.

— Daqui a duas semanas, Théo. Depois do último dia de aula — Giovana disse como se fosse óbvio.

— Amei! — falei, empolgado. — Preciso arranjar um boy logo — notei Nick me fuzilando com os olhos, mas o ignorei como vinha fazendo desde que descobri a traição. — E você, Be? Já tem companhia?

— O quê? — Bernardo pareceu assustado. — Você tá brincando, né?

— Nem um pouco — respondi com um sorriso. — Podemos ir como amigos, igual na festa de boas-vindas do início do ano.

— Nem me lembre daquela festa — Alice comentou, passando a mão pelo cabelo loiro e o colocando atrás da orelha. — Fiquei um mês procurando o vestido ideal, e aqueles idiotas acabaram com ele. Paguei uma fortuna naquela droga!

— E o meu cabelo, que ficou manchado quase um mês? — lembrei. — Foi um inferno.

— Pelo menos ficou de uma cor só — Fábio alfinetou. — Na moral, Théo, esse teu cabelo é muito viado!

— E eu sou viado, meu amor — disse com orgulho. — E com muito orgulho. Agora você, com esse jeitinho de mauricinho... aposto que dá ré no quibe.

— Jamais! — Fábio respondeu, rindo. — Que bom que você tá de volta. Senti falta de implicar contigo.

— Todos sentimos — Giovana completou, sorrindo.

— Valeu, gente — falei, genuinamente feliz. — Prometo não ser mais aquele babaca deprê.

— Muito obrigada! — Alice desabafou. — Você tava insuportável.

— Também te amo — mandei um beijinho pra ela.

— Bernardo! — ouvimos alguém chamar. Um garoto usando um sobretudo preto sobre o uniforme da escola estava numa outra mesa. Era Lorenzo, rodeado pelos amigos góticos de sempre.

— Eu encontro vocês depois — Bernardo se levantou e foi até a mesa deles, engatando numa conversa animada.

Todos nos entreolhamos, claramente surpresos.

— Eu não sabia que o Bernardo era amigo dos góticos! — Nick comentou, boquiaberto ao ver Bernardo entrosado com o grupo.

— Bem-vindo ao clube — Giovana disse, meio sem jeito. — Ele também não comentou nada comigo.

...

Daniel

Alguém bateu três vezes na porta naquela noite.

— Posso entrar? — Théo perguntou, já abrindo a porta.

— Já entrou — brinquei com meu irmão caçula, que respondeu com uma risada sincera.

Théo entrou no quarto e trancou a porta. Olhou para Samuel, que estava deitado lendo, e bastou aquele olhar entre os dois para eu perceber que havia mais ali do que antes. Um sentimento estava nascendo — ou talvez já existisse há algum tempo.

— Precisamos conversar — Théo disse, sentando-se na beira da minha cama. — A sós.

— Vou dar uma volta — Samuel falou, se levantando.

— Pode ficar, Samuel — Théo fez um gesto com a mão, pedindo que ele permanecesse. — Na verdade, eu estava pensando em caminhar com você, Daniel. Se estiver de boa com isso.

— Claro — respondi prontamente. O tom do Théo indicava que o assunto era sério e que ele precisava de mim. E eu sempre estaria ali por ele. — Só vou colocar uma camiseta.

Théo assentiu. Fui até a cômoda, peguei a primeira peça que encontrei — uma camiseta azul básica, sem estampa — e a vesti rapidamente. Saí do quarto ao lado dele, e começamos a caminhar pelo campus, observando os poucos alunos que ainda estavam do lado de fora, até o horário-limite de entrada nos dormitórios. Passamos pela fonte onde Bernardo e Amanda brigaram, onde também amarramos os calouros. Caminhamos pela cabana do zelador, onde vivi tantos momentos inesquecíveis com alguém que hoje parecia tão distante. Esses lugares me traziam certa tristeza, mas eu precisava seguir em frente. Não podia deixar que tudo isso me paralisasse.

— Ontem eu conversei com Samuel — Théo comentou, e seu tom de voz trazia uma leveza que eu não ouvia havia tempos. Isso me deu um certo alívio. — Na real, não foi só ontem. Mas foi só ontem que ele conseguiu me convencer. Me fez entender o verdadeiro motivo de eu estar tão na bad. E acho que você tem o direito de saber.

— Você tem inveja de mim — falei, lembrando da conversa que tive com nossa irmã.

Théo baixou os olhos para a grama escura, claramente envergonhado com aquele sentimento que, até pouco tempo, eu não compreendia direito. Mas agora tudo fazia sentido.

— Samuel te contou, né? — ele afirmou, sacudindo a cabeça. — Fofoqueiro do caramba.

— Na verdade, foi nossa irmã fofoqueira — corrigi com uma risadinha. — Quem me contou foi a Fernanda.

— Ah — ele respondeu, encarando a piscina que acabávamos de alcançar. — E o que você achou?

Pensei um pouco antes de responder.

— No começo, achei estranho — confessei. — Mas depois fui pensando... E entendi. Não é um sentimento injustificável. Havia mesmo uma diferença no jeito que nossos pais nos tratavam. Sinto não ter percebido isso antes.

— Tá tudo bem — ele murmurou, visivelmente abalado. — Você também tinha seus próprios fantasmas.

— Sim, eu tinha. Mas devia ter sido mais atento ao seu lado. Ter parado de olhar só para mim mesmo e prestado mais atenção no meu irmão.

— Pensando agora... você tem razão — Théo disse, respirando fundo. — Guardei mágoas de você por isso. Mas não quero mais viver assim. Estou aqui pra te pedir desculpas.

— Não tem por que se desculpar, Théo — falei, passando a mão pelos cabelos loiros com mechas azuis dele. — Eu é que te devo desculpas.

— Então vamos fazer o seguinte — ele sorriu — Já que nenhum dos dois quer deixar o outro se desculpar, que tal só deixar isso pra trás e seguir em frente?

Ele me olhou com aqueles olhos azuis intensos e eu pude sentir a sinceridade dele. Era como se ele finalmente estivesse se libertando.

— Combinado — disse, puxando-o para um abraço.

Théo me abraçou com tanta força que parecia que não nos víamos há anos. Foi naquele instante que senti um vínculo de verdade se formar entre nós. Um elo de irmandade que até então tinha sido turvo, mas agora era forte, baseado em afeto e confiança. Depois de tudo que vivemos, os irmãos Vilella mereciam essa chance. E a gente ia fazer valer a pena.

— Eu te amo — Théo disse.

— Também te amo, maninho — falei, bagunçando o cabelo dele.

Olhei para ele e percebi que um peso enorme tinha sido retirado de seus ombros. Ele finalmente estava pronto para seguir em frente. O sinal que indicava o fim do horário de circulação tocou, e voltamos para os dormitórios.

— Ah, só pra te contar — Théo disse no caminho — eu e Samuel voltamos ontem à noite.

— Pelo menos alguém sensato — falei, sem surpresa. — Vocês combinam.

— Também acho — ele respondeu, penteando o cabelo com os dedos. — E você também vai achar alguém.

— Agora eu só quero um tempo pra mim — confessei. — Preciso me reencontrar primeiro.

— Ai que frase de novela — Théo riu, daquele jeitinho sarcástico dele. — Daniel Vilella, o gay em crise existencial.

— Deixa de ser besta — empurrei ele de leve. Eu tinha que controlar minha força ou acabava derrubando o garoto.

Quando passamos pela frente da cabana do zelador, vimos Bernardo saindo com seus novos colegas. Mas ele parecia... diferente. Roupas pretas, cabelo castanho espetado com gel, sombra escura nos olhos, batom preto e até as unhas pintadas. O visual gótico completo.

— Que merda foi essa, Be? — Théo falou, surpreso. — Parece que saiu de um clipe de rock gótico!

— Deixa ele em paz — respondeu um garoto de aparência igualmente sombria, quase loiro, com a mesma vibe obscura. Eu o reconheci de vista — era Gabriel, um bolsista do segundo ano, que já tinha me mandado sair da cabana certa vez.

— E se eu não quiser? — Théo provocou.

— Então é bom se despedir da vida — Gabriel ameaçou friamente.

— Tranquilo, Gabriel — Bernardo o conteve. — Eles não valem nosso tempo.

O grupo virou as costas, mas não sem antes Gabriel lançar um olhar de desprezo para Théo. Quando estavam longe o suficiente, Théo caiu na gargalhada.

— Eu não acredito que o Bernardo virou gótico! — ele riu. — Isso é surreal!

Mas, sinceramente, eu não achei engraçado. Achei meio triste, na real. Aquele visual não combinava com o Bernardo que eu conhecia. Tudo bem que ele sempre foi fã de Asleep, do The Smiths... mas isso não fazia dele um gótico. O que eu enxerguei nos olhos dele foi um garoto completamente perdido, tentando se encaixar em algum lugar. Buscando uma identidade que ele ainda não encontrou.

...

Bernardo

Me olhava no espelho e mal conseguia me reconhecer com aquelas roupas escuras e a sombra preta nos olhos. Ainda assim, havia algo reconfortante em me ver diferente — como se, pelo menos por fora, eu refletisse um pouco do caos que sentia por dentro.

— Está ficando muito bom — Lorenzo comentou, enquanto vasculhava meu celular em busca de alguma música que lhe agradasse. — Mas, sinceramente, suas playlists são péssimas.

— A música fica pra depois — Gabriel falou, concentrado enquanto passava batom preto nos meus lábios com a precisão de quem claramente já estava acostumado com aquilo. — Visual completo.

— Você não precisa se vestir assim se não se sentir confortável — Roberta disse com gentileza. — Só precisa ser você.

— O problema é que ele não sabe mais quem é — Everton murmurou. Era a primeira vez que eu ouvia sua voz, grave e suave, mas certeira como um soco.

Ele estava certo. Eu não sabia mais quem eu era. Nem o que queria ser. Mas naquela manhã, quando Lorenzo me chamou no café e disse que Irina queria que eu me juntasse ao grupo deles, me senti acolhido. Finalmente parte de algo, mesmo sem saber ao certo se pertencia àquilo.

— Talvez eu não saiba, mas também não me sinto bem com meus antigos amigos — confessei, soprando o esmalte recém-passado em minhas unhas. — Essas roupas podem parecer estranhas, mas combinam com a escuridão que sinto por dentro.

— Dor no peito é comigo mesmo — Gabriel disse com sarcasmo. — Isso e ideias suicidas. Arruma um outro tema pra chamar de seu. Que tal demônios ou romances fracassados? O segundo combina com você.

Olhei pra ele e, sinceramente, quase pulei em cima do seu pescoço. Mas antes disso, Lorenzo interveio:

— Às vezes você passa dos limites, Gabriel.

— Ele não sabe se controlar — Eliza comentou, fechando o livro que lia. — O Gabriel é basicamente um poço de dor e trevas.

— Tem dias que eu sinto como se já estivesse morto — ele retrucou, parecendo até satisfeito com o que disseram. — Mas aí me lembro que se estivesse, provavelmente teria companhia melhor que a de vocês.

Irina entrou na cabana do zelador com o pôr do sol se apagando ao fundo. Ela apagou a lâmpada do teto e acendeu as velas dispostas por Roberta ao redor da sala.

— Curti o visual, Bernardo — disse.

Agradeci com um aceno e nos sentamos. Irina colocou um álbum do Tristania pra tocar. As letras, carregadas de angústia e agressividade, me absorveram por completo. Uma música em especial me impactou — triste, mas ao mesmo tempo brutal, com os vocais guturais do cantor. Era como se aquela canção compreendesse minha dor de uma forma que ninguém mais entendia.

Roberta começou a ler um conto de sua autoria. A história era sobre uma garota que, apesar dos castigos físicos e emocionais, encontrava na dor algo que a fazia sentir — como se o sofrimento fosse a única coisa real. No fim, a personagem abraçava essa dor como forma de sobreviver à sua existência vazia. Era sombrio, pesado... mas Gabriel parecia especialmente tocado pelas palavras dela.

O tempo passou sem que a gente percebesse. Quando o sinal da escola tocou, sinalizando o recolhimento obrigatório, Irina desligou a música e Everton apagou as velas. Lorenzo abriu a porta, revelando a lua cheia no céu limpo. O ar começava a esfriar — prenúncio do inverno que se aproximava.

Saímos da cabana. E então demos de cara com eles.

— Que diabo aconteceu com você, Be? — Théo disparou, com os olhos arregalados. — Parece que saiu de um furacão gótico!

Daniel me encarava com a expressão incrédula de quem tentava processar o que via.

— Deixa ele em paz — Gabriel falou, gelado como sempre.

— Vai fazer o quê se eu não deixar? — Théo cutucou.

— A morte pode chegar mais cedo pra você — Gabriel retrucou sem piscar.

— Tranquilo, Gabriel — tentei contê-lo antes que ele realmente fizesse algo. — Ele não vale a pena.

E não valia mesmo. Depois de tudo que me fez, Théo achar que aquele teatrinho amigável apagava tudo era ridículo. Conhecia muito bem o lado “fofo” dele — era apenas uma máscara para esconder alguém manipulador e traiçoeiro. Estava tentando me reconquistar, mas com certeza tramava algo. E eu não cairia nessa.

Gabriel lançou a Théo um olhar de puro desprezo antes de nos virarmos e seguirmos caminho, deixando os dois parados bem ali — na frente da cabana onde, tempos atrás, eu e Daniel fizemos amor pela primeira vez. Onde ele me deixou... despedaçado. É, eu errei, mas Daniel também me feriu. E está me ferindo de novo.

Passei a mão pelo cabelo espetado, tentando afastar aquele sentimento de autopiedade. Talvez eu realmente tivesse uma tendência a me fazer de vítima — um mecanismo de defesa da minha mente, talvez. Feio, mas fazia sentido.

Nos despedimos das meninas, que foram para o dormitório delas, e seguimos para o nosso. Lorenzo e Gabriel subiram para o segundo andar; eu e Everton, para o terceiro. Ele entrou no quarto que dividia com outro garoto. Eu segui pelo corredor, mas fui interrompido.

— Bernardo? — Gabriel me chamou antes que eu continuasse a subir.

— O que foi? — perguntei, indo com ele até a porta do quarto.

Lorenzo acenou pra nós antes de entrar no quarto dele.

— Foi mal pelo que falei mais cedo — Gabriel disse, apertando o próprio braço de leve. — Aquilo sobre você ser especialista em relacionamentos fracassados. Fui idiota. Não devia ter dito.

— Talvez não — respondi, olhando diretamente nos olhos dele. E percebi algo. Ele também estava perdido, assim como eu. — Mas fica tranquilo, vou sobreviver.

— Eu sei que vai — ele disse, agora apertando o braço com mais força. Quase dava pra ver a marca vermelha. — É que tá tudo tão confuso... e ainda tem o meu padrasto...

Ele parou. Tinha falado demais.

— Tudo bem, Gabriel. Mas se quiser conversar, sem ter que ser babaca, tô por aqui. A gente pode se ajudar.

— Queria conseguir acreditar nisso — desabafou, apertando ainda mais o braço.

Ele estava claramente se punindo, usando a dor física pra calar o que queria dizer. O Gabriel provocador e frio era só uma casca. E bem danificada.

— Você vai acabar se machucando — tentei tirar a mão dele do próprio braço, mas ele deu um passo pra trás.

— Melhor dormir — disse com um sorriso pálido. — Amanhã tem aula.

— Boa noite — falei, preocupado.

— Boa noite — respondeu antes de entrar e fechar a porta, me deixando sozinho no corredor.

Com certeza, havia algo muito errado com ele. Aquela forma de se conter, de punir a si mesmo... me deu um calafrio.

— Será que não tem ninguém normal nessa escola? — murmurei para mim mesmo.

— Do jeito que você tá vestido, começo a achar que não — Théo disse, surgindo no segundo andar com Daniel ao lado, rindo da própria piada.

— Eu não falei com você — respondi, passando direto.

— Beleza, mas... pensou em voltar pro quarto? — ele perguntou com uma naturalidade desconcertante. Como se tudo estivesse bem entre a gente.

— Me poupe! — rebati, subindo as escadas.

E foi quando senti. Uma mão forte segurando meu braço. Um toque familiar. Um arrepio percorreu meu corpo.

— Você tá bem? — Daniel perguntou, com aquela voz suave que me desmontava por dentro.

Queria me jogar em seus braços. Beijá-lo. Rasgar nossas roupas e fazer amor ali mesmo. Queria gritar ao mundo que ainda o amava.

Mas eu não podia. Não depois de tudo. Meu coração não aguentaria ser rejeitado de novo.

— Me solta! — pedi, puxando o braço e correndo escada acima, enquanto as lágrimas desciam descontroladas.

Tranquei a porta do quarto, ainda no escuro, e me joguei na cama, tomado por uma dor absurda. O toque dele me queimava a pele. Eu o amava mais do que amava estar vivo. Mas não podia tê-lo de volta. Eu destruí tudo.

Enquanto transava com o Nick naquele carro, nem por um segundo pensei em Daniel. Nem uma única vez. Nem por um instante me perguntei como o cara que me deu tudo se sentiria.

Agora, estou tendo o que mereço: dor.

...

Continua...

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