✧ O Cântico de Ajuste ✧
(Tiago)
Vestir as roupas de Lucas foi uma nova etapa em minha já extensa lista de humilhações silenciosas. O linho fino, embora impecavelmente limpo, ainda exalava o aroma característico de Lucas — uma fragrância complexa que misturava o odor acre de aço polido, o salgado do suor de um corpo habituado ao esforço físico e a nota terrosa do sabão rústico que os soldados da guarnição utilizavam. Era o perfume de um mundo brutal e visceral, um universo ao qual eu, com minha alma mergulhada em tomos empoeirados, jamais pertenceria. E o próprio tecido, cortado e moldado para abraçar os músculos definidos e os movimentos eficientes de um guerreiro, parecia protestar contra a minha silhueta desajeitada.
A túnica esticava-se de forma desconfortável sobre meus ombros mais largos do que o habitual e sobre a barriga que a preocupação e a falta de exercício tornaram proeminente, as costuras pareciam tensionar-se até o limite, gritando em um protesto mudo contra o corpo que tentavam conter. As calças eram ainda piores, apertando dolorosamente minhas coxas, obrigando-me a restringir meus movimentos a um caminhar cuidadoso, quase contido, a cada passo uma lembrança da minha inadequação. Sentia-me como um ganso de pelúcia enfiado dentro da pele de um falcão majestoso, uma farsa ambulante em meio a um campo de batalha. E o Vínculo, nossa conexão arcana, não apenas confirmava, mas amplificava essa percepção: Lucas via com clareza perturbadora minha grosseira inadequação física. Sua percepção, fria e penetrante como o gelo, era uma onda de desdém que me fazia encolher por dentro, desejando evaporar diante de seu olhar julgador.
(Lucas)
Observei-o se contorcer com uma agonia visível para vestir minhas roupas de treino. Um bufo de impaciência e desprezo mal contido escapou dos meus lábios. Ele se movia como um saco de batatas amarrado no meio, a cada tentativa de ajeitar o tecido, o desarranjo aumentava. O linho, que em mim proporcionava uma agilidade quase felina, nele se transformava em uma camisa de força restritiva, um símbolo de sua fraqueza. Era patético, mas mais importante, era completamente impraticável. Aquele tecido, maltratado por seu corpo desajeitado, não suportaria sequer um dia de marcha antes de se rasgar em múltiplos pontos. Um problema a mais, em uma lista crescente de complicações que essa aliança desastrada me impunha.
Fechei os olhos por um breve instante, focando minha energia, concentrando-a em um único ponto. A magia de um guerreiro, diferente da intrincada teia de conhecimento arcano que Tiago desvendava em seus tomos, é direta, funcional, uma ferramenta afiada forjada para um propósito claro e inabalável. Estendi minha mão em sua direção, a palma aberta, sentindo o sobressalto que percorreu nosso Vínculo, uma onda de surpresa e apreensão dele.
(Tiago)
Eu estava tentando, com dedos trêmulos, ajustar a gola apertada que me sufocava levemente quando senti uma ondulação sutil no ar, uma vibração quase imperceptível que fez os pelos dos meus braços se arrepiarem de forma involuntária. Era magia, sem dúvida, mas de uma natureza completamente diferente de tudo que eu havia estudado em meus anos de dedicação aos grimórios. Não havia palavras arcanas entoadas, nem gestos complexos e calculados; era pura intenção manifestada, uma força bruta canalizada com precisão. Vi a mão de Lucas estendida, imóvel, em minha direção, e por um instante aterrorizante, meu coração gelou no peito, antecipando algum golpe mágico, uma punição cruel por minha incompetência. Em vez disso, senti um calor suave percorrer o tecido das roupas, um calor que parecia penetrar as fibras mais íntimas.
Com um sussurro quase inaudível, um som que poderia ser confundido com o vento passando por tecidos finos, o tecido cedeu, esticando-se suavemente. As costuras relaxaram, a pressão opressora em meus ombros e em minhas coxas aliviou instantaneamente. As roupas agora me serviam, moldando-se ao meu corpo com uma perfeição inesperada. O feitiço foi tão simples, tão eficiente, que a humilhação retornou com uma força redobrada, esmagadora. Ele havia consertado meu problema de forma tão trivial, em menos de dois segundos, com um esforço que parecia ser menor do que o necessário para derrubar um frasco de reagente.
(Lucas)
Um simples “Cântico de Ajuste”. Uma magia tão fundamental que é ensinada a todos os recrutas do exército, para que seus uniformes possam se adaptar às mudanças corporais durante as longas marchas, quando a fome ou o esforço ditam o ganho ou a perda de peso. Uma magia tão básica e primitiva que eu mal a considerava magia em seu sentido mais elevado. Para Tiago, contudo, através da nossa conexão, senti sua admiração assustada, uma emoção crua e palpável, misturada com uma dose cavalar de autodepreciação humilhante. Era mais uma demonstração, mais uma prova do abismo intransponível que nos separava: ele era capaz de discorrer sobre a teoria da criação do universo com detalhes minuciosos, mas desconhecia a habilidade mais rudimentar de remendar uma calça.
“Vamos”, eu disse, minha voz desprovida de qualquer inflexão, um eco de minha impaciência contida.
Peguei minha mochila e a dele, que agora continha apenas os poucos itens que eu julgava essenciais para a missão, além de uma pedra peculiar de queijo de odor fortíssimo que ele, com um murmúrio sobre “não desperdiçar nada”, insistira em embrulhar em um pedaço de pano. Cada segundo que passávamos ali era uma nova tortura para ambos, uma agonia lenta e proposital.
(Tiago)
A caminhada pelos corredores polidos e frios do palácio pareceu estender-se em uma eternidade, configurando o mais longo corredor da morte que minha mente apreensiva poderia conceber. Deixamos para trás o cheiro forte e pungente do meu fracasso químico, mas o Vínculo, essa conexão inquebrável e indesejada, garantia que a memória dele permanecesse viva, impregnada na indiferença calculada de Lucas. Membros da corte, nobres de alto escalão e conselheiros de barba grisalha, pararam seus afazeres para nos observar passar, seus olhos fixos em nossa figura inusitada. Seus olhares, porém, não transmitiam esperança ou encorajamento; eram olhares carregados de ceticismo, de uma pena condescendente direcionada a mim e de um respeito relutante por Lucas, o único guerreiro competente de nossa dupla, agora inexplicavelmente atrelado a uma âncora de carne e osso que apenas o atrasava.
Eu podia ouvir, em minha mente, seus pensamentos não ditos, suas apostas silenciosas sobre quanto tempo levaríamos para falhar miseravelmente em nossa empreitada. Meu desejo mais profundo era me encolher, desaparecer em meus próprios ombros, tornar-me invisível, mas a presença constante e imponente de Lucas ao meu lado, rígida e desafiadora, me forçava a continuar andando, passo após passo, em direção ao inevitável.
(Lucas)
Eu sentia os olhares famintos dos abutres da corte cravados em minhas costas, como se fossem garras afiadas buscando um ponto fraco. Eles nos enviaram para esta missão, claramente impossível e destinada ao fracasso, não porque acreditassem em nosso potencial, mas simplesmente para se livrarem de um problema que os incomodava. Se falhássemos, como a maioria esperava, eles poderiam afirmar com grande convicção que era o resultado esperado e previsível. Se, por algum milagre inexplicável, obtivéssemos sucesso, eles, sem dúvida, clamariam para si a glória da vitória. A política, aquele labirinto traiçoeiro de intrigas e interesses escusos, era, para mim, um lodo ainda mais perigoso e infeccioso do que qualquer pântano infestado por criaturas demoníacas.
Ignorei-os, cada um deles, como se fossem meros espectros. Minha mente já estava focada no caminho à frente, traçando rotas estratégicas, calculando rações de suprimentos, antecipando emboscadas e calculando as probabilidades de sucesso. A onda constante de vergonha e insegurança que emanava de Tiago era uma distração irritante, um ruído de fundo dissonante que eu me esforçava ao máximo para silenciar e ignorar. Ele se importava profundamente com a opinião daqueles vermes rastejantes. Eu, por outro lado, só me importava com o objetivo final, a missão a ser cumprida.
(Tiago)
Finalmente, os imensos portões principais da cidadela começaram a se erguer, abrindo-se ao mundo exterior com um gemido profundo de correntes enferrujadas e madeira antiga rangendo sob o peso de séculos. A luz do sol da manhã nos atingiu em cheio, e com ela, o som vibrante e o cheiro pungente da cidade em plena efervescência: o aroma doce de pão assando nas padarias, o odor forte de couro sendo curtido nos curtumes, o som caótico de milhares de vidas seguindo seu curso, alheias ao nosso fardo iminente. À nossa frente, a estrada principal se bifurcava em dois caminhos distintos que convergiam para a sombria Floresta das Sombras, um destino que já prenunciava perigos. Um dos caminhos, mais curto e aparentemente mais fácil, seguia o curso sinuoso do rio, enquanto o outro, mais longo e desafiador, atravessava uma vasta e exposta planície.
Num impulso súbito, movido por uma necessidade desesperadora de provar meu valor, de demonstrar que todo o meu tempo dedicado aos livros não fora em vão, eu quebrei uma das ordens claras e diretas de Lucas. Eu falei.
(Lucas)
O ar fresco e revigorante que soprava para fora dos muros imponentes do castelo foi um alívio bem-vindo. Finalmente estávamos livres da opressão da corte e de seus olhares invasivos. A missão, de fato, começava agora. Apontei com convicção para o caminho mais longo, aquele que atravessava a planície aberta. Era a rota mais direta, embora mais difícil fisicamente, atravessando um terreno acidentado que eu conhecia intimamente de minhas patrulhas anteriores. Menos chances de sermos seguidos facilmente, mais oportunidades de encontrar pontos estratégicos de vantagem.
Estava prestes a dar o primeiro passo, a iniciar nossa jornada, quando senti uma hesitação tênue vinda de Tiago, seguida por uma onda de sua ansiedade acadêmica, aquela energia nervosa e palpável de quem está prestes a recitar um fato ou uma teoria. E então, ele abriu a boca para falar. A insubordinação foi tão imediata, tão previsível em sua natureza, que uma raiva fria e calculista começou a se instalar em meu peito, como uma serpente se enrolando.
(Tiago)
“Não deveríamos seguir por ali”, eu disse, minha voz soando um pouco mais alta e trêmula do que eu realmente pretendia, um tom revela dor minha apreensão.
Apontei com o dedo para o caminho que seguia o rio.
“A Trilha do Comerciante é, sem dúvida alguma, a melhor opção. De acordo com os mapas antigos que consultei e os registros de viagem detalhados, podemos chegar ao nosso destino final em apenas oito horas. Além disso, a presença constante do rio ao longo da rota nos garante acesso imediato à água para nos mantermos hidratados durante todo o percurso…”
As palavras jorraram de mim, uma torrente incontrolável de conhecimento que era, naquele momento, meu único escudo, minha única defesa contra o julgamento de Lucas. Por um breve instante, enquanto as palavras saíam, senti uma fagulha de esperança acender-se em meu peito. Eu havia oferecido uma informação útil, uma estratégia tática valiosa. Eu havia, finalmente, contribuído de alguma forma significativa. Mas então, meu olhar pousou no rosto de Lucas.
(Lucas)
Ele parou de falar abruptamente, e o silêncio que se seguiu pairou entre nós, pesado e carregado de significados não ditos. Eu nem me virei completamente para encará-lo, apenas inclinei a cabeça levemente em sua direção. O Vínculo me transmitiu sua pequena e patética onda de esperança, uma emoção frágil que eu estava determinado a esmagar com a força implacável da minha vontade.
“Mapas antigos”, repeti, a voz baixa, cada sílaba pingando com um desprezo gélido e cortante. “Mapas antigos não revelam, meu caro ‘bibliotecário’, que a Trilha do Comerciante é um funil perfeito para qualquer bando de ladrões e que o curso daquele rio é, infelizmente, patrulhado por criaturas monstruosas que Malakor despertou de seu sono ancestral.”
Virei-me para encará-lo diretamente, sentindo sua efêmera esperança murchar e morrer diante do meu olhar.
“Eu não lido com o que está escrito em pergaminhos empoeirados. Eu lido com o que é real, com o que existe diante de nós. E nós vamos pelo caminho mais longo, não há discussão.”
Minha decisão era final, uma parede de granito maciço contra a qual sua lógica frágil e de papel se desintegrou completamente. Sem sequer esperar uma resposta, comecei a andar, sentindo, com uma satisfação sombria e cruel, o arrastar de seus pés relutantes e a onda de resignação amarga que fluía de sua mente diretamente para a minha.
Continua…