25 – Logout
Acordei antes do despertador. O quarto ainda estava escuro, mas meu peito já ardia. Um aperto no estômago, como se eu tivesse engolido uma pedra. Virei para o lado e vi Simone dormindo. Tão tranquila. Ela não fazia ideia. Respirei fundo, com culpa. De novo.
Levantei devagar, tentando não acordá-la. Cada passo até o banheiro parecia pesado, como se eu estivesse indo para o corredor da morte. Lavei o rosto com água fria. Olhei meu reflexo no espelho: olhos fundos, barba por fazer.
Tomei um café rápido, mas mal consegui engolir. Minha cabeça girava. Gabriel. Aquele menino tem algo no olhar… algo familiar. E se for meu filho? Meu Deus. Ser pai dele muda tudo. Tudo.
E Simone? Como vou contar? "Oi, amor, lembra da Camila, aquela vizinha que morreu? Então, tivemos um caso. E talvez eu tenha mais um filho." A imagem dela me olhando com nojo, com mágoa, me perseguiu desde o dia do exame. Ela vai me odiar. Vai me deixar?
Mas e se o exame der negativo? Acaba tudo aí. Respiro aliviado, guardo o segredo pra sempre. Ninguém se machuca. Só eu. Aquele sorriso que ele me deu quando saímos da clínica? Aquilo me desarmou. Um sorriso como o meu.
Peguei as chaves, o envelope do laboratório na minha cabeça, mesmo sem tê-lo aberto. Hoje é o dia. Suzy vai me encontrar lá.
No carro, o rádio falava qualquer bobagem que eu não ouvia. Minha cabeça era um redemoinho. Eu queria que Gabriel fosse meu filho. Queria sentir que algo bom saiu daquela traição. Uma vida. Um motivo. Mas também queria que não fosse. Queria apagar tudo. Continuar casado. Esquecer Camila. Esquecer aquela noite.
Estacionei em frente ao laboratório. Fiquei ali por um minuto, com o motor desligado, as mãos suando no volante.
Hoje, minha vida muda. Seja qual for o resultado, nada vai ser igual depois disso.
Respirei fundo. Saí do carro.
E entrei.
Quando entrei no laboratório, vi Suzy sentada, perna cruzada, o olhar fixo no chão. Perto dela, Wilfredo — meu amigo, meu confidente, meu médico de plantão emocional — caminhava de um lado para o outro, mãos nos bolsos do jaleco.
Ele me viu primeiro.
— Só faltava você — disse, tentando soar leve, mas sua voz estava mais tensa que o ar ao nosso redor.
Suzy levantou o olhar, sem sorrir, sem dizer nada. Apenas assentiu com a cabeça.
— Já pediram? — perguntei.
— Estão preparando o envelope — disse Wilfredo. — Disseram que entregam só com todos os responsáveis presentes. É agora.
O silêncio entre nós durou uns segundos eternos. Eu podia ouvir meu coração nas têmporas. Meus dedos tremiam.
A porta da recepção se abriu com um leve rangido. Uma funcionária de jaleco branco, óculos na ponta do nariz, nos chamou com um tom neutro:
— Senhores… está aqui.
Ela segurava um envelope pardo, lacrado. Estendeu para mim.
Foi como se o mundo parasse por um instante. O barulho da rua lá fora se apagou. Eu estiquei a mão devagar, como se estivesse pegando algo radioativo.
— Pode abrir aqui mesmo — disse ela, já se afastando.
Olhei para Suzy. Ela mantinha a mesma expressão impenetrável, como se nada daquilo a tocasse. Wilfredo deu um leve aceno com a cabeça, quase como um "vai".
Rompi o lacre.
Desdobrei as folhas.
Meus olhos correram pelas linhas técnicas até encontrarem as palavras-chave:
"Não há compatibilidade genética entre o Sr. Anderson T. Horner e a criança Gabriel S."
Parei de respirar por um segundo. Meu corpo amoleceu por dentro. Senti o alívio primeiro — uma onda morna me atravessando o peito, como se um fardo tivesse sido arrancado das minhas costas.
Mas logo depois, o vazio. Uma espécie de tristeza difícil de explicar.
Gabriel não é meu filho.
Não vou ter que contar para Simone. Não vou destruir meu casamento. A traição volta a ser um segredo, enterrado. Seguro. Mas então… por que isso me dói?
— Graças a Deus — murmurou Wilfredo, soltando o ar num suspiro pesado, quase sorrindo.
— Uhum — disse Suzy, puxando o celular discretamente e tirando uma foto do laudo com a frieza de quem assina um contrato qualquer.
Fiquei olhando pra folha nas minhas mãos. Era só papel. E ainda assim… parecia que levava com ele um pedaço do que eu não sabia que queria. Um pedaço de uma vida que não seria minha.
— Pronto — disse Suzy. — Agora tudo volta ao normal, né?
Normal.
Olhei pra ela. Quis responder. Mas não consegui.
Guardei o laudo no envelope.
E por dentro, fiquei me perguntando se era sorte… ou uma perda.
Ainda com o envelope na mão, me virei para Suzy. Ela já guardava o celular na bolsa, pronta para seguir com a vida como se nada tivesse acontecido. Mas para mim, aquilo não era um ponto final. Só uma vírgula.
— Suzy… — chamei, num tom mais firme. Ela parou, me olhando com aqueles olhos neutros, quase desafiadores.
— Apesar do laudo… apesar do Gabriel não ser meu filho — comecei escolhendo cada palavra com cuidado — Eu quero deixar claro que vou acompanhar de perto os cuidados com ele.
Ela franziu levemente a testa, como se não esperasse aquilo.
— Eu sei que você é a futura cunhada dele, que terá laços legítimos. Mas… na prática, você será como uma mãe. E eu quero ter certeza de que ele vai ser bem cuidado. Que vai crescer num ambiente saudável.
— Anderson… — disse ela, cruzando os braços — Marcos adora o Gabriel. De verdade. Ele trata aquele menino como um rei, é sangue do sangue dele. Nós dois vamos dar tudo do bom e do melhor pra ele. Você pode ficar tranquilo quanto a isso.
— Não é só sobre dinheiro, Suzy.
— Eu sei — respondeu, mais séria agora. — E ele também vai ter amor. Vai ter estrutura. Eu não sou um monstro e Gabriel é meio irmão do Marcos. Ele tem adoração por Gabriel.
Assenti, devagar. Ela tinha razão. Mas mesmo assim… havia algo em mim que não conseguia simplesmente virar as costas.
— Eu só preciso… — continuei respirando fundo — saber que ele vai ficar bem. Mesmo não sendo meu filho, aquele menino… me marcou. Em poucos dias. Eu não esperava.
Suzy não disse nada por um momento. Apenas me olhou, como se estivesse tentando decifrar o que havia por trás da minha preocupação. Por fim, falou com menos dureza:
— Você é um homem complicado, Anderson. Mas… tá certo. Se quiser acompanhar, acompanhará. Só não se intrometa demais, ok?
— Não vou. Só vou estar por perto. Discreto.
Ela deu um leve aceno de cabeça.
E foi só então que percebi: mesmo sem laços de sangue, Gabriel tinha deixado algo em mim. Uma sombra de paternidade.
Antes que ela virasse de vez para ir embora, fiz a pergunta que vinha me corroendo desde o velório de Camila. Era agora ou nunca.
— Suzy… — chamei mais uma vez. Ela parou, sem se virar totalmente. — Posso te fazer uma última pergunta?
Ela soltou um suspiro impaciente, mas respondeu:
— Pode.
— Você ou a Madalena… tiveram algo a ver com a morte da Camila?
Silêncio.
Por um instante, achei que ela fosse simplesmente me ignorar. Mas então ela se virou, me encarando de frente. O rosto sério, sem sinal de ironia ou deboche. Apenas firmeza.
— Não — disse ela. — Juro por tudo o que tenho. Juro pela minha mãe. Eu não tive nada a ver com aquilo. E até onde sei, a Madalena também não.
Pareceu sincera. O olhar não tremeu. A voz não vacilou.
Mas com Suzy… nunca dava pra ter certeza.
Ela era feita de sombras e intenções silenciosas. E a verdade, no mundo dela, podia ser só mais uma versão conveniente.
— Certo — murmurei, sem insistir.
Ela sorriu de leve, como quem encerra um jogo, e disse com naturalidade:
— Então tá. Amanhã te espero pra assinar a venda da sua parte da empresa. Vai ser bom resolver isso logo.
— Vai.
Ela saiu. Salto firme, passos decididos. Como se tudo aquilo fosse apenas mais um dia qualquer. Suzy havia mudado muito, mais seguira, menos menina, mais mulher.
Wilfredo se despediu, alegre.
Fiquei ali parado por alguns instantes, sozinho com o envelope fechado, com mil pensamentos e um gosto amargo na boca.
Gabriel não era meu filho.
Camila estava morta.
Saí do laboratório como quem sai de um sonho turvo. A luz do sol me agrediu por um instante, e o som dos carros, das pessoas, tudo parecia distante. Meu corpo andava, mas a cabeça ainda estava cheia — Gabriel, Suzy, Camila, culpa, alívio, desconfiança.
Entrei no carro sem destino, como tantas vezes antes. Mas havia algo diferente naquela manhã. O volante parecia saber o caminho que eu evitava — e, quando me dei conta, estava diante do prédio da velha imobiliária. O mesmo lugar onde, anos atrás, cheguei a cogitar vender o apartamento. Nunca levei adiante.
Entrei.
— Quero colocar meu imóvel à venda — disse. A voz firme me surpreendeu. Talvez fosse só o medo disfarçado.
A corretora se levantou com um sorriso ensaiado, começou a fazer perguntas, sugerir valores. Eu respondia no automático, como se tudo aquilo estivesse acontecendo com outro homem. Mas era comigo. Era meu o apartamento onde morei por anos — meu esconderijo, meu teatro de repetições.
Não precisava mais do apartamento, estava morando com Simone.
Meu amor por ela. Minha culpa por ela.
Era isso. Eu queria seguir com ela. De verdade. Sem recomeços forçados. Sem idas e vindas disfarçadas de paixão. Sem medo de ser homem o bastante para amar só uma pessoa.
Ao sair da imobiliária, vi uma placa do outro lado da rua. Vermelha. Como um sinal.
Dr. Mauro Feus
Psicólogo
Anotei o número.
Talvez alguém pudesse me ensinar a ser menos impulsivo. Menos fraco.
Mais digno de Simone.
Estava decidido a marcar uma consulta.
Horas depois, já em casa, tirei os sapatos e me joguei no sofá. Simone estava fora, com Beatriz e a casa, apesar de limpa e clara, parecia cheia de fantasmas. Me vi olhando pro teto, perdido, até que ela voltou à minha cabeça: Alicinha.
Maldita memória.
Alicinha era diferente de todas. Aquela pele de ébano, os olhos doces, o sorriso que parecia desenhado. E aquele jeito provocador.
Balancei a cabeça. Não. Eu não queria. Não devia.
Mas o pensamento não saía. Não era só desejo — era fixação.
Levantei. Fui até o escritório. Abri o notebook.
“Só mais uma vez”, murmurei pra mim mesmo. “A última.”
Entrei no e-mail. Lá estava: uma mensagem de semanas atrás, com o título discreto — D. Ana – Cardápio.
Cliquei.
O site era o mesmo. Discreto, elegante, subterrâneo.
Comecei a buscar.
“Modelos”.
Perfis.
E então a encontrei: uma mulher negra, linda, traços suaves, curvas delicadas e generosas, olhar sereno — muito parecida com Alicinha.
Cliquei.
Customizei o pedido. “Traje de babá.” Indiquei o ambiente: brinquedos ao fundo, móveis claros, tapete fofo. Tudo como na fantasia que me perseguia.
Preenchi o horário.
Antes de fechar o notebook, fiquei olhando a tela por longos segundos.
— É a última vez. — sussurrei.
Mas nem eu acreditava de verdade.
Fechei o computador.
Aproveitei para separar alguns documentos da empresa, revisar tudo antes de assinar o contrato.
Na mesma gaveta onde os guardava, encontrei algo que já tinha esquecido: a ata da eleição de síndica da Camila — a primeira, aquela em que ela foi derrotada. Tinha usado o documento tempos atrás para confirmar seus dados: RG, CPF, nome completo… até a foto registrada pelo olho mágico digital.
Junto dela, estavam também algumas anotações antigas — pesquisas que fiz sobre Alex, da época em que ele ainda namorava Simone. Curiosidade demais, ciúmes demais. Era estranho olhar para aquilo agora.
Camila estava morta.
Alex, um dos suspeitos.
Era difícil acreditar. Eles tinham uma ligação — trabalhavam juntos na mesma agência, estiveram juntos naquela festa.
Voltei aos papéis, folheei por reflexo, mas não encontrei mais nada. A mente já estava em outro lugar. Resolvi parar. Fui tomar um banho.
Não era só o corpo que eu queria lavar, mas a culpa que me grudava na pele feito suor antigo. Culpa por tudo: por Simone, por Camila, por ter marcado uma visita ao puteiro de Dona Ana. Sabia que seria a última vez.
Mas, mesmo debaixo d’água, Camila e Alex continuavam me invadindo. Era como se parte deles tivesse se instalado em mim — como um eco que não passa.
Saí do banho com a toalha nos ombros, os cabelos ainda pingando. Estava mais leve — fisicamente, pelo menos. Por dentro, o desejo latejava, teimoso, como um resto de febre.
Foi nesse instante que algo se encaixou.
Uma conexão que eu não tinha visto antes.
Voltei correndo aos documentos, mãos trêmulas, olhos rápidos.
Só podia ser isso. Era isso. Minha suspeita se confirmou!
Mas, será que Simone sabia?
Acho que não.
Ela também tinha sido enganada
Ouvi a porta da sala abrir.
— Amor, cheguei! — era Simone.
— Oi! — respondi, vestindo uma camisa simples. — Tá sozinha?
— Não… meus pais vieram junto. Querem te ver.
Suspirei por dentro. Claro. O sogro vinha cada vez mais com aquela cordialidade polida e cheia de intenções.
Fui até a sala encontrar com ele. O Dr. Álvaro. Médico, empresário poderoso, acostumado a ter o mundo girando a seus pés.
— Anderson! — disse com aquele entusiasmo calculado. — Que bom te encontrar. Fiquei sabendo que vai vender sua parte da empresa…
Assenti, apertando sua mão firme.
— Sim. É hora de um novo ciclo.
Ele sorriu.
— E é exatamente sobre isso que quero falar.
Sentamo-nos. Simone trouxe café. A sogra elogiou a decoração. Mas logo Dr. Álvaro retomou o foco.
— Estamos providenciando a abertura de uma terceira unidade do hospital, a primeira fora da cidade. E já temos projetos aprovados para outras três cidades. Pretendemos, nos próximos anos, lançar nosso próprio plano de saúde. Será algo grande. E, claro, com isso… tecnologia será essencial. Sistemas, segurança, integração, inteligência artificial… — Ele fez uma pausa, olhando diretamente pra mim. — Queremos você como diretor de TI da rede.
Fiquei em silêncio por um instante. A proposta era séria. Estruturada. E tinha tudo a ver comigo. Grandes desafios, algo sólido, fora do mundo das startups e da instabilidade emocional dos sócios. Um recomeço.
— É um projeto interessante — respondi, olhando para ele e depois para Simone, que me observava com expectativa. — E ambicioso. Mas é… exatamente o que eu preciso agora.
— Ótimo! — Álvaro se levantou e me estendeu a mão de novo, desta vez com mais força. — Sabia que você veria o valor disso. Você é um gênio da informática, Anderson. E mais do que isso… um grande homem. Íntegro. Tenho muito orgulho de tê-lo na família.
Sorri.
Apertei sua mão.
Agradeci.
Mas por dentro, a frase ficou ecoando. Íntegro.
Olhei para Simone, tão linda, tão dedicada, sorrindo como quem acredita num futuro brilhante.
E senti a culpa subir pela garganta.
Eu tinha feito a escolha certa.
Mas ainda havia uma “modelo” no caminho.
Eu prometia a mim mesmo que seria a última vez — sem saber se saberia cumprir.
No dia seguinte, vesti minha melhor máscara.
Simone estava animada. Dizia que aquele era um passo importante, que agora tudo estava se alinhando — que, finalmente, eu estava deixando para trás o que precisava ser deixado.
No carro, a caminho da empresa, perguntei com um tom casual:
— Simone, sobre o apartamento em que a gente mora... por que você o escolheu? Alguém indicou?
Ela hesitou.
— Ah, um dia passei em frente... achei bonito... e... — ela balançou a cabeça, como tentando se lembrar — e resolvi procurar saber mais.
— Foi o Alex quem te indicou?
Ela se virou rápido.
— Não, Anderson. Pelo contrário. Ele, na verdade, me desencorajou a comprar. Mas eu não queria ficar falando do Alex...
— Eu sei. Mas só dessa vez. Me conta como você conheceu o condomínio.
Ela respirou fundo.
— No dia em que terminei com o Alex, ele ficou mal, bem abatido. Estava sem carro — o dele vivia na oficina — então eu me ofereci pra levá-lo em casa. Mas ele pediu pra ser deixado na casa de um amigo.
— Que amigo?
— Ele chegou a falar o nome... mas eu juro que esqueci. Sinceramente. Esse amigo morava num apartamento alugado — no nosso condomínio. Foi ali que eu deixei o Alex. Eu nem conhecia o lugar na época, mas achei bonito. Me deu vontade de voltar, conhecer melhor, ver algum imóvel.
— Então... você conheceu o condomínio no dia em que terminou com ele. E ele te disse que ia visitar um amigo ali?
— Isso. Dias depois, pedi que ele fosse ao hospital pegar umas coisas dele que ainda estavam comigo. Aproveitei pra perguntar se o tal condomínio era bom, se o amigo gostava de morar lá.
— Você lembra em que apartamento morava esse amigo?
— Engraçado... no dia da carona ele disse que era o 5. Depois, naquele encontro no hospital, falou que era o 8 da outra torre. Achei estranho. Mais tarde descobri que nenhum dos dois apartamentos jamais foi alugado.
Ela fez uma pausa. O incômodo começava a se insinuar no tom dela.
— Ele ainda disse que o amigo odiava o lugar. Que era caro, ruim, que já estava de saída. Mas... por que isso agora, Anderson?
— Depois eu te explico. Estamos chegando na empresa.
Descemos do carro e entramos juntos na sede da antiga startup. Mas ela já não era mais a mesma. As paredes tinham mudado de cor, os móveis eram outros. O logo Neothread desaparecera — substituído por um novo nome, uma nova identidade. Outro mundo.
Mas o cheiro ainda era o mesmo. Um misto de café velho, ar-condicionado e muita ambição.
Na sala de reuniões, já estavam todos. Madalena, maquiada demais para um dia de semana. Sonia e mais dois advogados. Documentos empilhados. Tudo em seus lugares. Tudo como deve ser numa execução cirúrgica.
Assinei os papéis em silêncio. Foram minutos — secos, objetivos. Nenhum discurso. Nenhuma lágrima.
Simone ao meu lado, com seu sorriso diplomático.
Depois, vieram os apertos de mãos.
Madalena sorriu, os dentes perfeitos, a voz doce demais.
— Anderson, vamos fazer uma despedida oficial na semana que vem. Algo simples, com comes e bebes. Você e o Rui merecem. Foi uma trajetória bonita.
Assenti, sem me dar ao trabalho de responder. Fiquei olhando para o fundo da sala, onde antes havia uma lousa com meus rabiscos, ideias, algoritmos. Agora era só vidro limpo.
— A Neothread não é mais minha — pensei.
Aliás… nem Neothread se chama mais.
Simone tocou meu braço, sutil, como quem percebe que o passado não deve durar mais do que o necessário. Me levantei.
Quando saímos da sala de reuniões, Simone parecia leve — como se um peso tivesse sido tirado do caminho entre nós.
— Acho que foi tudo muito tranquilo, né? — disse ela, com aquele sorriso que só quem desconhece a verdade consegue sustentar por tanto tempo.
Assenti em silêncio, guardando a pasta com os documentos assinados debaixo do braço.
Simone consultou o relógio:
— Preciso encontrar meu pai no hospital. Você me deixa lá? Depois peço pra ele me levar pra casa.
Deixei Simone no hospital e segui rumo ao endereço que eu já sabia de cor — o mesmo onde os segredos ganhavam perfume e cenário. Onde a realidade era suspensa por uma fantasia bem paga.
O bom e velho puteiro!
Assim que a porta de vidro se abriu e entrei na recepção, o cheiro suave me envolveu. A luz era baixa, elegante, e tudo parecia milimetricamente calculado para manter o mistério — e o silêncio.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ouvi uma voz familiar:
— Ora, ora… se não é o Anderson.
Me virei. Lá estava ela.
Dona Ana.
Elegante, discreta como sempre, mas com aquele brilho nos olhos que só os anos e o poder silencioso conferem. Usava um vestido escuro, impecável, e caminhava com a calma de quem domina o ambiente — e as pessoas.
— Dona Ana… — sorri, surpreso — ainda por aqui.
Ela se aproximou e me abraçou como se abraçasse um velho amigo. Um abraço discreto, quase simbólico, mas com a força da memória.
— Que bom te ver. Como você está?
— Tentando manter a sanidade — respondi, meio rindo, meio confessando.
Ela riu com gosto. Então se virou para a recepcionista, uma jovem de postura impecável que nos observava em silêncio:
— Esse moço foi um dos meus primeiros clientes, sabia?
A recepcionista arregalou levemente os olhos, surpresa.
— É mesmo? — ela disse, sorrindo com educação.
— Eu lembro bem… — completou Dona Ana. — Faz o quê? Uns quinze anos?
— Quinze, exatamente — confirmei, balançando a cabeça, impressionado. — Como o tempo passa.
— Nunca esqueci — disse ela. — Sabe por quê?
Fiquei curioso.
Ela sorriu de lado.
— Porque o seu primeiro pedido foi… inusitado.
Ri.
— Pedi uma garota parecida com a Monalisa, né?
— Exato! — disse ela, com um brilho no olhar. — Naquele dia eu só pensei: esse moço ou é artista, ou é doido.
— Um pouco dos dois, talvez — respondi, e rimos juntos.
— Menina… você não faz ideia. Esse aí — falou se dirigindo à recepcionista — foi um dos meus primeiros casos mais malucos.
A recepcionista sorriu, já acostumada com histórias excêntricas, mas claramente curiosa.
— Sério? Por causa da Monalisa?
— Exatamente! Onde, me diz, onde que eu ia achar uma puta parecida com aquela mulher do quadro? — disse, rindo. — Na hora quase mandei ele tomar no cu. Mas aí… veio o valor que ele ofereceu. Aí eu pensei: bom, vamos procurar a Monalisa ué.
— E achou?
Continua...