Numa tarde de primavera, enquanto varria o quintal, vi um vulto ao longe, na estrada que levava à Passa-Vinte. Era um homem, carregando uma mochila, o passo cansado, mas firme. Meu coração disparou, mas não era Paulinho. Era apenas um viajante, um estranho que pedia água e seguia seu caminho. Mas, naquele momento, percebi que, mesmo sem ele, eu ainda o esperava. Talvez sempre esperasse.
E assim, entre os morros de Passa-Vinte, sob o céu que ora brilhava, ora se nublava, eu continuava, uma mulher em busca de si mesma, carregando no peito o vazio de um coração que não usava mais, mas cujo peso jamais me deixaria.
[CONTINUANDO]
Eu me via novamente enlaçada pelas ruas de terra de Passa-Vinte, onde cada pedra parecia guardar um pedaço da minha vergonha, mas estranhamente, eu não mais me sentia como parte dali. O sol, generoso em sua luz, mas implacável em seu calor, banhava o lugar com um brilho que fazia o orvalho reluzir, como lágrimas que eu não ousava derramar. Voltei, trazida à força por meus pais, após a mentira que teci em Belo Horizonte desmoronar como um castelo de cartas, frágil e ilusório. A casa, com sua varanda de tábuas gastas e suas janelas que rangiam ao vento, era a mesma, mas eu, ai de mim, já não era.
Mamãe, com seus olhos que enxergavam além da carne, não me dirigia muitas palavras, mas seus olhares, ora de pena, ora de reprovação, pesavam mais que qualquer sermão. Papai, homem de poucas falas, mas de coração que fala alto, me observava com uma decepção que cortava como faca de ponta fina. Eu não saía do meu quarto e quando saía me afundava nas tarefas da casa ou em qualquer outra que me ocupasse a cabeça, como quem busca na rotina um refúgio para a alma. Lavava roupas no tanque até as mãos arderem, trançava roscas de goiabada com a precisão de quem teme errar, varria o quintal com uma fúria que tentava apagar as lembranças. Mas Passa-Vinte não perdoava. Cada canto era um espelho cruel: o tanque onde Leonardo, com seu hálito adocicado, me roubara o primeiro beijo; a varanda onde suas palavras, como mel envenenado, me seduziram; a praça onde Paulinho, com seu sorriso tímido, me prometera um futuro que eu jogara fora.
Viver em Passa-Vinte não estava sendo fácil. Na venda do Seu Zé Formoso, as tricoteiras de alpendre, com suas línguas mais afiadas que foices, teciam e desteciam minha reputação. “A Emilinha foi pra Beagá e voltou desgraçada,” diziam, sem se preocupar em baixar a voz. “Trocou o Paulinho, coitado, por um tal de Leonardo, um playboy da capital.” Eu tentava ignorar, mantinha a cabeça baixa, o vestido de chita cobrindo o colar que ainda guardava, escondido, como um segredo que queimava a pele. Mas cada palavra era uma pedrada, e o pior era saber que, no fundo, não estavam de todo erradas. Eu traíra Paulinho, não só com o corpo, mas com o coração, seduzida por promessas que brilhavam como ouro, mas eram frágeis como vidro.
Numa manhã qualquer, não me lembro de que mês, enquanto varria a varanda, o vestido de chita azul colado ao corpo pelo calor, ouvi o ronco rouco de um motor ao longe. Era um som que conhecia bem demais, um som que fazia meu coração disparar, num misto de medo e saudade, como se meu corpo soubesse, antes da minha razão, quem se aproximava. O jipe parou em frente à casa, levantando uma nuvem de poeira que parecia querer apagar o passado. Tia Valdete desceu, o rosto marcado por rugas que eu não lembrava de ter visto antes, os olhos cansados, mas ainda vivos, como os de mamãe. Ela vinha num vestido simples, mas com um corte que denunciava a cidade, e um lenço na cabeça que escondia os cabelos ralos. Ao seu lado, para minha surpresa, não estava Leonardo, mas um homem que eu não conhecia:
- Emilinha, minha filha! - Exclamou ela, abrindo os braços, como se quisesse abraçar não só a mim, mas toda a minha história.
Eu larguei a vassoura, hesitante, e me aproximei:
- Tia Valdete... - Murmurei, deixando-me envolver pelo abraço, que era quente, mas carregava um peso que eu não sabia explicar: - O que a senhora tá fazendo aqui?
Ela sorriu, um sorriso que misturava carinho e cansaço, e olhou para a casa, onde mamãe já aparecia na porta, os olhos estreitos de desconfiança:
- Vim te ver, menina, e prosear com tua mãe e teu pai. Tem coisas que a gente precisa acertar.
- Tem!?
- Ahhhh, tem! Muitas...
Mamãe, com seu jeito de quem lê a alma antes das palavras, cumprimentou-a e a convidou para entrar, enquanto papai, que estava no quintal consertando uma cerca, se aproximava, limpando as mãos na calça de brim. A casa, que minutos antes era só silêncio e rotina, agora parecia pequena demais para conter o que estava por vir. Sentamos na cozinha, o cheiro de café fresco misturando-se ao aroma de goiabada que cozinhava no fogão. Tia Valdete, com uma calma que escondia algo maior, começou:
- Clara, Zé, eu vim porque não consigo parar de pensar na Emilinha. O que aconteceu em Beagá... não foi justo com ela, nem com vocês, nem com ninguém.
Mamãe cruzou os braços, o olhar firme, mas com um brilho de quem já sabia que a conversa seria espinhosa:
-Valdete, o que tá te incomodando? - Perguntou ela, a voz suave, mas seca, como quem teme ouvir o que já suspeita.
Tia Valdete suspirou, passando a mão pelo lenço, como se buscasse forças no gesto:
- Eu sei que vocês trouxeram a Emilinha de volta porque queriam protegê-la, mas... ela não tá bem aqui. Passa-Vinte é um lugar pequeno demais para os sonhos dela. Além disso, o povo... vocês sabem, não perdoa. Clara, aqui ela tá se apagando; lá em Beagá, eu via somente sorrisos, sonhos surgindo, planos... Eu vejo nos olhos dela, mesmo de longe. E eu... eu me sinto culpada, porque acho que também mostrei uma vida que a iluminou, mas que agora parece trazer escuridão enquanto ela cá está.
Eu baixei os olhos, sentindo o rosto queimar. A forma como tia Valdete falava, ecoava uma culpa que era mais minha do que dela, aliás, dela nenhuma. Mas havia algo em sua voz, uma hesitação, que me fazia perguntar o que ela não dizia. Papai, que até então ouvia em silêncio, bateu suavemente a mão na mesa, e mesmo assim fez os pires de café tremerem:
- Valdete, com todo respeito, mas ocê sabe o que aconteceu. Teu filho fez a cabeça da Emilinha. Ela mentiu pra nós, mentiu pro Paulinho, fugiu com o teu filho, o Leonardo, e agora tá aí, com a reputação manchada. O que ocê quer? Que a gente mande ela de volta pra se perder de vez?
Tia Valdete não se abalou. Seus olhos, agora marejados, fixaram-se nos de papai, com uma firmeza que eu não esperava:
- Zé, eu não vim aqui pra defender o Leonardo. Ele errou, e errou feio. Mas não errou porque queria mal à Emilinha, ele... acho que ele até gosta demais dela. Além disso, a Emilinha... ela é jovem, é moça do interior, sonhadora, só quer ter uma vida diferente. Eu quero ajudar nisso. Quero levá-la de volta, mas não pro Leonardo. Quero que ela estude, que trabalhe, que encontre um caminho que seja dela, não de ninguém mais.
Mamãe, que até então segurava a colher de pau como se fosse uma arma, largou-a sobre a mesa e me olhou, como se buscasse em mim uma resposta que eu não tinha:
- Valdete, ocê tá falando de coração? - Perguntou ela, a voz mais suave, mas ainda carregada de desconfiança: - Ou é o Leonardo que tá por trás disso? Porque, se for, eu juro por Deus que essa menina não sai daqui.
Tia Valdete hesitou, e naquele instante, vi algo em seus olhos que não era só pena ou culpa. Havia um peso, uma sombra, como se ela escondesse uma verdade que temia revelar. Ela respirou fundo, como quem toma coragem, e continuou:
- O Leonardo... ele insiste que quer ver ocês, que quer se desculpar. Mas eu não vim por ele, Clara. Eu vim pelos sonhos interrompidos da Emilinha e porque... - Ela suspirou pesadamente, constrangida até: - Porque eu não tô bem. Os médicos dizem que é um problema no pulmão, que pode ser sério. Eu preciso de alguém por perto, alguém que me ajude, que me faça companhia. E a Emilinha... ela se mostrou como uma filha pra mim. Eu quero dar a ela uma chance de se encontrar, mas também quero ela comigo. Eu vou pagar um bom salário para ela e a ajudarei a estudar.
O silêncio que se seguiu era pesado, como o ar antes de uma tempestade. Mamãe olhou para papai, e os dois trocaram um olhar que dizia mais do que qualquer palavra. Eu, sentada ali, com as mãos apertando a saia do vestido, sentia o coração disparado. Tia Valdete estava doente? Era isso que a movia? Ou seria Leonardo, com suas promessas, manipulando-a como fizera comigo? A ideia de voltar a Belo Horizonte me assustava, mas também acendia uma faísca de esperança, como se a cidade, apesar de tudo, pudesse me oferecer uma chance de ser mais que a moça desgraçada de Passa-Vinte.
- Valdete, ocê tá falando que quer que a Emilinha vá para Beagá pra cuidar do’cê? - Perguntou mamãe, a voz calma, baixa, preocupada agora: - Mas e o teu filho? Cê tá querendo apagar o que ele fez?
Tia Valdete baixou os olhos, como se a pergunta a tivesse acertado em cheio:
- As duas coisas, Clara. Eu não vou mentir. O Leonardo me pediu pra vir, disse que quer consertar as coisas com a Emilinha e com vocês. Mas eu não vim por ele. Vim porque vejo nela uma menina que tá procurando seu lugar no mundo, e eu sei o que é isso. Quando fui pra Beagá, anos atrás, também não foi fácil, também me deslumbrei, mas eu achei meu caminho. Eu quero ajudar a Emilinha a se encontrar também, e, se nesse meio, ela puder me ajudar um pouquinho, vou ficar muito grata.
Papai, que até então segurava a raiva como quem segura um cavalo brabo, se levantou, caminhando até a janela. Ele olhou para os morros, como se buscasse neles uma resposta, e disse, com a voz rouca:
- Valdete, a Emilinha é nossa filha. A gente não desconfia do’cê, mas... Como é que ocê me garante que, se ela voltar, não vai cair de novo nas mãos do teu filho?
Tia Valdete se levantou, aproximando-se dele, o lenço na cabeça tremendo levemente, como se o esforço de falar a estivesse esgotando:
- Zé, eu não posso garantir nada, porque a vida não dá garantias e, além do mais, os dois já são maiores de idade, né? Mas eu prometo que vou cuidar dela, que vou orientá-la em tudo sobre a vida, mas mantê-la longe do Leonardo... só se for isso que ela quiser. Agora, se ela quiser estudar, trabalhar, eu vou fazer de tudo para ajudar. Isso é uma promessa! Eu só peço que vocês pensem nisso. Vocês podem não reparar, mas Passa-Vinte tá matando a Emilinha aos poucos. E conhecendo aqui como eu conheço, aposto que essa gente já anda olhando torto a menina, além de fazer fofocas, né? Ela não merece isso.
Eu queria falar, mas eu não sabia o que queria. Eu tinha medo de Beagá, mas também de ficar em Passa-Vinte, ainda mais agora que cada dia parecia uma punição. Só que a minha voz não saía. Mamãe, percebendo meu silêncio, colocou a mão no meu ombro, um gesto que era ao mesmo tempo consolo e advertência:
- Valdete, a gente vai pensar, mas não é só a gente que decide: a Emilinha tem que querer. E, se ela for, vai ser com condições: estudar e trabalhar, pra ser alguém na vida. Quero saber nada de Leonardo não! Se não for assim, ela fica.
Tia Valdete assentiu, os olhos brilhando com algo que parecia gratidão, mas também alívio. Ela me olhou, como se esperasse que eu dissesse algo, mas eu apenas baixei a cabeça, sentindo o peso do colar contra o peito, como se ele pudesse falar por mim.
Naquela noite, após tia Valdete dormir, a casa voltou ao seu silêncio habitual, mas agora carregado de uma tensão nova. Mamãe e papai conversavam em voz baixa na sala, enquanto eu, trancada no quarto, olhava a teia de aranha no teto, como se ela pudesse me dar respostas. Voltar a Belo Horizonte? Era uma ideia que me assustava e atraía na mesma medida. A cidade era uma tentação pulsante, com suas luzes e seus perigos, mas também onde eu sentia que podia me encontrar. E Leonardo? Ele ainda estava lá, com suas promessas, seu charme, sua sombra. Tia Valdete dizia que me protegeria, mas eu sabia que, no fundo, era questão de tempo para a gente se encontrar. E Paulinho? O que seria de Paulinho que agora não mais me saía da cabeça. Onde estaria? Como estaria? Será que ainda pensava em mim?
Os dias que se seguiram foram um tormento de incertezas. Tia Valdete não voltou a tocar no assunto, mas sempre tinha uma história nova para contar de sua mocidade em Beagá. Eu sabia que ela tentava me seduzir e estava conseguindo. Mamãe e ela não desgrudavam, acho que mamãe notou que ela realmente não parecia bem. Já eu tentava me ocupar, ajudando mamãe na cozinha, cerzindo panos de prato, indo à missa com uma devoção que era mais culpa que fé, mas sempre que eu saída Passa-Vinte não me deixava esquecer. Na venda do Seu Zé, ouvi um cochicho que cortou como faca: “A Emilinha tá voltando pra Beagá, a sogra veio buscar. Moça direita não faz isso. Será que tá grávida?” Eu queria gritar, dizer que não era por Leonardo, que eu só queria uma chance de ser mais, mas quem acreditaria? Em Passa-Vinte, a verdade se contava por bocas: quantos mais falassem, mais seria crível, e eu era a da vez.
Uma semana depois, tia Valdete voltou para Beagá, sem minha resposta ou permissão de meus pais. Quinze dias depois, chegou uma carta para mim na venda do Seu Zé Formoso, trazida em casa pelo menino Juca, logo ele... Tinha o meu nome escrito numa caligrafia que eu conhecia bem demais: era de Leonardo. Mamãe, ao ver o envelope, franziu o cenho. Eu a abri, trêmula, e li, enquanto tia Valdete e meus pais me observavam como juízes.
“Emilinha, minha querida,
Eu sei que errei, que te levei por caminhos que não eram pra você, mas fiz isso porque o coração tem regras que não respeitam a nossa vontade.
Quero te pedir perdão, de coração, se te causei algum mal. Mas é ele também, o meu coração, que me manda insistir, pois a saudade de ti é imensa e me machuca todo dia.
Não bastasse isso, a minha mãe está doente, e eu temo por ela. Agora vejo o quanto a família é importante.
Volta pra Beagá, Emilinha. Se não for por mim, que seja por ela, mas que, acima de tudo, seja por você. Aqui você pode estudar, trabalhar, ser quem sempre quis, ser quem você nunca imaginou um dia ser.
Eu prometo te respeitar, até te deixo em paz, se for o que você quer.
Só me dá uma chance de consertar o mal que te fiz, fazendo algum bem.
Com carinho,
Leonardo”
As palavras dele eram como mel: doces, mas com risco de uma picada. Eu sabia que ele tinha o poder de me enredar, de me fazer acreditar em promessas que não cumpria. Mas havia algo na carta que me tocou, talvez a menção à doença de tia Valdete, afinal, família é pra essas coisas, não é?
- Será que a tia tá mesmo doente, mamãe? - Perguntei, a voz titubeando.
Mamãe colocou a mão na cabeça e suspirou, desviando o olhar, como se quisesse esconder a verdade. Mas no final, preferiu a verdade:
- Tá, fia... Os médicos disseram que é um trem no pulmão, mas ainda tão investigando. Ela tá se fazeno de forte, mas dá pra ver na cara dela que ela não tá bem...
- A senhora quer que eu vá, mamãe?
- Ocê quer ir, fia?
Um silêncio, o silêncio que marca, que dói, surgiu entre nós. Papai chegou bem nesse momento e entendeu de imediato que algo não estava certo. Mamãe contou tudo e mostrou a carta. Ele fechou a cara:
- Isso não é coisa de primo, Clarinha.
Mamãe o encarava em silêncio e concordou:
- Sei o que parece, Zé, mas é minha irmã. Ela não tá bem...
- Por que ocê não vai então e fica com ela?
- Eu com a Emilinha?
- Uai! Por que não? Assim ocê sonda tudo por lá e vê como as coisa são de verdade. Depois, ocês duas decidem o que fazer.
Mamãe me encarou, pensando na proposta de papai. A intenção dele era boa e quase explícita: descobrir a verdade. Ela ficou um tempo olhando perdida até que me encarou:
- Me responde uma coisa, de coração, fia... Ocê qué ir lá pra Beagá? Esquece esse negócio de doença da minha irmã: isso é importante, mas não deve ser a única coisa a guiá sua decisão. O que o seu coração qué?
- Mamãe, eu... não sei...
- Se não sabe, não vai... - Falou meu pai, seco, um tom de vitória antecipada na voz: - Querer ir é o mínimo! Tua irmã tem o Leonardo, deve de tê amiga, gente que a ajude por lá. Além do mais, se ela podia pagá a Emilinha, pode pagar uma diarista, uai.
Mamãe parecia inclinada a concordar com ele. Então, minha boca grande falou:
- Mas eu... também queria ir. Eu queria estudar, trabalhar... Isso eu queria sim! Papai se eu ficar aqui, o que me resta?
- Resta se torná uma mulher direita! Casar, ter filho, trabalhá na roça, ou no comércio, ou na escola... Sei lá, Emilinha! Mas aqui também tem o que fazê. É só procurá.
- Mas e se eu quiser mais? E se eu quiser ser uma doutora? Aqui eu não consigo.
Papai se calou, encarando-me curioso. Um sonho antigo começou a brilhar novamente em seu coração, um que ele havia me contado há tempos: o de ter uma filha doutora:
- Doutora, é? - Disse sorrindo, um misto de preocupação e orgulho: - Então, responde a tua mãe: ocê qué ou não qué ir?
- Que-Quero... - Resmunguei, não convencendo sequer a mim mesma.
Eles se olharam e minha mãe disse:
- Então, vô ligá para a Valdete e acertá os detalhes. Amanhã mesmo faço isso.
No dia seguinte, fomos os três até a venda do Seu Zé Formoso, utilizar um telefone que ele mantinha numa sala de sua venda e alugava para a comunidade. Mamãe discou para a tia e logo foi atendida. Conversaram amenidades brevemente e minha mãe falou:
- Valdete, e como a gente sabe que o Leonardo não vai abusar da nossa confiança? Ocê mesma disse que ele tá insistindo...
Tia Valdete respondeu numa altura que dava para todos na sala ouvirem:
- Ele tá insistindo, sim, Clara. Mas eu prometo que vou ficar de olho. Ele não vai fazê nada contra a Emilinha, se ela não quiser. Eu até estive olhando uma escola aqui perto de casa, se ela quiser estudar, e eu pago, e ainda arrumo um trabalho de meio período para ela ter o próprio dinheirinho. Só peço que deixem ela tentar.
Papai, que até então se mantinha calado, falou, a voz grave:
- Valdete, a Emilinha é nossa filha. Se ela for, vai ser nas nossas regra. Nada de Leonardo, nada de bagunça. E, se ela quiser voltar, volta na hora. Entendido?
Tia Valdete concordou, feliz da vida, fazendo mil promessas e duas mil orientações. Eu, sentindo o peso dos olhares dos meus pais, murmurei:
- Eu quero ir, mamãe, papai. Quero estudar, quero ser mais. Prometo que não vou decepcionar vocês de novo.
Mamãe me abraçou com lágrimas nos olhos, enquanto papai apenas assentiu, o rosto duro, mas com um brilho de esperança no olhar. Naquela noite, enquanto arrumava a mala, o colar de Leonardo pesando contra meu peito, como um lembrete de que, em Beagá, eu teria que enfrentar não só a cidade, mas a mim mesma.
Na semana seguinte, partimos eu e mamãe rumo a Beagá. A viagem foi feita num coletivo que levou uma eternidade para chegar ao destino. Mamãe pode não assumir, mas também ficou deslumbrada com a cidade, seus prédios, luzes e barulhos. Ela eu não sei, mas eu cheguei com o coração dividido, uma mala de roupas simples e um colar que pesava mais que o ouro de que era feito. Passa-Vinte, com seus morros e seus julgamentos, ficaram para trás, mas não me abandonara; sua sombra me seguia, como um cão fiel que não sabe se morde ou lambe. Eu, a moça de chita que sonhara com um futuro maior que os limites da sua terra natal, estava agora na capital, sob o teto de tia Valdete, buscando um recomeço que parecia, a cada instante, mais incerto.
O apartamento de tia Valdete continuava o mesmo, agora mais apertado porque eu teria que dividir meu espaço com mamãe. Mas eram duas mães juntas e o espaço que já era arrumado, ficou primoroso em questão de dias, com um cheiro de lavanda que tentava esconder o cansaço da dona. As paredes, pintadas de um branco desbotado, guardavam fotografias antigas, de um tempo em que ela, ainda jovem, sorria com a confiança de quem não conhece as dores da vida. Ela me recebeu com um abraço que era ao mesmo tempo acolhedor e frágil, como se temesse que eu pudesse quebrá-la. Seus olhos, fundos e cercados por olheiras, denunciavam a doença que ela mencionara em Passa-Vinte, mas sua voz ainda carregava o tom de quem não se deixa abater:
- Emilinha, minha menina, seja bem-vinda de volta. - Disse ela, guiando-me para um quarto pequeno, o mesmo que ocupei há dias atrás, que dava para uma rua barulhenta: - Aqui é teu canto agora. Pode arrumar tuas coisas, e amanhã a gente vê o que fazer com essa tua vontade de estudar. A tua mãe vai ficar aqui contigo também pelo tempo que ela quiser. Vai ser uma delícia ter a minha mana novamente comigo.
Eu assenti, tentando sorrir, mas o peso do colar de Leonardo, ainda escondido sob o vestido, me lembrava que a cidade não era só promessas. Ele não estava lá na chegada, mas sua presença pairava, como uma nuvem que ameaça chuva. Tia Valdete, percebendo meu silêncio, aliás, o meu e o da minha mãe, colocou a mão no meu ombro, com uma firmeza que contrastava com sua fragilidade:
- Nada de Leonardo, ouviu? - Disse ela, os olhos fixos nos meus: - Ele sabe que você está aqui, mas eu já falei pra ele se comportar. Agora, será com minhas regras.
- Sim, tia. - Murmurei, embora soubesse, no fundo, que Leonardo não era homem de seguir regras.
- Espero que seja assim.
Leonardo chegou pouco depois, cumprimentando a todos respeitosamente, inclusive a mim, a quem dispensou apenas alguns beijos na bochecha, muito diferente de nosso último encontro. Mamãe acompanhava tudo de perto, analisando, pensando, concluindo, tecendo uma imagem que eu temia saber.
Os primeiros dias em Belo Horizonte foram uma dança cautelosa entre a esperança e o medo. Tia Valdete, fiel à sua palavra, levou a mim e mamãe a uma escola técnica no centro da cidade, onde me inscrevi num curso de secretariado, algo que, segundo ela, “dá futuro pra moça direita” e “abriria portas para um curso superior depois”. As aulas, com suas máquinas de escrever barulhentas e professoras de óculos que pareciam enxergar mais do que letras, eram um mundo novo, onde eu me sentia pequena, mas viva. Eu estudava meio período de manhã, o restante do dia e noite, eu ajudava tia Valdete com as tarefas da casa, com as compras no mercado, acompanhando ao médico. Sua tosse, seca e insistente, era um lembrete constante de sua fragilidade, e eu, em minha gratidão por sua proteção, tentava ser útil, embora o peso do passado nunca me deixasse.
Leonardo se mostrava respeitoso e solícito, nunca avançando meio centímetro na minha direção sem uma justificativa boa e inocente. Mamãe foi embora no 10º dia, achando que tudo estava sob controle. Mas foi ela entrar no coletivo que Leonardo atrás de mim, já cochichou:
- Enfim, sós...
Aquilo me deu um calafrio e quase pulei na frente do ônibus para ir embora junto. Só que um outro lado meu, um que eu não sabia se dominava, se apossou de meu corpo e apenas fez o impensável. Virou o rosto na direção dele e sorriu, um sorriso estranho, malicioso, que não era meu, ou talvez fosse e eu só o estivesse descobrindo agora.
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