A vida parecia ter apertado o passo. Na reta final para o Festival de Parintins, Jonas se sentia prestes a explodir. Quando era apenas dançarino, bastava comparecer aos ensaios, seguir o ritmo e manter o sorriso no rosto. Agora, à frente do setor criativo do bumbá, a responsabilidade pesava em cada músculo, em cada pensamento. Reuniões, agendas, figurinos, artistas, discursos. Era como se ele precisasse se dividir em cinco, talvez dez. Ou melhor, em cinquenta, se o dia tivesse cinquenta horas.
Naquela tarde abafada, após mais uma reunião interminável com a prefeitura no Bumbódromo, Jonas caminhava até o elevador, ainda remoendo a lista de tarefas que parecia não ter fim. Mas, no fundo, outro pensamento o consumia: o almoço de domingo. Seus irmãos viriam de outros lugares do mundo, o pai estava animado com o reencontro, e o cardápio já fora decidido. Seria um momento em família, como nos velhos tempos.
Mas não era exatamente o reencontro familiar que deixava Jonas nervoso. Era a presença de Cauê.
Desde que assumiram o relacionamento, as coisas tinham mudado — para melhor e para pior. Rafael, seu ex, ainda era querido pela família, quase como um parente honorário e todos sentiram quando sua morte aconteceu. E Cauê... bem, Cauê era Garantido. Do bumbá contrário. O que poderia dar errado?
Foi nesse turbilhão de pensamentos que Jonas entrou no elevador sem notar os rostos que o aguardavam lá dentro.
— Qual andar? — Perguntou uma voz masculina, o puxando de volta à realidade.
Jonas piscou, saiu do devaneio e se virou. Era Jean. Jean, amigo de Cauê. E não estava sozinho.
Joaquim, Alexandra e Maurinho também estavam ali. Todos amigos de Cauê. Todos usando camisas vermelhas discretas, mas reveladoras. Todos olhando para Jonas como se ele tivesse invadido o camarote do inimigo.
Um arrepio percorreu sua espinha. Tarde demais para fingir que esqueceu algo ou que precisava ir de escada. A porta já havia fechado, e o elevador começava a subir lentamente.
O silêncio era desconfortável. Cada segundo se arrastava como um minuto inteiro. E, como se o destino tivesse senso de humor, uma toada de Milena Alencar começou a tocar no sistema de som. A voz melódica da cantora do Garantido preenchia o ambiente, tornando o climão ainda mais visível.
Foi então que o elevador tremeu e, num solavanco brusco, parou.
Alexandra gritou.
— Que foi isso? — Disparou Joaquim, agarrado ao braço de Maurinho.
— O elevador travou, gênio — Respondeu Alexandra, pegando o celular. A tela mostrava ausência total de sinal. Ela bufou. — Ótimo. O sinal morreu.
— Ótimo mesmo — Murmurou Jonas, encostando-se na parede do fundo, os braços cruzados, tentando parecer indiferente. — Vai ser um longo dia.
Ninguém riu. Mas, internamente, Jonas sabia que aquele era apenas o começo de um dia muito mais longo do que ele imaginava. E de um embate mais simbólico do que qualquer disputa no Bumbódromo: Caprichoso e Garantido, presos no mesmo elevador.
***
Cauê encarava o armário escancarado como se ali dentro houvesse um portal para outra dimensão — qualquer coisa que o tirasse do sufoco de escolher uma roupa apropriada para um almoço tão importante. As roupas dançavam nos cabides, mas nenhuma parecia boa o bastante para conhecer a família de Jonas. Ele suspirou, frustrado, jogando uma camiseta estampada sobre a cama. "Nada disso serve", murmurou.
Do corredor, Eron, observava o desespero do filho com um meio sorriso. Se aproximou devagar, como quem já previa o que estava por vir.
— Tá indo pra um almoço ou pra um desfile de moda? — Brincou.
Cauê fez uma careta.
— É a primeira vez que vou na casa do Jonas. Quero causar uma boa impressão. Não posso ir com qualquer coisa, principalmente na cor vermelha.
— Então bora resolver isso. Veste qualquer bermuda aí, que a gente vai até o centro. — Avisou Eron, já pegando as chaves do carro.
Parintins fervia sob o sol da tarde. As ruas movimentadas, cheias de turistas e moradores às vésperas do Festival, ofereciam um cenário agitado. Entre vitrines, vitrôs e ventiladores barulhentos, pai e filho percorriam as lojas com olhares atentos. Cauê experimentava peças, Eron tirava fotos e mandava para Milena, que respondia quase de imediato com emojis, comentários e críticas impiedosas.
— Essa camisa azul com flores? Parece saída de um luau. — Respondeu ela, em áudio. — A calça bege tá boa, mas dobra a barra. — Orientou em outra mensagem. — E, pelo amor de Deus, nada de estampa infantil! — Riu, com aquele tom de mãe que se mete, mas cuida.
A certa altura, Milena ligou por chamada de vídeo. Apareceu com os cabelos presos e maquiagem impecável, direto dos bastidores de uma entrevista.
— Vira a câmera, deixa eu ver ele inteiro — Ordenou e analisou o look do filho. — Ok... camisa branca de linho, calça jeans azul, tênis branco. Isso aqui pode funcionar! Mas dobra a manga da camisa, Cauê, deixa os pulsos de fora. E arruma esse colar, tá torto.
Eron, do lado, assistia à cena como um espectador num camarote privilegiado, balançando a cabeça com um sorriso no canto da boca.
— Nunca pensei que eu fosse ver meu filho montado igual um boneco pela própria mãe. — Comentou, em tom de piada.
Milena gargalhou do outro lado da tela.
— Só tô evitando um desastre diplomático. Vai que ele encontra o sogro vestindo camisa de banda rasgada ou uma peça do Garantido? Isso é quase um crime de guerra, querido!
Cauê, por fim, se rendeu. Aceitou a combinação aprovada por Milena e ajeitou os detalhes diante de um espelho, mesmo ainda sentindo o coração acelerado.
No caminho de volta para casa, com a sacola no colo, ele olhou pela janela do carro, refletindo. Aquele nervosismo todo por causa de um almoço. Era muito mais do que roupa: era sobre amor, sobre respeito. Sobre estar pronto para se apresentar inteiro, sem disfarces, à família da pessoa que amava.
— Obrigado, pai. — Agradeceu, quase num sussurro. — E obrigado por não me deixar passar por isso sozinho.
Eron olhou de relance para o filho, com os olhos úmidos de orgulho.
— Eu só quero te ver feliz, Cauê. E, se isso significa procurar roupa no calor de Parintins, que assim seja.
Ali, no banco do carro, entre o silêncio e o ruído da cidade, Cauê entendeu que amar também era isso: dividir o peso, aceitar ajuda, e reconhecer que, apesar de todo o medo, ele tinha sorte. Sorte por ter uma mãe que o provocava, um pai que o apoiava, e um coração que batia mais forte só de pensar em Jonas.
***
O calor era insuportável. O ar, rarefeito e abafado, fazia o suor escorrer pelo rosto de todos ali dentro. Com os minutos se arrastando como horas, Jonas não teve escolha a não ser tirar a camisa. A peça estava encharcada, colada ao corpo, transformando o momento desconfortável em algo ainda mais constrangedor. Já se passavam quinze minutos desde que o elevador havia travado, e a única comunicação com o mundo exterior era a voz de um técnico que prometia resolver o problema "o quanto antes".
— Nós vamos morrer aqui. — Lamentou Alexandra, prendendo o cabelo em um coque improvisado com um grampo de metal.
— Que drama. — Murmurou Jonas, encolhido no canto do elevador, encarando o painel eletrônico piscando.
— Quer dizer alguma coisa? — Perguntou Luan, levantando o queixo em desafio.
— Que a tua namoradinha tá fazendo drama. — Respondeu Jonas, seco, já se preparando para o inevitável confronto.
Maurinho, percebendo a tensão no ar, se colocou rapidamente entre os dois.
— Cara, deixa quieto. Não agora.
— Típico de vocês, hein. — Provocou Jonas, olhando para o grupo com desdém.
— Qual o teu problema? — Luan tentou avançar, mas Maurinho e Cauê conseguiram segurá-lo.
Jonas inspirou fundo e falou com firmeza:
— Vocês são o problema. O Cauê não contou porque sabia como vocês iam reagir. Fingem ser amigos, mas na primeira diferença, viram as costas. Bela amizade a de vocês.
— Negativo. O Cauê mentiu pra gente. Ficava fazendo jogo duplo. — Disparou Luan, com o dedo apontado diretamente para o peito de Jonas.
Jonas deu um passo à frente, desarmado e sereno, com os olhos firmes:
— Mentindo o quê? A gente não está fazendo nada errado. Eu amo o Cauê. E nada do que vocês disseram ou fizeram vai nos separar. — Uma pequena pausa. Jonas se deu conta do que acabara de dizer em voz alta, e sorriu. — É isso mesmo. Eu amo o Cauê.
O silêncio tomou conta do elevador. Só se ouvia o barulho do motor que ainda não havia voltado a funcionar. Jonas aproveitou aquele instante de suspensão do tempo.
— Escutem. Eu sei que vocês são do Garantido, assim como o Cauê. E eu sou Caprichoso. Meu Deus, que horror, um pecado mortal! — Soltou Jonas. — A rivalidade faz parte do Festival, mas ela termina na arena. Fora dela, somos só pessoas. Gente que ama, que sofre, que sonha. O que existe entre mim e o Cauê é verdadeiro. Não importa a cor da camisa que vestimos, e sim o que carregamos no peito. Se vocês realmente gostam dele, parem de agir como se ele tivesse traído vocês. Porque quem está perdendo são vocês. Ele sente a falta de vocês mais do que deixa transparecer.
Assim que Jonas terminou de falar, o elevador estremeceu com um estalo seco e, subitamente, voltou a se mover. Os rostos aliviados não disfarçaram o impacto das palavras dele.
Quando as portas se abriram, todos começaram a sair, um a um. Jonas foi o último a sair, mas antes, olhou diretamente para os quatro amigos de Cauê.
— Ele não tem ninguém além de vocês aqui em Parintins. Não deixem ele sozinho. Ser amigo é saber apoiar, mesmo quando não se entende tudo.
Com isso, Jonas atravessou a porta com a camisa ainda jogada no ombro, deixando para trás mais do que o calor sufocante — deixava a semente de uma possível reflexão.
***
Cauê acordou cedo naquela quinta-feira abafada, o calor amazônico já invadia cada canto da casa, mesmo com as janelas escancaradas. O convite para almoçar na casa de Jonas deixara seu coração acelerado — não apenas pelo carinho que sentia, mas pelo nervosismo em conhecer oficialmente o pai do namorado.
Tomou um banho longo, com a água morna misturada ao suor do próprio receio. Precisava estar bem, sentir-se seguro, mesmo sabendo que nenhum creme do mundo impediria as mãos de suarem naquele dia. Após se enxugar com calma, perfumou o corpo e encarou o espelho com seriedade. Era a primeira vez que se preparava para um encontro familiar com a sensação de estar sendo examinado.
As roupas estavam dobradas sobre a cama. Peças leves, novas, escolhidas cuidadosamente para o clima e para causar boa impressão. Optou por uma camisa de linho bege, de mangas cumpridas e botões de madeira, que valorizava o tom da sua pele. A bermuda azul-clara trazia um ar descontraído, mas elegante, e os mocassins brancos completavam o visual. Simples, fresco, mas com aquele toque que dizia: "Eu me importo".
Pouco antes do meio-dia, a buzina soou discreta. Cauê olhou pela janela e viu Jonas sorrindo em frente ao portão. Desceu apressado, o coração mais leve ao ver aquele rosto conhecido.
— E aí, pronto? — Perguntou Jonas, olhando de cima a baixo e assentindo com aprovação.
Era a primeira vez que Jonas entrava naquela casa. Já conhecia César, o irmão mais novo de Cauê, com quem tinha trocado piadas e até memes pelo celular. Mas agora era diferente. Eron, o esperava sentado na varanda, ao lado do pequeno Repolho — o pinscher magricela e temperamental da família, que parecia farejar o nervosismo no ar.
— Fica tranquilo, ele só rosna no começo. — Sussurrou Cauê.
Para a surpresa geral, Repolho apenas latiu uma vez e depois cheirou o tênis de Jonas, se deixando fazer um leve carinho na cabeça. Uma vitória.
A conversa com Eron foi breve, mas pontuada de silêncios desconfortáveis e olhares atentos. Jonas manteve a educação, elogiou a casa, falou sobre o calor e tentou parecer natural. Cauê segurava o riso ao ver o namorado tentando encontrar o tom certo com o sogro. No final, tudo correu bem.
Na moto, o caminho até a casa de Jonas foi preenchido por uma mistura de risadas, silêncio e expectativa. Quando chegaram, Cauê logo reconheceu o lugar. A casa de Otaviano era a mesma onde ele e Jonas, tempos atrás, passavam horas na piscina, escondidos do mundo. Mas agora, à luz do dia, tudo parecia diferente. Havia tendas no jardim, mesas postas com toalhas coloridas, e o antigo gramado, onde antes jogavam bola, agora era palco de um almoço familiar.
E então veio o momento. Otaviano surgiu na porta com sua estatura baixa e expressão severa. Encarou Cauê dos pés à cabeça, levantou uma sobrancelha e, antes de dizer qualquer coisa, tirou um lenço azul do bolso para secar o suor que escorria pela testa.
— Então, foi tu que disvirtuou o meu filho, seu moleque enxerido?
Cauê sentiu a espinha gelar.
— Pai! — Protestou Jonas, já cruzando os braços com um suspiro impaciente.
Otaviano, então, abriu um sorriso largo e se aproximou com um abraço inesperado.
— Tô brincando, Cauê. — Disse entre risos. — Desculpa pela forma como agi nos últimos dias. Realmente, fiz uma tempestade em copo d'água é culpa do Festival, os meus nervos ficam à flor da pele. O Jonas pode amar quem ele quiser, mesmo sendo um músico do Garantido...
Fez uma careta e cuspiu no chão, para logo se explicar:
— Desculpa, quando falo o nome desse boi xóxo, a minha língua fica dormente.
— Tudo bem, Seu Otaviano. O prazer é meu. — Respondeu Cauê, tentando conter a gargalhada. Estendeu uma sacola de papel kraft. — Trouxe um presente. Vi essa arte do Caprichoso no Centro de Parintins e achei que o senhor gostaria.
Otaviano pegou o pacote com curiosidade, abriu e ficou em silêncio por alguns segundos, observando o artesanato em madeira azul.
— Eu não gosto de admitir... mas ficou bonito mesmo.
Rosa caminhou com passos leves até Otaviano, que observava o movimento no quintal com um olhar distante. A secretária da família estava ao lado do presidente do Caprichoso há anos — tempo suficiente para ler suas emoções mesmo por trás da expressão séria. Ao ver o velho amigo com um leve sorriso no rosto, ela sentiu o coração aquecer. Sabia que, por dentro, Otaviano vibrava ao ver o filho feliz de novo. Depois da morte de Rafael, a tristeza havia se espalhado como uma nuvem escura, não só sobre o bumbá, mas principalmente sobre Jonas, que carregava no corpo e na alma as marcas daquele trauma.
— Faz tempo que não vejo o meu menino assim. — Murmurou Otaviano, num tom mais para si do que para ela.
As palavras, ditas com ternura contida, tocaram Rosa de maneira profunda. Ela sorriu com emoção nos olhos.
— Verdade, seu Otaviano. O Jonas está voltando aos eixos... e quem diria que seria por causa de um perreché. — Brincou, tentando amenizar a emoção.
— Não precisa me lembrar esse detalhe, mulher enxerida. — Resmungou ele com uma risada rouca, passando um lenço pela testa suada. — Vamos comer.
Cauê estava maravilhado. Ou talvez a palavra certa fosse: atordoado. Nunca imaginou que Jonas tivesse tantos irmãos — treze, para ser exato. Seis homens, sete mulheres, todos reunidos como uma verdadeira tropa familiar. Alguns estavam com seus cônjuges e filhos, outros haviam levado seus respectivos namorados ou namoradas. Era um mar de vozes, risos e abraços apertados.
O quintal da casa transbordava de vida. Um buffet farto exibia iguarias amazônicas: pirarucu de casaca, tambaqui assado, farofas coloridas, saladas tropicais. No canto, um rapaz tocava violão e cantava sofrência, arrancando coros espontâneos de quem já tinha tomado umas cervejas.
Cauê, em meio àquele redemoinho de nomes e rostos sorridentes, tentava se manter firme.
— É muita gente, Jonas. — Cochichou no ouvido do namorado, com os olhos arregalados. — Eu não vou conseguir decorar todos os nomes. — Fez uma careta de pânico.
— Calma, bebê. — Jonas respondeu sem pensar, num tom doce.
E então percebeu. Parou de falar. Ficou vermelho.
— Bebê? Eu sou seu bebê? — Provocou Cauê, com um sorriso iluminado.
— Que calor, né? Parintins é muito quente. — Jonas tentou mudar de assunto, desviando o olhar. — Vamos nos servir, vem. — Puxando Cauê para a área do buffet.
— Você é um bobo. — Retrucou Cauê, acariciando de leve o rosto do namorado. E o beijou, pela primeira vez, sem medo.
— Eu te amo, Cauê Alencar.
A declaração fez Cauê corar, mas ele sorriu e se declarou para o namorado também.
— Eu te amo, Jonas Benevides, seu garoto enxerido.
Ali, naquele quintal cheio de gente, entre vozes altas, cheiro de peixe grelhado e música sertaneja ao fundo, havia algo silencioso e imenso entre eles: cumplicidade. Aquela que nasce quando se sobrevive junto. Quando se escuta o medo do outro, quando se oferece colo mesmo sem saber como. O amor dos dois não nasceu de promessas feitas sob a lua, mas do caos.
Eles se conheceram em um bar. Jonas estava bêbado, cercado por valentões, prestes a apanhar. Cauê interviu. Depois disso, vieram os encontros na piscina da casa de Otaviano, as conversas sobre perdas, os silêncios compartilhados. Jonas confiou. Cauê escutou. Se tocaram sem pressa, como quem respeita cicatrizes.
Mas ali, entre farofa e risadas, uma pergunta pairava no ar, sem ser dita: Será que esse amor resistiria aos três dias intensos do Festival Folclórico de Parintins? Três dias em que a cidade se divide, o coração se entrega ao boi, e a emoção vira guerra. Três dias em que tudo pode se perder... ou se provar mais forte.
Jonas e Cauê estavam prestes a descobrir.