CURTE ROMANCE LGBT FOFO E SEM SEXO? SEGUE O CAPÍTULO 3:
O Carnaval explodia em cores e ritmos pelo Brasil, e no Rio de Janeiro, o clima era ainda mais elétrico. A cidade vibrava com cada batida do samba, cada passo das passistas e cada riso solto nos blocos. Valentim e Karla, decididos a viver intensamente essa energia, conseguiram ingressos exclusivos para uma festa privada no topo do Cristo Redentor — uma celebração luxuosa, repleta de artistas, influenciadores digitais e rostos conhecidos da TV.
O sol começava a se deitar atrás das montanhas, pintando o céu com pinceladas de laranja, roxo e dourado. A brisa soprava suave, trazendo consigo o cheiro doce da mata e do mar. Valentim afastou-se da multidão, encostando-se no parapeito de pedra. De lá, tinha uma vista privilegiada da cidade — as luzes começavam a se acender como estrelas no concreto, o mar refletia o brilho do céu, e por um instante, tudo parecia quieto dentro dele.
Karla surgiu por trás com dois copos de suco nas mãos. O vestido dela, leve e brilhante, dançava com o vento. Entregou um dos copos ao namorado com um sorriso.
— Aqui é tão lindo. — Comentou Valentim, os olhos ainda presos na paisagem. A bebida e o calor do fim de tarde lhe davam uma leve tontura boa.
— É sim. O pôr do sol daqui é espetacular. — Respondeu Karla, se encostando ao lado dele.
— E como estão as coisas na escola? — Ele perguntou, se virando um pouco para encará-la.
Karla demorou um segundo para responder. Valentim aproveitou para tomar um gole generoso de suco.
— Eu vou falar com a psicóloga do colégio quando voltarmos das férias. — Disse, a voz um pouco mais séria. — Sabe o que meu pai falou? Que é frescura. Que eu sou normal e estou inventando coisa pra fugir das responsabilidades.
— Nossa, Val. — Karla tocou o ombro dele com carinho. — Pelo menos você vai saber se tem TDAH ou não. E sabe que pode contar comigo pra qualquer coisa, né?
— Obrigado, linda. — Respondeu ele, e por um instante, um sorriso genuíno se formou em seu rosto.
Nesse momento, alguns colegas da escola passaram perto deles, todos rindo, com glitter no rosto e fantasias coloridas. Valentim puxou Karla pela cintura e a beijou. Os colegas assoviaram e bateram palmas em meio a risos e piadas.
***
Enquanto isso, bem longe dos tamborins e dos holofotes, Noah passava o feriado com o pai e a mãe na casa de campo da família, no interior de São Paulo. A residência era ampla, isolada, cercada por árvores altas e um lago profundo, onde o tempo parecia andar mais devagar.
Raphael, o pai de Noah, tentava reconstruir laços que haviam se desgastado com o tempo e a distância emocional. Naquela tarde nublada, pai e filho estavam sentados à beira do lago, pescando em silêncio. O único som era o leve farfalhar das folhas e o ocasional mergulho de algum peixe na água.
— E como está a escola nova, filhote? — Perguntou Raphael, tentando soar casual.
Noah revirou os olhos com um suspiro.
— Filhote, pai? Credo. — Respondeu, com ironia. — Tá tudo dentro dos conformes. Notas boas, socialização boa. Tô desempenhando o personagem perfeito. — Disse, com acidez na voz.
Raphael ficou em silêncio por alguns segundos, observando a linha da vara esticada.
— Noah, eu sinto muito. Eu sei que essa não é a vida que você quis e...
— Pai. — Interrompeu Noah, encarando o lago com os olhos apertados — a pergunta é: o senhor quer essa vida?
A frase ficou suspensa no ar, densa como a névoa que se acumulava lentamente entre as árvores próximas. Raphael não respondeu de imediato. O silêncio, por um instante, foi mais eloquente do que qualquer tentativa de desculpa.
Ambos permaneceram ali, com as varas nas mãos e o coração cheio de coisas não ditas, enquanto a tarde morria em tons frios no interior paulista.
***
O campo da Escola Discere nunca parecera tão vivo.
As arquibancadas improvisadas estavam tomadas por estudantes vestidos em tons de verde, cartazes pintados à mão e tambores feitos de baldes reciclados. O céu claro deixava o sol estampar sua presença sobre os rostos animados, enquanto os muros altos da escola reverberavam os gritos de torcida com a força de um estádio. Era o início da Gincana dos Quatro Elementos, e tudo começava com a etapa "Terra".
No centro do campo, demarcado por pneus reaproveitados e faixas feitas com restos de tecidos, se formava o circuito da Corrida do Revezamento Sustentável. A prova parecia simples: quatro corredores por equipe, um circuito com obstáculos naturais, sacos de recicláveis nos ombros. Mas ali, vencer era mais do que ser rápido. Era preciso propósito. Era preciso mostrar que se sabia cuidar daquilo que vinha da terra.
Valentim já havia vencido aquela prova duas vezes. Estava em casa.
Seu sorriso era largo, quase teatral, enquanto fazia poses para os estudantes do Grêmio que registravam tudo com câmeras recicladas de projetos antigos. O cabelo castanho brilhoso balançava ao vento, e ele passava cumprimentando calouros como uma celebridade colegial. Seus colegas do terceiro ano 'A' já o aguardavam para a última reunião antes da largada.
No centro do campo, o diretor Sérgio Fernandes, com sua voz grave e pausada, fazia um discurso motivador. Falava da importância da gincana como ferramenta de aprendizado e união. Explicava o trajeto — um percurso que cortava o campo, entrava pelo jardim da escola, passava perto da horta comunitária e retornava pelo estacionamento de bicicletas.
Valentim já nem ouvia direito. Ele estava procurando por alguém.
E então viu.
Noah.
O rapaz estava a alguns metros dali, suado, os cabelos escuros e um pouco encaracolados colados à testa, a garrafa de água entre os lábios. O pescoço reluzia com o suor do treino e a respiração ofegante dava ao momento um ritmo próprio. Por um segundo, tudo ao redor pareceu perder o som. O mundo se dissolveu em slow motion.
Valentim fez de tudo para resistir à visão.
Ajeitou os ombros e caminhou até Karla, que estava próxima a Noah, usando uma camiseta apertada do segundo ano.
— Você não vai participar da corrida? — Perguntou ele, tentando soar casual.
— Nossa, Valentim, que susto! — Exclamou Karla, que digitava algo no celular, mas logo bloqueou a tela.
— Calma. Tá nervosinha?
— Eu não. Inclusive, eu preciso falar contigo. Podemos ir para um local mais tranquilo?
— Agora, Karla? Eu tenho uma prova para ganhar. Eu pensei que você fosse correr também.
— Eu? Não. Quero que o segundo ano ganhe. — Respondeu ela, com um sorriso malicioso, batendo no próprio peito, onde se lia "2ºA — Filhos da Terra".
Valentim ergueu uma sobrancelha.
— Qual é, Karlinha. Com ou sem você, o terceiro ano 'B' já ganhou essa competição. — Valentim se gabou, tentando parecer despreocupado, mesmo que a presença de Noah fosse um espinho sob a pele.
Noah, que até então parecia distraído com as luvas de jardinagem, se virou para ele com um sorriso enviesado.
— Só cuidado pra não tropeçar no próprio ego.
A frase veio afiada como um espinho. Valentim não respondeu. Fingiu não ouvir. Mas por dentro, a provocação queimava mais do que o sol das dez.
Retornou para a equipe. Os colegas estavam animados, distribuindo os acessórios do uniforme obrigatório: chapéu de palha, avental de estopa e luvas de borracha. A roupa o fazia parecer parte de uma peça teatral sobre o campo — e, naquele momento, tudo parecia uma encenação prestes a sair do roteiro.
As equipes se alinharam na linha de partida.
Valentim era o segundo corredor. O plano era simples: abrir com resistência, manter com estabilidade, fechar com velocidade. Noah, corredor pelo segundo ano, era o último da equipe — o fecho da corrida. Uma escolha clara: deixar o mais veloz para encerrar com estrondo.
O apito cortou o ar como um relâmpago.
As torcidas explodiram. Cartolinas tremiam. Gritavam nomes, turmas, lemas. Buzinas de PET faziam o chão vibrar. Os primeiros corredores partiram com os sacos nos ombros, saltando galhos e desviando de canteiros com agilidade.
Valentim se preparava. Respirava fundo, flexionava os joelhos.
Quando a colega lhe passou o saco, ele disparou.
Os pés batiam contra a grama com força e confiança. As pernas avançavam como pistões. O som da torcida se desfazia em zumbido. Ele sentia o vento, o calor, o suor escorrendo pela nuca. A cada passada, se sentia forte, invencível. Se sentia...
Até escorregar.
Um galho oculto sob a sombra de uma árvore o fez tropeçar. O chão o recebeu de braços abertos. O saco escapou. Latas, papéis, garrafas plásticas — tudo voou como uma chuva de caos, se espalhando pelo campo.
O silêncio que se seguiu foi cortante.
— VAMOOO, TERCEIRÃO! — Gritou Berenice da arquibancada, tentando remendar o desastre com ânimo forçado.
Valentim se levantou em um salto. O joelho ardia, a palma da mão queimava. Mas nada doía mais que o ego. Com as mãos trêmulas, recolheu o que podia e passou o bastão para o terceiro corredor, atrasado, ofegante, com o orgulho amassado no fundo do chapéu de palha.
Ao longe, viu Noah observando, com o bastão firme entre os dedos, esperando a vez de brilhar.
E talvez — só talvez — pronto para dar o troco com os próprios pés firmes na terra.
A última volta da Corrida do Revezamento Sustentável se aproximava do fim, e todos os olhares se voltaram para a pista central. Noah corria com uma leveza que desafiava a gravidade, como se seus pés mal tocassem o chão. A técnica era impecável, o ritmo constante. Quando alcançou a linha final, arremessou o saco de lixo reciclável no tambor com uma precisão que parecia ter sido ensaiada dezenas de vezes.
— A turma do 2º ano 'A' conclui com tempo recorde e pontuação máxima em sustentabilidade! — Anunciou a professora com entusiasmo, o microfone vibrando com a euforia.
O campo explodiu em aplausos e gritos de comemoração. Faixas verdes tremularam ao vento, e os colegas da turma do 2º ano se abraçavam como se tivessem vencido uma guerra.
Do lado de fora da pista, próximo às arquibancadas, Valentim assistia à cena com o maxilar travado e um gosto amargo na boca. Cruzou os braços, respirando fundo, como se tentasse conter um turbilhão por dentro.
Noah passou por ele, suado, mas tranquilo. Parou por um segundo, tirou a camiseta para enxugar o rosto, revelando o corpo magro, definido pelo esforço da natação. Os olhos de Valentim vacilaram. Um arrepio subiu pela espinha. O coração pareceu tropeçar. Teria Noah feito aquilo de propósito?
Mas o feitiço se quebrou no segundo seguinte, quando o outro garoto, ainda sem encará-lo diretamente, disparou com a voz baixa, mas cortante.
— Cuidado com os galhos. Terra pode ser traiçoeira pra quem vive no ar.
E seguiu andando, indiferente como sempre.
Valentim permaneceu imóvel. O rosto agora queimava — não pelo sol ou pelo esforço físico, mas pelo constrangimento. Pela primeira vez, desde que entrara naquela escola, ele sentia algo que nunca tivera espaço para existir em seu peito:
Derrota.
Na arquibancada, Karla observava tudo. Estava sentada ao lado de Berenice, com uma expressão divertida nos olhos.
— Ele não vai admitir, mas vai passar a tarde inteira remoendo isso. — Murmurou Karla.
— Tá ferrado — Ressaltou Berenice. — O Noah é rápido, inteligente e ainda tem essa cara de quem não tá nem aí.
Karla soltou um leve sorriso nervoso.
— E o Valentim odeia não ser o centro do mundo. — Comentou Karla, fazendo uma pausa. — E talvez... só talvez... ele esteja começando a gostar de não ser.
— Coitado.
— Como ele vai reagir a notícia? Espero que não surte. — Pensou, enquanto assistia ao final da prova.
Apesar do deslize de Valentim, a equipe do 3º ano B conquistou o segundo lugar. Cada líder de equipe subiu ao pódio para a premiação. Na foto oficial, Valentim saiu com a expressão dura e os olhos semicerrados. Noah, ao lado, manteve o semblante sereno, quase entediado.
***
Era fim de tarde, e a escola parecia um pouco mais vazia do que de costume. Após a primeira prova da gincana, muitos haviam ido embora mais cedo ou estavam ocupados limpando os materiais utilizados. Valentim, por sua vez, sentou no banco da lateral da quadra, um saco de gelo apoiado no joelho esquerdo.
— Isso vai deixar marca. — Falou Karla, se aproximando devagar, com duas latinhas de refrigerante na mão.
— É só um arranhão. — Respondeu ele, ainda olhando fixo para o chão.
— No joelho ou no orgulho?
Ele sorriu com um canto da boca, sem encará-la.
— Acho que nos dois.
Ela se sentou ao lado, em silêncio por alguns segundos. Valentim abriu a lata, mas não bebeu. Apenas sentia o gás subindo pela abertura, como se o barulho ajudasse a preencher o vazio entre eles.
— Val... a gente precisa conversar.
A frase, dita em voz baixa e firme, trouxe mais calafrios do que a corrida. Ele respirou fundo.
— Lá vem.
— É sério. Não é só sobre a gente. É sobre mim. Sobre... uma coisa que eu não quero esconder mais.
Valentim se virou devagar, finalmente a encarando. O sol poente criava sombras longas atrás dela, mas o rosto de Karla estava iluminado com uma calma que ele não conhecia nela.
— Eu gosto de alguém. — Disse. — Mas não é você.
O tempo parou. Ele piscou devagar, tentando absorver.
— Espera... o quê?
— Eu gosto de outro rapaz, Val. O Breno é um garoto trans, Val. Eu o conheci esse ano. Só que com a pressão dos meus pais, do colégio, das aparências... você era o caminho mais fácil. E eu sei que não é justo. Nem com você, nem comigo.
Valentim não disse nada. E, estranhamente, não sentiu raiva. Sentiu alívio. Um alívio confuso, que o deixava desconcertado.
— Eu não sei o que dizer.
Karla soltou um riso leve.
— Não precisa dizer nada. Só me promete que não vai contar pra ninguém. Ainda não estou pronta. Nem pra minha família, nem pro mundo. Mas eu precisava que alguém soubesse o que estou sentido.
Ele assentiu, com um olhar que misturava respeito, surpresa e admiração.
— Tá seguro comigo. Juro.
Ela encostou o ombro no dele.
— E você? Tá tudo bem mesmo? Com esse negócio todo de rivalidade, Noah, escorregão... e... sei lá. Te conheço, Valentim. Você tá esquisito.
Ele engoliu seco.
— Eu não sei. Tem alguma coisa fora do lugar. Mas não é só a derrota. É como se eu não me reconhecesse mais. Como se estivesse me olhando no espelho e não soubesse onde começa o reflexo.
Karla sorriu com ternura.
— Bem-vindo ao clube. Ser quem a gente é de verdade dá medo. Mas também dá um baita alívio.
Eles ficaram ali, em silêncio, vendo o céu começar a escurecer. As luzes da quadra se acendiam uma a uma. E, naquele fim de tarde, pela primeira vez, Valentim sentiu que estava prestes a começar algo — mesmo sem saber exatamente o quê.
Mas no fundo, bem no fundo, ele já sabia que o nome disso era Noah.
***
Na mesma noite, o site oficial da Escola Discere publicou a tabela atualizada da Gincana dos Quatro Elementos. A turma 2º ano 'A' aparecia no topo, com Noah como destaque do dia.
Nas redes sociais, o vídeo da queda de Valentim na prova viralizou em segundos. Surgiram edições em ritmo de funk, forró, pop — todos zombando da sua falha. O colégio inteiro riu. Valentim, por outro lado, remoía o momento com vergonha e raiva.
Além da humilhação digital, ele enfrentava outra batalha: o conflito interno que, há tempos, ele tentava ignorar. Com o apoio da professora Leda e da direção da escola, Valentim foi encaminhado para uma sessão especial com a psicóloga escolar, Dona Eunice, e o Dr. Luiz Carlos, psicólogo especialista em comportamento infantil e juvenil.
— O TDAH é uma condição neurobiológica, Valentim. Muitas vezes tem origem genética, mas se manifesta em dificuldades reais no dia a dia. — Explicou o doutor, com voz paciente. — A pessoa tem mais impulsividade, é mais inquieta, tem problemas em manter o foco por muito tempo.
— Isso mesmo, querido. — Complementou Dona Eunice, se sentando ao lado de Valentim, com um sorriso acolhedor. — Geralmente, o TDAH aparece na infância ou adolescência. Mesmo com tratamento, cerca de 40 a 80% das pessoas ainda mantêm os sintomas ao longo da vida.
Valentim olhou para os dois, hesitante.
— Vai doer? Os exames pra saber se tenho isso... doem?
Dr. Luiz Carlos riu gentilmente.
— Não, Valentim. O diagnóstico de TDAH é clínico. Não tem exame de sangue, nem nada disso. Só observamos os comportamentos, ouvimos relatos, conversamos.
— Pra começarmos esse processo, só precisamos da assinatura dos teus pais. — Contou Dona Eunice, entregando um envelope com os papéis. — São duas vias. Na próxima sessão, traz elas assinadas, tá bem?
Valentim segurou os papéis, olhando para eles como quem segura uma nova porta se abrindo. Uma mistura de medo e alívio tomou conta de seu peito.
A derrota ainda pesava. Mas talvez, talvez esse fosse o primeiro passo para entender por que, mesmo dando tudo de si, às vezes ele parecia tropeçar nos próprios pensamentos.
E por mais que odiasse admitir, talvez não fosse só o mundo ao redor que precisasse mudar.
Talvez fosse hora de começar a mudar por dentro também.