08___FAÍSCA

Um conto erótico de Thomas Britto
Categoria: Heterossexual
Contém 4429 palavras
Data: 08/08/2025 10:12:39
Última revisão: 10/08/2025 03:37:40
Assuntos: Heterossexual

FAÍSCA

Bya naquela noite, cortou, lixou as unhas e pensou: esmalte, preciso comprar isso também. Deixou a roupa meio que separada. A bermuda meio sem graça, com estampa quase infantil. Uma camiseta num amarelo feio, já sem cor de tanto uso.

Ela passou a noite ensaiando o que diria — separando mentalmente os temas como se fossem fichas de perguntas: família, rotina, futuro. Não queria parecer ansiosa, nem cair no mesmo erro da outra vez, quando se atropelou por medo de parecer menos. Queria parecer leve, espontânea — como ele era. Queria que ele visse que ela podia pertencer àquele mundo — mesmo que só por alguns minutos, ao lado dele e dentro daquele carro preto com cheiro de couro e perfume.

Ainda enrolada na cama, por volta das 7h15, o celular vibrou. Era uma foto encaminhada. No chão do carro, caído perto do tapete, o batom dela. A legenda veio com aquele tom de provocação discreta —

“Olha o que o mecânico acabou de me mandar... perguntou se tô usando batom escondido”

Ela corou na hora. Fez que não viu — cobriu o rosto rindo com a camiseta dele que tinha dormido abraçada. Caminhou pro banheiro ainda sorrindo, tocando o batom na boca no gesto que nunca tinha feito, quase ensaiando. Sentou no vaso e escreveu:

“Mas que esquisito isso... não sabia desse teu lado, kkkkk”

Enquanto tomava café, a casa já tinha despertado. A tia preparando o almoço, o tio mexendo nos vasos da garagem. A rotina de sempre. Mas o celular vibrou de novo:

“Kkkkk esse batom aí tem mais presença que você...”

“Tô saindo agora — vou pro treino no banco e depois pego o carro. Te espero no posto, pode ser? Umas 2 e meia, 3?”

Ela respondeu:

“Combinado! Mas olha lá, não vai deixar o batom lá com ele hein...”

A resposta dele veio rápida:

“Tá maluca, kkkk — eu adoro essa cor...”

Bya sorriu — sentia-se leve, animada. As mensagens dele mostravam bom humor, vontade. Isso bastava.

Entre um produto de limpeza e outro, já pensava — “ainda bem que não passei esmalte... mas hoje vou comprar. Quem sabe consigo uma amostra de perfume também.”

Por volta das 11h30, ela já estava pronta. O serviço de casa terminado. A última louça lavada. O relógio em cima da pia marcava 11h43 quando o celular avisou:

“Só pra avisar, já tô na academia — depois vou pro banco.”

Ela respondeu com um sorriso que tentou esconder nervosismo:

“Sei... tô saindo pra cidade agora, minha tia precisa de umas coisas. Ia amanhã, mas vou aproveitar...”

Sem resposta.

O centro estava um caos — calor, trânsito, e o 5º dia útil. Gente demais. Ela percorreu as vitrines desejando tudo. E de novo, sem perceber, parou na frente da loja de lingeries. A mesma loira atrás do balcão, agora distraída com o celular.

Na vitrine, um lado romântico, o outro bem sensual. Queria os dois — mas não era hora. Pensou rápido: “Será que a gente vai durar até lá?” A insegurança bateu — seu reflexo no vidro, com todas aquelas coisas caras atrás, fez doer um pouco. Foi direto pro banheiro da praça.

No banheiro público, ela tentava fazer rotina de princesa. O cheiro era de desinfetante com muitas mulheres esperando. Ela se ajeitou na pia, prendeu o cabelo, reforçou o lápis — mas o batom... Ah, o batom. Que falta fazia. Deu vontade de pedir emprestado, mas se conteve. Amarrou um lenço no pescoço — e até ficou legal. Enquanto ajeitava o lenço, passou os dedos na boca, a boca seca, querendo lembrar o gosto do batom que nunca tinha usado.

Na perfumaria, tentou melhorar mais — cheirava os hidratantes, testava perfumes como se fosse comprar. Não lembrava qual tinha usado da outra vez. “Será que ele vai perceber?” Na dúvida, usou outro. Ou era o mesmo?

Maquiagem? Esquece. Nada de demonstração hoje – a loja estava muito cheia... Escolheu um esmalte vermelho escuro. Bonito. Mas o batom... sempre faltava alguma coisa. Ia encontrá-lo sem.

Saiu da loja direto pro mundo real — barulho, calor infernal, buzinas, fumaça. E o coração — esse, começou a disparar. Porque viu ele. Do outro lado da praça, em frente ao banco. Ele alí parado ainda mais lindo do que ela lembrava – como miragem. O corpo reagiu antes da mente: coração disparado, a boca secando, a pele arrepiada. O porte físico dele, a regata branca, o braço tatuado mexendo no celular — um gatilho que a fez atravessar correndo, quase sem pensar.

Andava devagar, fingindo naturalidade. Ele ainda mexia no celular quando ela parou bem na frente.

— “Mas olha só quem eu encontro aqui...”

Ele ergueu o olhar, ainda digitando a mensagem... Um sorriso discreto, só. Não houve abraço, nada. Ela estendeu os braços quase para abraçá-lo, mas ele ficou parado, como se aquilo fosse só uma formalidade. Um beijo rápido no rosto e guardou o celular no bolso do calção.

— “Coincidência, né?” — ela escondeu a decepção num sorriso forçado — “Tava indo no cartório com umas coisas da minha tia, mas... se você estiver indo buscar o carro eu posso ir com você, se quiser companhia.”

Ele olhou o relógio e hesitou:

— “Mas e o cartório?”

— “Ah, deixo pra amanhã... sem pressa.”

No caminho, ele comentou baixo:

— “Você tem certeza que tá afim de andar até lá? Eu preferia ter te encontrado lá no posto... tô com outra camiseta na mochila, eu ia trocar de antes. Saí da academia direto, suei demais — tá osso.”

Ela respondeu:

— “Imagina... tá quente mesmo. Fica tranquilo.”

Ela se sentia mais à vontade e segura assim: andando ao lado dele do que dentro do carro. Falava leve — da procura por trabalho, da casa, das tarefas. Ele respondeu que também sabia como era, dividindo com os três caras do apê. Se identificavam.

Ele notou que ela estava com a mochila dele nas costas e comentou:

— “Tô vendo que você tá com minha mochila...que bom que trouxe alguma coisa limpa já”

Bya quase tropeçou:

— “Não, não... é que desculpa ter usado sua mochila... Eu já lavei um pouco hoje. Mas ainda não secou – senão eu já tinha trazido.” Mentiu.

Ele soltou um meio suspiro aborrecido:

— “É que sabe... Tô usando coisa suja, já tô sem roupa de novo. Se amanhã você conseguir trazer alguma coisa... porque eu viajo sexta sem falta e preciso das roupas. Não dá pra chegar na casa da minha mãe desse jeito.”

Ela engoliu o que queria dizer, apertou a mochila, desviando o olhar. Parecia que ela o tinha decepcionado.

Para aliviar, meio nervosa, mudou o assunto:

— “Ah, sim claro, vai dar sim.... e que bom que teu carro já arrumou.”

Ele respondeu curto:

— “Nem fala”

— “ Eu tô não vejo a hora de ficar sozinho com você pra repetir aquele lance de novo, e pegar estrada no fim de semana.”

Ele sorriu malicioso, o tom leve mas o significado claro. Ela sentiu o calor subir.

E naquele momento, no meio do calor, barulho e multidão, ela imaginou que talvez o papo entre eles não ia passar muito dali. Por um instante ela pensava se valia a pena – se era estranho assim com todo mundo no começo. Esses silêncios e amassos.... mas não tinha para quem perguntar.

Quando se deu conta – finalmente entraram numa ruazinha estreita de bairro – sem saída com muitos carros estacionados.

A oficina era pequena — daquelas de bairro — com o piso manchado de óleo, cheiro de graxa no ar e um ventilador grande de chão girando devagar no canto: mais barulho do que vento.

O Fiat Bravo preto já estava estacionado logo na entrada, com o capô entreaberto, como se estivesse apenas esperando por ele.

Assim que chegaram, o mecânico só levantou a cabeça enquanto mexia em outro carro e foi de encontro limpando as mãos num pano sujo. Um ajudante magrelo e distraído trabalhava ao fundo.

Sem cerimônia, Faísca olhou para Diogo, depois para Bya, e já soltou, com aquele riso arrastado:

— Ahhh, então o batom é dessa moça aí? Ufa, Diogo... que alívio, hein? Agora entendi tudo.

Diogo riu também, sem se abalar.

— Me fala aí, Faísca, se ela não é muita presença aqui pra sua oficina... Essa é a Beatriz, uma amiga minha — disse, empurrando Bya de leve com o ombro.

Faísca arqueou a sobrancelha, fingindo surpresa.

— Amiga, é? Sei...

— Que isso, Faísca... Relaxa. Trouxe ela comigo pra ver se você amolece um pouco esse coração de pedra. Tá puxado demais esse orçamento, hein, cara?

— Só que pra amolecer meu coração eu também quero uma amiga — respondeu Faísca, rindo.

Diogo estava claramente perdendo no próprio jogo. Bya forçou um sorriso — não sabia bem se estava entendendo tudo, mas resolveu colaborar e estendeu a mão com leveza:

— Prazer, Beatriz... mas pode me chamar de Bya, com Y... Né, Diogo?

— Ahh... com Y. ficou bonito assim — respondeu Faísca, apertando a mão dela com entusiasmo enquanto olhava para Diogo.

As mãos dele não estavam sujas, mas eram quentes, ásperas. O olhar demorou um segundo a mais que o normal. Ela soltou rápido e ajeitou a mochila nas costas.

A tensão ficou ali no ar — entre o cheiro de óleo e o calor do sol da tarde que descia pelo telhado metálico.

Diogo sorriu com leve provocação e se adiantou até o carro, já abrindo o capô.

— Vai, me mostra aí o que fez, Faísca.

— Era o sensor de temperatura que queimou de novo. Já tinha avisado o Murilo, mas da outra vez ele não quis trocar. Isso trava a ventoinha, aí o motor força e esquenta mais que o normal. Por causa disso, tive que trocar essas duas peças que estragaram por causa do calor, tá vendo?... Fora isso, teve a troca de velas e a limpeza da injeção que tava fazendo o carro engasgar.

Ela, tentando parecer interessada, se posicionou na lateral do carona, meio perto do motor.

Observava enquanto os dois se revezavam nas explicações — esticavam os braços, acendiam a lanterna do celular, apontavam fios, encaixes, peças.

Num dos movimentos, Faísca se aproximou da outra lateral — mais do lado dela — talvez demais.

Ao se inclinar para mostrar um detalhe perto da bateria, acabou tocando o braço dela com o antebraço quente. Nada demais — um esbarrão sutil — mas o corpo dele permaneceu ali. O desconforto veio como um calafrio silencioso.

Ela não recuou de imediato. Estava quase presa entre ele e uma mesa improvisada com caixa de ferramentas.

O espaço era estreito demais — o contato inevitável. O cheiro dele era de graxa, suor e sabonete barato.

Diogo, do outro lado do capô, viu a cena. Seus olhos notaram Bya incomodada, sem saber o que fazer.

Ela ajeitou a alça da bolsa no ombro, esbarrando nas ferramentas e derrubando uma chave de fenda.

Olhou para o chão, nervosa. O mecânico seguia falando, repetindo coisas que já tinha dito. Diogo não disse nada. Apenas observava.

Faísca então voltou para o lado dele e terminou a explicação. Fechou o capô com um baque leve e comentou:

— Tá pronto. Agora só falta a parte menos divertida.

Diogo abriu a mochila, mexendo nas notas dobradas.

— Era pra eu ter passado na agência do Murilo antes de vir. Ia pegar o restante com o ele... mas aí, né... você sabe... apareceu esse imprevisto aqui — disse, olhando discretamente para Bya.

Faísca não respondeu de imediato. Olhou primeiro para o carro. Depois para ela. Só então, meio sorrindo, soltou:

— Ahn... tá. Eu entendi. Então a Bya atrapalhou tudo... e se a Bya atrapalhou ela vai ter que ajudar a resolver, não é, Bya?

Ela fez que sim com a cabeça, sem saber direito no que estava se metendo.

— Ela fica aqui comigo então, até você voltar — completou, olhando diretamente para ela e indo em sua direção, com aquele sorriso de canto de boca difícil de decifrar. Nem ameaçador, nem gentil — apenas seguro demais.

— Ahn... eu ficar aqui?

— Isso, o Diogo vai lá, acerta tudo com o Murilo e volta com o restante do dinheiro. Eu já tinha falado que esse preço é à vista, parceiro. E já dei um desconto também porque é amigo dele. Você ainda pediu pra passar teu carro na frente porque ia viajar... Só fiz o serviço antes por causa do Murilo.

O ar pareceu mais tenso por um instante.

Bya olhou para Diogo. Ele fez um gesto leve com a cabeça, quase como quem dissesse “por favor” — e completou com uma falsa preocupação que não escondia o alívio:

— Tem certeza que tá tudo bem, Bya? Eu posso voltar amanhã, se for o caso...

Ela hesitou. Mas sorriu, tentando parecer segura:

— Tá tranquilo. Assim a gente resolve logo, né, Faísca?

— Aí sim — a Bya entende de negócios mais que você pelo jeito — ele disse, cruzando os braços.

— Demoro uma meia hora, acho. Me espera aqui — Diogo falou, já caminhando até o carro. Mochila jogada num ombro só, passos leves. Nem olhou para trás.

Ela se acomodava na calçada, tentando fazer sombra com o corpo enquanto mexia no celular, sem saber ao certo onde olhar. O sol batia torto no asfalto da oficina, e a claridade deixava tudo meio esbranquiçado.

Foi quando Faísca falou:

— Vai lá e não precisa ter pressa... Eu e a Bya tamo aqui...Vamo entrando logo vai Bya. Lá dentro tem cadeira, tem sombra... Moça bonita não precisa ficar de pé aqui fora nesse calor...

Ela hesitou. Mas se levantou e entrou. A oficina mais lá no fundo era ainda pior: quente, escura, ventilador barulhento, cheiro de ferrugem com pano molhado.

Tinha uma cadeira de plástico encardida num canto, ao lado de uma estante com óleo de motor e tralhas de carro empilhadas.

Faísca veio surgindo da lateral com o pano sujo e a cadeira nas mãos e aquele sorriso de canto.

— Senta aí. Aqui é mais tranquilo. A gente não morde, não.

(depois, mais baixo)

— Então conta aí pra gente... vocês são só amigos mesmo?

A pergunta veio solta, mas seca.

— Ah, sim, a gente é amigo — ela respondeu rápido demais, tentando deixar tudo bem simples.

— Ah, eu entendi... — ele estalou a língua, fingindo acreditar, depois se encostando na bancada.

— E tão saindo faz quanto tempo?

Ela demorou um pouco pra responder, como se tivesse que pensar.

— Três semanas já. Quase isso...

Ele sorriu, lento.

— Ah, então são só bons amigos mesmo, né? — sorriu debochado e emendou:

— Quase um mês e você já vem com ele até em oficina? Deve tá sério então hein...Tenho cliente de muitos anos que nunca trouxe mulher aqui não, sabia?

Ela tentou entender e sorrir ao mesmo tempo, mas se sentia pequena ali. A oficina, o calor, o barulho do ventilador pareciam aumentar.

O papo continuava solto, casual:

— E naquele dia cê deve ter saído com pressa do carro, não foi? Tava muito nervosa? Porque nem viu que deixou o batom cair debaixo do banco... Ainda bem que só esqueceu do batom...

Ele fez uma pausa dramática.

— Eu até pensei que era dele... Ia perguntar, vai que ele gosta da coisa, né?

Bya riu, sem vontade. Ele se divertia.

— Ou então... você deixou de propósito, né? Sei lá... vai que tava com vontade de voltar.

Levantando debaixo do motor, o ajudante magrinho e franzino apareceu com o rosto sujo de graxa e entrou na conversa rindo:

— Ô Faísca... lembra daquela vez do Corsa? Da calcinha no banco...

— Opa... lembro demais. Fio dental, vermelhinho ainda... Tava tudo enrolado na lateral do cinto de segurança. E aquele cheiro... lembra? Nossa, delícia.

— Ainda bem que foi a gente que achou. Imagina se fosse a patroa do cara?

Riram. Mas ela não...Por dentro, a memória veio como um reflexo estranho — lembrou dela cheirando a cueca usada do Diogo enquanto lavava escondida na casa da tia.

Não sabia por que, mas aquilo a atravessou como um pensamento proibido e rápido. Piscou e passou.

Quando voltou ao presente, Faísca ainda a olhava.

Ela queria rebater, mas se sentia presa à cadeira. Olhou em volta. O moleque já tinha sumido pro fundo. A oficina voltou a ficar silenciosa.

Foi quando ele perguntou, como quem não quer nada:

— E do Murilo, você é amiga também? O Diogo falou que ia passar lá...

Ela fez que não com a cabeça, sorrindo. Não queria mais se embaralhar em respostas.

— Ah, então você não conheceu o Murilo? Gente boa, sempre manda carro aqui...

Ela sorriu, mas dessa vez sem mostrar os dentes.

Se virou até o balcão, pegou o celular, depois olhou de novo pra ela.

— Tá afim de descolar uma graninha hoje Bya?

Ela franziu a testa e respondeu no impulso, se levantando da cadeira:

— Não, claro que não — mais alto do que queria.

Faísca deu uma risadinha curta, com os ombros meio erguidos, como quem acha graça da reação exagerada.

— Eita... calma moça... não é isso não.

— Então é tipo o quê? — ela perguntou, irritada mas tentando manter a calma.

Ele apontou com o queixo pro ajudante, que mexia num carro no fundo, distraído. Depois disse:

— É só ligar pra uns clientes, avisar que o carro já tá pronto. Passar uns orçamentos... Essas coisas, eu te ensino. Esse pangaré aí não serve pra isso. E cliente chato, já sabe como é. E depois também, com uma mulher ligando, duvido que os caras vão brigar com você.

E fez uma pausa.

— Cinquenta reais. O que você acha? É rapidinho. Só uns telefonemas, cliente, fornecedor... Dá pra comprar batom novo... e ainda sobra um troco, já pensou?

Ela olhou pra ele, séria, e ele acrescentou:

— O seu amigo Diogo não precisa saber de nada, fica só aqui entre a gente.

Ela hesitou. Mas foi.

Caminhou devagar até o fundo do barracão, passando pelo carro e pelo ajudante distraído, até chegar à porta semiaberta do escritório. Faísca veio logo atrás, os passos lentos, os olhos grudados nela como se já soubessem mais do que deviam.

— Se acomoda aí — disse, indicando uma cadeira de plástico encardida em frente à mesa. O espaço era abafado, com cheiro de suor velho, graxa e falta de limpeza. Um ventilador sujo girava lento no canto, sem trazer alívio.

Na parede, uma mulher seminua colada com durex observava tudo com o mesmo olhar vazio que Bya tentou evitar.

Ela não queria, mas se sentou. A cadeira rangeu. O silêncio era grosso.

Faísca ficou em pé atrás dela, mexendo em alguns papéis. Se inclinou sobre seu ombro para entregar um deles, seu cheiro escapava da camiseta azul desbotada, a respiração quente sobre a nuca, o braço áspero encostando no dela — arranhando de leve a pele suada. Ele não pediu desculpas. Nem fingiu que foi sem querer. O toque e a proximidade eram inevitáveis naquele espaço atrás da mesa. E ela suportava aquilo como se fosse parte do trato.

— Esse aqui é um orçamento, e esse aqui é o outro — disse ele, baixo. — Esse é o valor cheio. Esse é o mínimo. Se pedirem desconto, você nega. Se insistirem, pode parar nesse aqui. Entendido?

Ela assentiu, quase sem respirar.

— Se não quiserem, manda buscar o carro ainda hoje. Se aceitarem, diz que são uns dez dias pra ficar pronto. Sem enrolação. Qualquer coisa a mais, você diz que eu não estou, fala que precisa ver comigo antes, que vai ligar depois.

Ele se afastou, foi até a estante bagunçada, anotou dois números e voltou. Largou o papel diante dela com um gesto seco.

— Pra esses, você liga. Diz que é a Bya da oficina do Faísca. Confirma os valores e fala que o carro já tá pronto. Tem que vir buscar até as quatro da tarde. Fala que a oficina tá cheia...

Senão vira bagunça. O povo chega seis e acha que isso aqui é boteco.

Ela pegou o papel. Os dedos tremiam. Se ajeitou na cadeira e respirou fundo.

Foi quando ele tirou uma nota de cinquenta do bolso de trás e falou, sem rodeios:

— Além desses cinquenta aqui ó... o que você conseguir a mais fica pra você.

Ela congelou.

A cabeça dizia que não. O corpo, cansado, calculava: daria pra pagar a tia. Talvez comprar alguma coisinha, a lingerie.

O cigarro acendeu. Faísca encostou na lateral da porta e soltou a fumaça devagar, os olhos nela o tempo inteiro — avaliando cada gesto como quem calibra uma máquina nova.

O modo como ela mexia no celular, como mordia o canto da boca enquanto esperava a linha, como ajeitava a alça da blusa... tudo era absorvido em silêncio.

Ela ligou primeiro para avisar sobre os carros prontos — como se ensaiasse o lado fácil do trabalho.

Depois encarou o orçamento.

O primeiro cliente não atendeu. O segundo também não. Ela tentou novamente, mais confiante. O segundo atendeu — queria desconto.

Ela repetiu, firme, a desculpa que ouvira antes:

— A peça do seu carro é cara. Tá com demanda alta. A gente passou seu carro na frente — se não fosse isso, ia demorar mais de vinte dias.

Mentia como se tivesse feito aquilo a vida inteira.

E o pior: sentia que estava indo bem.

Faísca soltou mais uma baforada. Nem sorria — só observava.

De longe, era quase impossível saber se ele estava satisfeito... ou esperando o erro.

Ela desligou, tentando esconder o nervosismo com um sorriso.

Ele tirou outra nota de cinquenta do bolso e levantou, com os dedos na altura do peito:

— Boa garota... agora vem aqui buscar seu prêmio extra.

Ela se levantou devagar. A nota parecia brilhar. Pegou o dinheiro como quem aceita um jogo perigoso.

Quando se virou para sair, Faísca a chamou de novo, num tom mais baixo:

— Tem certeza que já pegou tudo, Bya?

Ele estendeu a mão. No centro da palma, ela viu o seu batom.

Faísca não sorria. Apenas olhava, firme:

— E aí, você quer de volta? Ou tá com medo?

Ela pegou o batom. O sangue subiu no rosto dela. Os olhos dele fixos no dela, havia uma tensão estranha ali.

E foi nesse instante que o ronco seco do carro de Diogo cortou o ar, como um alarme voltando à realidade.

Faísca nem se mexeu. Apenas tragou o cigarro até o fim e murmurou, quase com tédio:

— Ihhh... acho que teu príncipe já voltou pra estragar tudo.

Ela virou o rosto, ainda com o batom na mão fechada.

Aquilo que parecia apenas um objeto agora queimava em seus dedos como se fosse um segredo deles.

— Fica aqui um minuto, quando der vai lá pro fundo. Tem um banheiro. Espera um pouco e sai como se tivesse vindo de lá. Fechou?

Ela ficou de pé, inquieta. Uma parte dela queria correr, outra não sabia para onde.

Ela assentiu sem dizer nada e guardou o dinheiro na bolsa.

Ele saiu. Porta fechando leve. Vozes do lado de fora:

Diogo caminhava devagar, com o mesmo jeito relaxado de sempre — mas os olhos buscaram Bya de imediato.

— E aí, deu certo? — perguntou Faísca, procurando o dinheiro com os olhos...

— Tudo certo sim. Ela tá aonde?

— Foi no banheiro do fundo, acho. Relaxa.

Diogo entregou um maço de notas dobradas na mão.

— Tá aí — respondeu, mostrando o dinheiro. — Murilo disse que era o mínimo pra você parar de drama.

— O Murilo fala demais, e eu não tenho nada com o assunto de vocês... Mas beleza. Vamos ver se fecha.

Faísca contou as notas com calma.

— Fechou.

(pausa)

— Mas ó... vou tirar mais cem reais pra você....

(tirou duas notas do meio do maço e devolveu pra Diogo)

— E não é pelo Murilo não, foi pela visita mesmo... Quando o cliente traz um brinde assim merece um descontinho.

Diogo segurou as notas, rindo baixo as guardou no bolso.

— Ah, eu sou prático... achei mesmo que ia gostar.

Bya voltou do banheiro em passos leves. Tinha se olhado no espelho embaçado, ajeitado o cabelo com as mãos, passado o batom. O mesmo de sempre.

Só queria voltar e parecer bonita pra finalmente sair com Diogo.

Os dois conversavam perto do carro. A luz do fim da tarde atravessava o galpão, e por um instante, não sabia bem aonde ficar.

Se aproximou devagar, como quem não quer atrapalhar.

Foi Faísca quem a viu primeiro. Ela chegando vindo em câmera lenta.

Diogo seguiu o olhar, e sorriu ao vê-la.

Diogo reparou no batom e comentou:

— Olha só ela aí... então o Faísca devolveu teu batom, Bya? Que sorte...

Ela sorriu, quase imperceptível e Faísca baixando o tom e se aproximando dele falou:

— É que ela se comportou direitinho aqui comigo, parceiro.

— Achei justo... devolver o batom dela.

Diogo ajeitou a alça da mochila no ombro, bem tranquilo. Olhou pra ela, depois pra Faísca:

— Você fez bem. Ela ficou ainda mais bonita, você não acha?

Faísca sorriu, discreto:

— Claro que ficou, eu sou cuidadoso parceiro. Achei que você ia gostar de pegar ela de volta assim, mais arrumada.

Diogo não respondeu na hora. Só observava balançando a cabeça como quem aprova.

Bya, ainda um pouco alheia, comentou querendo encerrar logo:

— Tá tudo certo, então?

Diogo virou pra ela, gentil, com um ar tranquilo:

— Tá sim. E olha... pelo jeito nem foi tão ruim você ter esperado aqui, né? Tá ainda mais bonita agora do que quando eu saí.

Ela sorriu, surpresa com o elogio, era a primeira vez que isso acontecia na frente de alguém.

Achou que ele só estava sendo gentil, mas sentiu que havia ganhado o dia. Sentia-se muito bem pelo dinheiro e pelo elogio.

Faísca deu dois tapinhas na lataria do carro e disse:

— Bom, tú já pegou de volta o que é teu, né?

Diogo respondeu com um aceno curto.

— Tá liberado, então motorista. Vai lá... aproveita você um pouco agora.

e emendou:

— Qualquer coisa, você sabe... é só chamar.

Diogo assentiu, discreto.

Diogo entrou no carro. Bya deu a volta, passou por Faísca, que não resistiu:

— Ô, Bya... e da próxima vez, cuidado aí pra não esquecer mais nada, hein?

Ela não respondeu, só sorriu de canto, como quem entende.

Ao entrar no carro, sentiu correr as mãos firmes de Faísca em sua cintura e depois batendo a porta para ela.

Não, não era hora pra fazer cena...

Diogo deu marcha à ré, como se não tivesse pressa de sair dali.

O ar-condicionado estava ligado, o cheiro de couro e perfume masculino invadindo o espaço.

Sentou no banco de sempre, as mãos no colo, os joelhos juntos.

— Tá tudo certo? — ele perguntou, ligando o som baixinho.

— Tá sim...

— Ele não falou merda nenhuma, não né?

Ela negou com a cabeça.

— Não, imagina — só papo de homem e de carro. Achei até que você ia demorar mais.

Ele apenas respondeu:

— E eu achei que demorou... aproveitei passar em casa e trouxe mais umas roupas pra lavar.

Buzinou duas vezes e acenou fazendo um joia com o polegar enquanto os vidros escuros subiam lentamente.

O Fiat Bravo saiu ligeiro rua acima e os dois estavam de volta onde queriam estar.

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