✧ O Vínculo do Guardião ✧
(Tiago)
A luz azul, outrora ofuscante e portadora de uma promessa desconhecida, dissipou-se, mas a sensação de centenas de olhares penetrantes persistia, queimando minha pele como brasas. Eu estava imobilizado, um ratinho de biblioteca exposto sob o sol inclemente do meio-dia, com o Sábio Elur ainda a apontar para mim, como se eu representasse uma afronta cósmica, uma falha nas engrenagens do universo.
O clamor que irrompeu no salão transformou-se num ruído branco em minha mente, uma cacofonia de medo e desprezo que ameaçava me submergir. Foi nesse exato momento que as imponentes portas de carvalho do salão se escancararam com um estrondo ensurdecedor, e o Rei Theron irrompeu, sua coroa de prata, antes símbolo de poder inabalável, parecendo agora pesada sobre a testa vincada de uma preocupação palpável. Ele não se dirigiu ao trono; avançou direto para o centro do salão, seus olhos percorrendo a cena com uma autoridade desesperada, um predador encurralado buscando uma saída. Seu olhar pousou em Lucas, depois em mim, e eu me encolhi instintivamente sob o peso avassalador da realeza e da acusação implícita.
(Lucas)
A chegada do Rei foi o único dique que impediu o salão de afogar-se em pânico absoluto. Observei-o marchar pelo mármore polido, sua capa de veludo carmesim arrastando-se preguiçosamente atrás dele como um rastro de sangue real, um prenúncio sombrio. A exaustão estava gravada em seus olhos, uma fadiga que todos nós sentíamos, mas nela também residia uma chama teimosa de determinação. Ele não questionaria a profecia — a fé cega da realeza era, para o bem ou para o mal, a rocha sobre a qual o reino se sustentava. Ele a aceitaria como um fato incontestável. E agora, cabia-lhe a ele garantir que aquele “fato” desajeitado e trêmulo, personificado em Tiago, não tropeçasse numa escada ou fizesse algo igualmente desastroso, condenando-nos todos antes mesmo que Malakor estivesse à vista dos portões.
Seu olhar interceptou o meu, e por um breve instante, vi um apelo silencioso, um grito mudo em meio ao caos. Ele necessitava de força real, tangível, não de um truque de luz vindo de um pergaminho antigo e empoeirado.
(Tiago)
“Os Sábios falaram, e a magia ancestral escolheu!”, bradou o Soberano, sua voz ecoando pelo salão com uma potência que eu jamais imaginara ser capaz de produzir. “Não nos cabe o luxo de questionar o destino, mas sim o dever de protegê-lo! A esperança de Eldoria, por mais… inesperada que seja sua manifestação, deve ser resguardada a todo custo!”
Ele se virou abruptamente para a multidão expectante.
“Decreto, neste exato momento, que o Escolhido será protegido por nosso guerreiro mais proeminente, nosso mago mais poderoso! Ele será seu escudo, sua sombra, seu Guardião até que a escuridão que nos assola seja repelida!”
Meu coração deu um salto descompassado, um pássaro enjaulado batendo as asas em frenesi. Ele estava falando de Lucas. Claro que estava. Uma pequena e tola parte de mim, alimentada pela esperança desesperada, pensou que talvez, apenas talvez, Lucas pudesse me ensinar. Me ajudar a compreender.
Então o Rei acrescentou, com um tom grave que fez o ar gelar e que me prendeu o corpo como um sudário: “Eles serão unidos pelo ‘Vínculo do Guardião’, um ritual antigo e inquebrável, cujas próprias forças vitais serão entrelaçadas!”.
(Lucas)
“O Vínculo do Guardião”. As palavras atingiram meu estômago com a força de um golpe certeiro, tirando-me o ar. Era um ritual arcaico, quase uma lenda sussurrada por historiadores empoeirados, uma magia de sacrifício usada apenas em tempos de desespero absoluto, quando todas as outras opções haviam se esgotado.
Eu entendi a lógica cruel e implacável do Rei Theron. Ele não confiava em Tiago. Ninguém confiava. Mas ele confiava em mim. Mais precisamente, ele confiava no meu instinto de autopreservação, na minha disciplina férrea.
O mundo silenciou quando o Soberano se virou, e seus olhos, que antes demonstravam preocupação, agora eram duros como aço polido, fixando-se nos meus com uma intensidade desconcertante.
“Lucas de Valerium. Você, que é a lança e o escudo de Eldoria, aceita este fardo sagrado? Você será o Guardião de Tiago?”
Cada fibra do meu ser gritava para eu recusar, para denunciar aquela farsa hedionda. Mas os olhares de todos, a história do reino, estavam em mim. Recusar seria traição, um ato de covardia imperdoável. Aceitar… aceitar era uma forma diferente de morte, um sacrifício lento e doloroso.
“Eu aceito, Majestade”, respondi, e minha voz soou como vidro prestes a estilhaçar.
(Tiago)
Fui arrastado para o centro do salão, forçado a me posicionar de frente para Lucas. Mesmo com meus sapatos desgastados roçando o mármore frio, a sensação gelada que subia pelos meus pés era ínfima comparada ao gelo que emanava de seus olhos. O vazio que eu captara antes agora estava preenchido por uma fúria tão pura e concentrada que eu mal conseguia respirar. Os Sábios nos cercaram, suas vozes graves começando a entoar em uma língua esquecida que fazia o próprio ar vibrar com uma energia sinistra.
Elur, com a precisão de um cirurgião, desenhou um glifo brilhante no chão entre nós. “Estendam as mãos”, ele ordenou, sua voz ressoando com uma autoridade antiga.
Hesitante, minha mão trêmula se ergueu. Lucas, com um movimento rígido e controlado, ergueu a sua. Quando nossas palmas se tocaram, um choque de energia percorreu meu corpo, uma corrente elétrica desconhecida. Mas não era a magia que me assustava. Era o ódio palpável que emanava dele, uma promessa silenciosa de ressentimento eterno escrita na forma como seus dedos apertaram os meus com uma surda violência.
(Lucas)
O toque da pele dele era repulsivo, úmido de suor e do medo palpável que o dominava. O cântico dos três Sábios do Pico Cinzento atingiu seu clímax, e o glifo sob nossos pés explodiu em luz branca e intensa, cegando a todos por um instante. Senti a magia se infiltrar em mim, não como uma carícia, mas como uma agulha de gelo buscando minha alma, meu núcleo vital, encontrando seu caminho para dentro. E então, eu senti a conexão. Um fio etéreo, iridescente, mas terrivelmente forte, se esticando de mim para ele, como um cordão umbilical sombrio. Eu podia sentir o batimento cardíaco acelerado dele como se fosse um tambor irritante no fundo da minha própria mente. Podia sentir a onda de pavor que o dominava, um turbilhão de emoções cruas que eu não pedi para experimentar. A profecia não apenas havia roubado o meu destino; ela havia me acorrentado ao fracasso iminente dele.
O Sábio Elur concluiu o ritual, sua voz carregada com a gravidade do momento: “O Vínculo está feito. Uma vida, um destino. Se o Escolhido perecer, o Guardião perecerá com ele!”.
(Tiago)
A luz se apagou, mas o Vínculo permaneceu. Era um zumbido baixo e constante na minha consciência, uma presença que era inteiramente Lucas, uma sombra que agora habitava minha própria mente. E através desse fio invisível, eu podia sentir sua raiva se intensificando, não mais como uma expressão em seu rosto, mas como uma tempestade fervendo dentro de mim, me consumindo. Era sufocante.
“Você é capaz, Tiago!”, tentou soar encorajador o Rei, sua voz um pouco mais branda agora. “Lucas irá garantir sua segurança e treiná-lo. Agora, vá para seus aposentos e apronte-se. O destino de todos nós repousa sobre seus ombros. Não nos decepcione.”
Cada palavra parecia empilhar um novo tijolo no muro de pânico que se erguia ao meu redor, me aprisionando. Olhei para Lucas, meu Guardião, meu protetor, e tudo o que vi foi um carrasco impassível, aguardando pacientemente por um erro meu.
(Lucas)
Afastei-me dele no instante em que o ritual terminou, com a repulsa de quem acabou de tocar em algo pútrido, como se sua mera proximidade pudesse me contaminar. Os Sábios nos observavam, esperando alguma demonstração de unidade, de propósito compartilhado. Eu lhes daria propósito.
Após a Majestade me fornecer as diretrizes para nossa missão iminente, caminhei até Tiago, parando tão perto que ele recuou instintivamente um passo, visivelmente assustado. Inclinei-me, minha voz um sussurro baixo e venenoso, projetado para que apenas ele pudesse ouvir, uma serpente sibilando no seu ouvido.
“Escute com atenção, aprendiz. A partir de agora, sua vida é o bem mais precioso do reino. E eu sou o seu carcereiro. Você não come, não dorme, não respira sem a minha permissão explícita. Você não é o herói. Você é a chave. E chaves são inúteis se quebrarem antes de cumprirem seu propósito.”
(Tiago)
Suas palavras cravaram-se em mim mais fundo do que qualquer lâmina jamais poderia. “Carcereiro”. “Chave”. Ele me despojou de qualquer vestígio de humanidade, reduzindo-me a um objeto, a uma função, em uma única e brutal sentença. Através do Vínculo, senti a verdade fria e cruel por trás de sua ameaça, uma verdade que me gelou a alma. Não era apenas raiva o que ele sentia; era um cálculo preciso, uma avaliação fria de riscos. Ele me manteria vivo não por dever ou honra, mas da mesma forma que alguém protege um objeto frágil e detestado do qual sua própria vida, de alguma forma intrincada, depende.
Assenti, incapaz de formar uma resposta articulada, minha garganta fechada em um nó de desespero. O herói que eu admirava a vida toda havia se tornado meu pior pesadelo, e estávamos agora, literal e tragicamente, inseparáveis.
(Lucas)
Virei-me, sem esperar por uma resposta, a conversa encerrada.
“Vamos”, ordenei, começando a caminhar para fora do salão, o som dos meus passos ecoando com uma finalidade sombria.
Cada passo era pesado, cada batida do meu coração um lembrete constante do pulso fraco e assustado que agora ecoava no meu próprio ser. Os nobres e generais abriram caminho, seus rostos uma mistura inconfundível de pena direcionada a mim e profundo desprezo por ele. Eles sabiam. Todos sabiam. A profecia não era uma benção, mas uma maldição que nos havia condenado desde o início. Meu destino, forjado em anos de treinamento rigoroso, disciplina férrea e um poder inato que eu havia jurado usar para proteger Eldoria, havia sido reduzido a isto: a babá do arauto do nosso próprio apocalipse. Malakor podia vir. Pelo menos, quando ele chegasse, eu teria um inimigo que teria permissão para destruir sem restrições.
Continua…