O CÓDIGO DO PRAZER - EPÍLOGO 02/03

Um conto erótico de Ryu
Categoria: Heterossexual
Contém 4291 palavras
Data: 15/08/2025 22:25:36

ANDERSON, SIMONE, WILFREDO, SONIA

Anderson saiu do puteiro da D. Ana para nunca mais voltar. A lembrança de que era pai, de que tinha uma filha foi essencial para ele desistir da Garota de Programa.

Mas havia uma verdade que Anderson desconhecia: Beatriz nunca foi sua filha biológica.

O exame que confirmara a paternidade não passara de uma farsa, cuidadosamente arquitetada por Wilfredo.

Naquele dia em que Anderson apareceu de surpresa no hospital (capítulo 14), Alex havia passado a noite no consultório de Simone. Fora até lá porque precisava desesperadamente de dinheiro — afinal, Camila ainda não havia sido eleita síndica.

Simone, à primeira vista, gostava do sexo convencional, com afeto e delicadeza. Mas havia em seu íntimo um desejo mais sombrio: a ânsia por um sexo bruto, sujo, intenso.

Era por isso que, às vezes, se vestia como uma prostituta para Anderson, tentando instigar nele esse instinto. (capítulos 13 e 15)

Já com Alex era tudo espontâneo e natural: tapas na bunda, puxões de cabelo, simulação de enforcamento, algemas, xingamentos — “cadela”, “puta”, “vagabunda”.

Quando Alex apareceu, sabia que ele queria apenas dinheiro — e ela, apenas prazer. Não havia amor. Mas o corpo dela lembrava do fogo que havia entre os dois. Um fogo que, naquela madrugada, queimou além do previsto. Ela relaxou demais. Esqueceu a camisinha.

O plano inicial era rápido: uma ou duas horas, no máximo. Mas, depois do sexo, ambos adormeceram no quarto anexo ao consultório.

Quando amanheceu, Alex ainda estava ali.

Foi então que tudo fugiu ao controle. Dr. Fernando apareceu cedo, sem aviso, dizendo precisar falar sobre o caso de Eduardo. Alex não podia sair. Escondeu-se às pressas no anexo, o coração disparado, o ouvido colado à parede.

Simone, tensa, atendeu Fernando tentando parecer natural. Mal ele saiu, Anderson entrou. O pânico foi imediato. Alex estava a poucos metros, e qualquer ruído o denunciaria. Simone reagiu no instinto: inventou que havia um problema no encanamento e que precisavam sair do consultório urgentemente. Arrastou Anderson até a cafeteria, comprando tempo para que Alex escapasse despercebido.

Antônia, a secretária, congelou ao ver Anderson ali. Os olhos arregalados, as mãos trêmulas, como se soubesse que um passo em falso revelaria tudo.

Quando Beatriz nasceu, a dúvida era insuportável: de quem ela era filha? Nem Wilfredo, nem Simone tinham certeza. Podia ser de Anderson, de Wilfredo ou de Alex.

Com a tensão no limite, decidiram fazer um exame às pressas, na mesma clínica — dias antes de Anderson também buscar respostas.

O resultado do primeiro exame deu um certo alivio: Wilfredo não era o pai.

Dias depois, o exame de Anderson também deu negativo, mas Wilfredo o falsificou.

Restava apenas uma possibilidade.

O pai de Beatriz era Alex.

Enquanto Anderson dirigia para casa, Simone falava ao telefone com Wilfredo.

SIMONE

Alô?

WILFREDO (voz tensa, abafada):

Sou eu. Wilfredo

SIMONE (suspira):

Eu sei, mas achei que não fosse mais me ligar.

Mas já que ligou, me diz uma coisa, Wilfredo... foi difícil falsificar o exame?

WILFREDO (pausa breve):

Não.

O dono da clínica me devia favores antigos. Só precisei pedir. O exame não entrou no sistema oficial, foi tudo "extraoficial", entende?

SIMONE:

Claro que entendo.

(Silêncio)

E Anderson… ele acreditou fácil? Será que mais para frente não vai desconfiar?

WILFREDO (com uma nota amarga):

Ele quis acreditar.

A verdade é que ele queria ser o pai. Isso bastava.

Quando ele me ligou, estava explodindo de alegria com o resultado. Depois quando me mostrou pessoalmente, ele segurava aquele resultado como se fosse um escudo contra todas as dúvidas.

Engraçado, né?

SIMONE (baixa, quase sussurrando):

Você fala isso com uma frieza…

WILFREDO (mais suave):

Não, não é frieza. É resignação.

Eu sei o que perdi, Simone.

SIMONE:

A gente podia ter ficado junto, Wilfredo.

Se você não tivesse engravidado a Sônia…

WILFREDO (dolorosamente):

Eu sei.

Foi o maior erro da minha vida.

SIMONE (seca):

Foi covardia.

Você não teve coragem de escolher. E quando eu precisei, você estava com outra.

(Silêncio dos dois.)

SIMONE (retomando, com firmeza):

Olha, agora tenho uma filha. Beatriz precisa de estabilidade, de um lar.

E eu também. Não quero mais esse… esse papel de amante escondida.

WILFREDO (tentando conter a voz):

Você vai continuar com ele?

SIMONE:

Sim.

Vou viver com Anderson. E só com ele, entendeu?

Ele ama Beatriz como se fosse dele — e ele não sabe que não é.

É isso que importa agora.

WILFREDO (com a voz baixa):

Eu vi que você retirou meu acesso da câmera da piscina. (capítulo 16)

Gostei de ver a câmera aquele dia: o Anderson todo machão ... até que enfim. Fiquei com orgulho do meu garoto. (capítulo 16)

Já te contei que na escola eu o defendia das brigas. Ele era muito pacífico, calmo demais, parado demais.

Pelo jeito agora virou homem!

SIMONE:

Wilfredo agora cada um de nós vai seguir a própria vida, separadamente.

Eu tenho minha família. Vou seguir com a minha filha e com o Anderson, que é muito mais homem que você!

[Silêncio. Um clique suave. Simone desligou.]

Wilfredo ingressou na faculdade de Medicina e logo se encantou por Simone, sua colega de turma. Havia algo nela — talvez o jeito atento, talvez o riso contido — que o atraía de maneira inevitável. O flerte entre os dois nasceu com naturalidade, discreto, mas cheio de expectativa.

Na noite da festa, Simone não pôde comparecer. Ainda assim, Wilfredo foi. E lá, acabou transando com Sônia, dentro do carro de Anderson.

A princípio, escondeu o episódio de Simone. Continuou cortejando-a como se nada tivesse acontecido, e ela, cada vez mais envolvida, chegou a apresentá-lo aos pais.

Dr. Álvaro, no entanto, não aprovou. Achava Wilfredo exagerado: falava demais, alto demais, fazia piadas fora de hora — e, acima de tudo, era pobre, o que, para o pai de Simone, era um defeito inaceitável. Mas Simone não se deixou intimidar. Estava apaixonada e pronta para enfrentar a família se fosse preciso.

Wilfredo a pediu em namoro. Para Simone, aquele momento foi mágico — ela acreditava que, enfim, havia encontrado algo verdadeiro. O namoro, no entanto, durou apenas um dia. Não houve tempo nem de contar a ninguém.

Na manhã seguinte, Sônia apareceu com uma revelação que mudaria tudo: estava grávida.

Atordoado, Wilfredo tentou fugir da responsabilidade. Chegou a sugerir um aborto, mas tanto sua família quanto a de Sônia eram profundamente religiosas, e a ideia foi sumariamente rejeitada. Pressionado, acabou se casando com Sônia.

Mesmo casado, não conseguia se afastar de Simone. Prometeu que tudo seria passageiro, que logo se separaria. Mas os dias viraram meses, os meses trouxeram mais filhos — até o terceiro nascer. Estava claro que Wilfredo não iria se separar de Sonia.

Então ofereceu Simone a seu melhor amigo, Anderson. Um gesto estranho, que mudaria a vida de todos.

No início, Simone encontrou em Anderson algo que jamais tivera com Wilfredo: estabilidade, cuidado, presença. Era uma novidade reconfortante. Ela, que nunca tivera a atenção do pai — o implacável Dr. Álvaro, sempre obcecado com o trabalho e seu precioso Hospital São Francisco — tampouco a encontrara em Wilfredo. E agora tentava, com esforço, gostar de Anderson.

Mas com o tempo, viu-se frustrada novamente. Anderson começou a repetir o padrão que ela tão bem conhecia: o trabalho em primeiro lugar, a família em segundo plano. Talvez por isso o pai sempre tenha gostado dele — eram parecidos demais.

A reviravolta veio com a reconciliação e o nascimento de Beatriz. Anderson surpreendeu Simone: assumiu a paternidade com entrega rara. Vendeu sua empresa, reorganizou a vida, tornou-se um homem presente, devotado. Algo que o pai dela jamais fizera.

Foi então que o sentimento de Simone começou a mudar. Anderson passou a ocupar definitivamente o lugar que Wilfredo deixara. Pela primeira vez, ela sentia que escolhia alguém que também a escolhia.

Ainda assim, Simone enfrentava uma crise de consciência. Por trás do ar de princesa, havia vivido aventuras intensas, às vezes secretas, com Alex e outros homens, alimentando fantasias e desejos ocultos. Chegou até mesmo a encontrar-se às escondidas com Wilfredo, mesmo após seu casamento.

Mas agora, tudo aquilo fazia parte do passado.

Simone havia feito sua escolha — por Anderson, por Beatriz, por uma vida que, enfim, parecia ter algum sentido. Escolhera quem, enfim, estava ali por inteiro.

Assim que Simone desligou o telefone, ficou alguns segundos parada, encarando o vazio.

O som da chave girando na fechadura cortou o silêncio.

Anderson entrou sorrindo, com os olhos brilhando, com uma alegria que Simone não via há tempos. Ele vinha de um dia cheio — havia vendido a empresa — tido uma crise de consciência no puteiro. Carregava pequenas flores num embrulho improvisado e aquele olhar de apaixonado.

— Amor…? — ele chamou, com a voz doce, deixando as flores sobre a mesa.

Simone se virou devagar, um sorriso inteiro, verdadeiro.

— Oi… — respondeu baixinho.

Ele se aproximou rápido, e antes que ela dissesse qualquer outra palavra, os dois se encontraram num beijo cheio de sentimento. Anderson a abraçou com força, e sem dizer nada, passou os braços por trás das pernas dela e a ergueu no colo, arrancando uma risada surpresa.

— O que você está fazendo? — ela perguntou, entre risos, ainda com os olhos marejados.

— Trazendo você pro lugar mais bonito da casa — respondeu ele, caminhando até a sacada.

A noite já tinha caído, mas o céu estava limpo. Lá embaixo, a cidade seguia viva, indiferente às guerras e reconciliações que aconteciam naquele pequeno apartamento.

Anderson a pousou com cuidado na poltrona da sacada e sentou-se ao lado, sem largar sua mão.

— Eu te amo, Simone — disse ele, sem hesitar. — Com tudo o que eu sou. Com tudo o que ainda vem. Amo nossa filha, saber que vocês são… minha família.

As palavras de Anderson chegaram até o fundo da alma dela.

Simone o olhou profundamente, sentindo o peso de tudo o que tinha vivido:

- Vamos recomeçar do zero!

Anderson, em perfeita sintonia:

- Vamos sim. O nosso novo mundo começa agora!

Ainda não havia vizinho no andar de cima. Se sentiram confortáveis para tirarem a roupa e se amarem.

A penumbra era acolhedora, no céu os últimos raios dourados estavam quase sumindo, mas a luz ainda desenhava contornos delicados no rosto de Simone, destacando a beleza natural que, para Anderson, continuava sendo simplesmente angelical.

Simone, nua, se aproximava, num pequeno ritual de entrega. Envolveu os braços ao redor do pescoço dele, sentindo a textura gostosa da pele. Seus dedos entrelaçaram-se na nuca dele, segurando-o firme, como quem não quer mais se soltar.

Ele a recebeu com carinho. A firmeza de suas mãos deslizou pelas coxas dela, segurando-a com delicadeza.

Os dois corpos encaixaram-se perfeitamente, como se fossem feitos para isso. O pênis de Anderson penetrou a xoxotinha delicada de Simone. O contato quente da pele, o movimento sincronizado dos corpos – tudo criou um momento perfeito.

Além da penetração, os lábios se tocaram novamente. As mãos de Anderson deslizavam pelas costas de Simone, puxando-a mais para perto, como se precisasse se fundir a ela.

Entre beijos e gemidos, escapavam também juras de amor.

O orgasmo veio intenso, como se estivesse rasgando a alma e transbordando para fora do corpo.

Eles ainda não sabiam, mas naquela sacada, outra vida estava sendo gerada. Meses depois Anderson e Simone se casaram. Na cerimônia, Simone estava grávida de René, que nasceu poucos meses depois.

5 ANOS E 9 MESES DEPOIS:

A festa de cinco anos de René era tudo, menos discreta. Os convidados, ao entrarem no salão envidraçado, montado no jardim da mansão dos avós, se deparavam com um cenário digno de editorial de revista:

O tema da festa é Alice no País das Maravilhas.

Era impossível não notar o cuidado envolvido em cada elemento da celebração — e quase tudo ali tinha as digitais de Anderson.

Foi ele quem escolheu o tema, coordenou a equipe de decoração, contratou fornecedores, aprovou o buffet e até mandou confeccionar os convites à mão, com papel importado. Simone, por sua vez, limitou-se a marcar presença. Desde que o pai ficou doente, ela assumira a direção da rede de hospitais da família, mergulhada em reuniões, decisões estratégicas e emergências administrativas. Tempo para a família, nos últimos meses, havia se tornado um luxo raro.

Mesmo assim, a simbologia do momento não escapava a Anderson. René havia sido concebido exatamente no dia em que ele, pela última vez, estivera no bordel de Dona Ana — um dia em que tudo mudou. No mesmo dia, Simone também havia rompido, de vez, com Wilfredo. Aquele havia sido o ponto de inflexão. Uma espécie de pacto silencioso selado entre os dois.

Desde então, Anderson parecia ter encontrado propósito no papel de pai. Dedicava-se com entusiasmo à rotina dos filhos, às festas, às tarefas escolares, aos cafés da manhã demorados de domingo. Naquela festa, ele andava de um lado para o outro, sorrindo com os convidados, ajeitando flores fora do lugar, tirando fotos de René como se quisesse capturar para sempre a leveza da infância.

René, de traços ainda em formação, já exibia uma semelhança gritante com Anderson: os olhos levemente puxados, o queixo firme, o mesmo jeito sereno de observar o mundo ao redor. Era um reflexo vivo do pai — mais do que Beatriz jamais fora.

Beatriz, a primogênita, tinha herdado a beleza marcante de Simone: o nariz, a pele, os cabelos claros com leves ondulações. Por sorte, pouco lembrava Alex, seu pai biológico

Anderson, no entanto, parecia enxergar o que queria. Nos olhos de pai — amorosos, esperançosos, talvez um tanto cegos —, ele insistia em ver traços seus na filha mais velha. Fruto de desejo mais do que de realidade.

Era como se, ao encontrar versões de si em Beatriz, ele pudesse reforçar o papel que escolhera para si: o de pai completo, não apenas por presença, mas por pertencimento. Mesmo que o sangue dissesse outra coisa. Mesmo que, no fundo, ele soubesse.

Os primeiros convidados a chegarem foram Dr. Fernando e sua inseparável esposa — e futura doutora — Alicinha. Entraram sorridentes, de mãos dadas, com aquele ar de casal jovem e apaixonado que ainda não se deixou endurecer pelas rotinas exaustivas da medicina. Alicinha, aliás, só se inscreveu na faculdade de Medicina por incentivo dele, quando ainda namoravam. Hoje, caminhava com passos firmes rumo ao diploma, já decidida: especialização em Pediatria, onde sua vocação natural encontrava terreno fértil.

Foram recebidos com alegria. Beatriz correu até eles com espontaneidade rara em festas cheias, e abraçou Alicinha com familiaridade. Talvez guardasse, em algum cantinho da memória, os dias em que Alicinha foi sua babá por um curto período — tempo suficiente, porém, para criar um vínculo discreto e duradouro. Alicinha sempre teve jeito com crianças, uma delicadeza sem afetação, uma paciência que não se ensina.

Simone, que não costuma se apegar com facilidade, nutre uma admiração sincera por Alicinha. A ponto de tê-la alocado na unidade pediátrica da rede de hospitais assim que surgiu a oportunidade. Um gesto que, vindo de Simone, valia mais que elogios públicos. Aliás, em tempos em que mal conseguia parar em casa por conta do Alzheimer do pai e da sobrecarga de trabalho, era reconfortante contar com profissionais como Alicinha.

Alicinha, naquele dia, não era apenas uma convidada. Era quase da família.

Anderson ficou surpreso quando descobriu que Alicinha era o nome de registro, e não apenas um apelido carinhoso.

Todos gostavam dela. Era impossível não gostar. Até Simone, exigente ao extremo com as pessoas à sua volta, não escondia a admiração que sentia. Confiava tanto em sua competência quanto em seu caráter. Não foi por caridade ou afeto, Alicinha era boa no que fazia. E, mais do que isso, era boa com as pessoas.

Talvez por isso tenha conquistado também o coração do Dr. Fernando, um homem sério, reservado, marcado por traumas que carregava em silêncio. Foi com ela que ele aprendeu a se abrir novamente, a se permitir de novo, a amar sem medo.

Anderson, ao observá-la naquela festa, sentiu um leve incômodo — um daqueles constrangimentos que vêm de dentro, sem plateia, mas que doem mesmo assim. Lembrou-se de como a via anos atrás: apenas uma mulher bonita, de corpo atraente, que despertava nele um desejo automático, vazio.

Mas hoje, com a família que construíra, Anderson percebia que estava — enfim — se curando. Alicinha, agora, era para ele o que sempre deveria ter sido: uma mulher admirável. Inteligente, afetuosa, determinada. E, acima de tudo, respeitável.

Ele se envergonhava do olhar raso de antes. E se orgulhava de já não ser mais aquele homem.

Em seguida Wilfredo e Sônia chegam com seus cinco filhos, trazendo uma energia vibrante. A recepção é calorosa — risos, olhares, memórias antigas citadas como se tudo estivesse no lugar.

Todos colocam suas máscaras, Simone sorri, troca um olhar rápido com Wilfredo, há algo ali que nunca foi dito em voz alta, e que jamais será. Anderson observa, sente, mas finge não ver. Ele próprio evita um encontro prolongado com os olhos de Sônia, cuja presença sempre lhe traz uma memória que nunca virou realidade, mas que o fez sonhar demais por algumas semanas, anos atrás.

Sônia, por sua vez, sorri para todos, especialmente para Anderson, que ela admira em silêncio: o homem constante, sensível, que nunca ousou cruzar uma linha, mas que ela nunca deixou de enxergar.

Cada um mantendo viva a ilusão de que certas coisas ficaram no passado — quando, na verdade, apenas foram empurradas para os cantos mais fundos do coração.

A tarde escorre leve para as crianças — barulhenta, feliz. No quintal, a festa se espalha em risos, copos de refrigerante e conversas triviais. Do outro lado, afastado da agitação, Anderson observa.

Wilfredo está agachado na grama, com Beatriz no colo. Ela gargalha alto, envolve o pescoço dele com os bracinhos, e juntos compartilham um instante de alegria pura — inocente, mas que, para Anderson, sempre despertou um incomodo silencioso.

Nunca soube explicar. Talvez fosse o carisma quase magnético de Wilfredo, que cativava a todos — até as crianças.

Beatriz, sua própria filha, parecia se divertir mais ao lado dele do que com o próprio pai.

O coração de Anderson falha por um instante. Uma vertigem o atravessa — breve, cortante. Não dura mais que um mísero segundo.

- Houve uma falha no programa Anderson!

Anderson se vira e olha para a esposa Simone.

- Como?

- O programa que você desenvolveu para o hospital, amor! Está apresentando falhas – diz Simone docemente.

- Tá certo amor! Segunda feira eu vejo. Hoje é dia de festa!

“Não sei porque a Simone me interrompe para falar sobre um problema de trabalho”.

Simone sabe o quanto Anderson se concentra e o que significava aquela rápida expressão em seu rosto.

Ele se volta novamente para a filha Beatriz e Wilfredo.

Ele sabe. Beatriz é sua filha. Claro que é. Ele a reconhece em tantas coisas — o jeito que ela aperta os olhos quando está confusa, como ele; a forma como balança a perna quando está impaciente. Isso está lá. Ele vê. Ele escolhe ver.

O incômodo as vezes reaparece, como uma rachadura fina no vidro da razão.

Ele se levanta, ajeita o copo na mão e caminha até os dois. Força um sorriso.

— Beatriz, vai lá brincar com suas amiguinhas, filha. A Sofia está te chamando — diz, com a voz tranquila demais.

Beatriz hesita, mas obedece. Desce do colo de Wilfredo, ainda sorrindo, e corre para o outro lado do jardim.

Wilfredo levanta os olhos para Anderson e sorri, sem notar nada. Anderson retribui. Amigo. Quase Irmão.

Ele já aprendeu a camuflar. A criar desculpas, a manter Wilfredo e seus filhos separados, sempre com alguma justificativa socialmente aceitável. Ninguém nunca percebe.

Exceto, talvez, Simone. Que às vezes o observa em silêncio.

Anderson se afasta discretamente da movimentação da festa e, por um instante, apenas observa.

A decoração de "Alice no País das Maravilhas" preenche o quintal com cores vivas, figuras excêntricas e um leve toque de absurdo. Coelhos apressados, cartas gigantes, xícaras espalhadas pelo gramado. Tudo meio mágico, meio fora do lugar.

Ele sorri. Olhando para sua família, sentia-se, de fato, em um país de maravilhas — um lugar improvável, onde a vida dera voltas e mais voltas, até trazê-lo ali: ao lado de Simone, Beatriz, e do pequeno René, que agora corria feito um furacão com o amiguinho inseparável, Cláudio.

Anderson observa René com atenção. O menino carrega traços dele, claros como o dia: É ele, em miniatura. E isso o tranquiliza de um jeito quase irracional.

“Minha família me transformou”, pensa. E é verdade. Eles o salvaram de si mesmo, da solidão que ele nunca teve coragem de admitir. Simone o ancorou. Beatriz o ensinou a ser pai. René lhe deu um propósito que nenhuma carreira ou amizade jamais poderia oferecer.

O pensamento se desvia, inevitavelmente, ao ver René e Cláudio brincando juntos.

Anderson tinha cinco anos quando conheceu Wilfredo. A amizade foi instantânea, como costuma ser nessa idade. Riram juntos, cresceram juntos, dividiram segredos e pecados. Mas foi Wilfredo quem roubou Sônia dele, naquela adolescência em que tudo ainda parecia possível. Ele nunca disse nada. Nunca brigaram por isso. Talvez porque, no fundo, ele sabia que Sônia nunca fora realmente sua.

E foi o mesmo Wilfredo quem lhe apresentou Simone — uma colega de faculdade.

A ironia disso sempre o acompanhou como uma sombra leve: Wilfredo tirou algo, mas também deu.

Anderson respira fundo. Seus olhos voltam para a mesa, onde Simone conversa com outras mães. Ela parece feliz. Serena. Ele a ama. Ama de verdade. E se há cicatrizes, máscaras — tudo foi costurado com o tempo.

Um grito de alegria rompe seus pensamentos. René marca um gol imaginário, Cláudio aplaude.

O País das Maravilhas é estranho, pensa ele. Nada é exatamente o que parece. Mas, ainda assim, é ali que ele escolheu ficar.

Anderson deixa os olhos recaírem sobre Wilfredo, que conversa animadamente com alguns pais próximos à churrasqueira. Ele gesticula, ri alto, domina o pequeno círculo com aquela facilidade que sempre teve.

Desde adolescentes, Wilfredo era assim: ousado, expansivo, magnético. O tipo de pessoa que chegava num lugar e mudava o ar. Já Anderson… era o oposto — introspectivo, observador, discreto. O bom aluno, o que tirava nota alta, mas nunca era o centro da roda.

Ainda assim, a amizade entre os dois floresceu com força. Talvez porque, de algum modo, Wilfredo parecia gostar genuinamente dele. Um afeto estranho, quase protetor. Quando alguém implicava com Anderson no colégio, era Wilfredo quem intervinha. Pulava na frente das brigas, lançava ameaças com o peito estufado. “Ninguém mexe com o meu irmão”, dizia. E tinha mesmo esse tom: de irmão mais velho, mesmo sendo da mesma idade. Um tom protetor, capaz de falsificar mais de um exame de DNA pensando proteger o amigo.

Houve um tempo em que aquilo o incomodava — aquela naturalidade de Wilfredo com as pessoas, a capacidade de se fazer ouvir e amar com tão pouco esforço. Não foram poucas as vezes em que, em silêncio, ele desejou ser como o amigo: solto, espontâneo, admirado.

Foi por isso que fez cursos de oratória, de media training, de controle vocal. Passava horas na frente do espelho, treinando a forma de falar, de gesticular, de sustentar o olhar. Muitos achavam que aquilo era ambição profissional — e de fato foi, em parte. Mas a motivação verdadeira, escondida lá no fundo, era Wilfredo. Ele queria ser tão bom de fala quanto o amigo era desde sempre.

Ironicamente, foi isso que o ajudou a subir profissionalmente. Aquele menino tímido, aluno exemplar, virou o executivo que encantava em apresentações, que era ouvido em reuniões, que liderava equipes com presença. Mas em algum nível, ele sabia: Wilfredo ainda era sua medida secreta de comparação.

O que Anderson não sabia — era que do outro lado, Wilfredo carregava espelhos semelhantes.

Na adolescência, Wilfredo invejava o foco de Anderson, a facilidade com que resolvia equações, escrevia redações brilhantes, tirava notas altas sem nunca perder a compostura. Por isso, um dia, do nada, começou a estudar com afinco. Contrariando a própria natureza — a do falastrão que passava raspando — começou a virar noites em claro com livros abertos, sublinhando apostilas, resolvendo listas de exercícios.

Passou em medicina. Não com louvor, não entre os primeiros, como Anderson. Mas passou. E não havia dúvida de que sem aquele impulso silencioso que Anderson lhe deu — sem dar — talvez tivesse ficado pelo caminho.

Nenhum dos dois jamais falou sobre isso. Nem era necessário. O vínculo entre eles sempre foi mais profundo do que qualquer conversa permitiria. Era feito de silêncios densos, de empurrões invisíveis, de espelhos internos que um mantinha do outro sem saber.

Eles foram, desde sempre, estímulo e espinho, impulso e freio — e se tornaram, assim, o que são hoje: homens bem-sucedidos, homens contraditórios, homens com máscaras. Amigos de uma vida inteira, e talvez um pouco mais do que isso.

Anderson volta os olhos para René, que agora corre com Cláudio entre os balões murchos, azuis e vermelhos. Lembra de si mesmo aos cinco anos. Lembra de Wilfredo. E se pergunta, sem dizer em voz alta: será que René e Cláudio também vão se marcar desse jeito, de forma tão definitiva e invisível?

Talvez sim.

Wilfredo também ficava visivelmente incomodado quando os filhos dele se aproximavam para conversar com ele, Anderson. Uma vez, chegou a ensinar o filho de Wilfredo a criar um ponto de restauração no Windows. Nada demais. Mas Wilfredo não gostava. Havia algo naquele brilho de admiração nos olhos dos filhos que o feria. Um ciúme quase infantil.

Anderson pensava agora como seria bom se a vida também permitisse pontos de restauração. Bastaria voltar um pouco — para antes daquela festa de quase vinte e um anos atrás. A noite em que conheceram Sônia.

Aquela noite.

Aquela festa.

O ponto de ruptura.

Desde então, os quatro nunca mais foram os mesmos. Anderson, Wilfredo e Sônia saíram de lá com o destino virado do avesso, como se algo tivesse sido acionado e não houvesse mais como desfazer. Simone nem sequer esteve presente… mas, de algum modo, aquela noite também a alcançou.

E mudou tudo.

Continua ...

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 21 estrelas.
Incentive Ryu a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários

Foto de perfil genérica

Que honra!

Primeiro a comentar nesse capítulo...

Vamos ver o que Ryu nos preparou para o último capítulo

O que realmente ainda não foi contado

0 0
Foto de perfil genérica

Temos que descobrir também o que aconteceu com Mada, Suzy e Marcos?

Ficaram impunes pelos crimes cometidos?

Se deram bem?

Viraram um trisal?

0 0