Aoi era uma menina sorridente naquele dia, diferente de como costumava ser. Quem a visse pulando de alegria na calçada do pequeno restaurante de lámen não imaginaria que, por trás daquele brilho, existia uma menina marcada por cicatrizes invisíveis.
Ela sempre fora tímida, retraída, e carregava consigo uma melancolia difícil de esconder. Os anos anteriores não tinham sido gentis com ela. O passado trazia lembranças amargas, pesadelos escondidos na figura de um avô cruel, alguém que tinha planos obscuros para a própria neta. Mas o pai de Aoi, com coragem e amor, a libertara das mãos daquele homem, afastando-se de toda a família rica e poderosa que nunca se importara de verdade.
Desde então, o mundo dela era pequeno, mas seguro: sua mãe, seu pai e aquele restaurante modesto. Para ela, aquilo era suficiente. Mais do que suficiente, era o lar que lhe devolvera a sensação de ser amada.
Naquela manhã, Aoi parecia especialmente empolgada. Seu pai tinha prometido que, depois do expediente, os dois iriam passear. Era algo simples — talvez comprar doces em uma lojinha próxima, talvez só andar pela praça enquanto o sol se punha. Mas para Aoi, qualquer instante ao lado dele era precioso.
Sua mãe a deixou na porta do restaurante, e Aoi entrou sorridente, acenando para Oren, o jovem assistente que trabalhava ali. Oren sempre cuidava dela quando o pai precisava se ausentar, e naquele dia não foi diferente.
— Seu pai foi comprar shiashu pronto. — disse Oren, ajeitando um avental manchado de molho.
Aoi não se importou. Sentou-se perto da entrada e esperou pacientemente, balançando as pernas no ar, como se cada segundo fosse uma eternidade. Quando finalmente seu pai apareceu, atravessando a rua com um pequeno pacote nas mãos, ela sorriu ainda mais, erguendo o braço para acenar.
Ele retribuiu o gesto, levantando a mão, os olhos cheios de orgulho e ternura. Foi nesse instante que o destino se mostrou cruel.
De repente, uma bicicleta surgiu veloz, quase um borrão. O ciclista estendeu o braço e, sem que o pai de Aoi tivesse tempo de reagir, arrancou o pacote que ele carregava. Dentro, estavam todas as economias guardadas para o depósito, o caixa do restaurante — fruto de semanas de trabalho árduo.
— Ei! — gritou o pai de Aoi, correndo atrás do ladrão.
Aoi, ainda na porta, assistia tudo em silêncio, o coração disparado. Ela não entendia exatamente o que acontecia, mas sabia que algo estava errado.
O ciclista desviava pelas ruas estreitas, quase derrubando pedestres. Na pressa, jogou-se em frente a um carro que vinha na outra faixa. O motorista, assustado, girou o volante de forma brusca. O carro perdeu o controle, rodopiou, e antes que alguém pudesse reagir, seguiu direto na direção do pai de Aoi.
O tempo pareceu desacelerar. Aoi viu o rosto do pai, viu o esforço inútil dele para saltar para o lado, e depois o impacto terrível. O corpo foi lançado contra o asfalto, o som seco se espalhou pela rua, e então o silêncio mortal tomou conta.
A menina ficou paralisada. Seus olhos arregalados se encheram de lágrimas ao ver seu herói, seu porto seguro, caído no chão. O sangue escorria devagar, manchando a rua cinzenta.
Mas havia mais. No instante em que ergueu o olhar, ainda em choque, ela viu o ciclista parar alguns metros adiante. Ele não fugiu imediatamente. Virou-se, olhou para trás, e os olhos dele se encontraram com os dela.
Aoi jamais esqueceria aquele rosto. Era um olhar assustado, culpado, mas também covarde. Por um segundo, pareceu querer ajudar, mas o medo falou mais alto. Ele agarrou o envelope, encheu os bolsos com o dinheiro que voava e, sem hesitar, pedalou de volta para a escuridão das ruas.
Aoi gritou pelo pai, mas sua voz se perdeu no caos. Pessoas começaram a se aproximar, algumas chamavam socorro, outras apenas observavam a tragédia. Oren correu até ela, tentando afastá-la da cena, mas a menina resistiu, desesperada para chegar até o corpo caído.
Ela segurou a mão fria do pai, ainda quente segundos antes, e chorou com todas as forças.
Naquele momento, tudo o que restava em seu mundo desmoronava. Seu pai, o homem que a salvara, que a amava incondicionalmente, que prometera estar sempre ao lado dela, partira diante de seus olhos.
E junto com o corpo caído, algo se quebrou para sempre dentro dela.
Aoi não esqueceu. Nunca esqueceu.
O rosto do homem na bicicleta, o instante em que ele a encarou, o momento exato em que escolheu fugir em vez de salvar. Essa lembrança se gravaria em sua alma como uma ferida eterna, moldando a pessoa que ela seria dali em diante.
Porque naquele dia, no meio da rua, Aoi perdeu a infância, perdeu o pai, e descobriu o peso cruel de viver com memórias que nunca a abandonariam.
Depois dessa lembrança que mais parecia uma locomotiva em movimento, atropelando tudo por onde passava, chegamos no presente.
Kenta deixou o jornal ao lado do banco de madeira em que estava sentado. À sua volta, o parque vibrava com vida. Crianças corriam e gritavam, soltando gargalhadas que ecoavam pelo espaço aberto. Pais observavam, atentos mas relaxados, enquanto o sol da tarde filtrava-se pelas copas das árvores. A cena era serena, mas dentro dele, nada estava em paz.
Aoi estava diante dele, parada com certa hesitação, como se cada passo até aquele ponto tivesse sido mais pesado do que poderia suportar. Seus olhos brilhavam não pela luz, mas pelas lágrimas que lutavam para não cair.
— Eu estou curioso, pois você sempre me detestou, e eu não te culpo por isso...
Kenta ergueu o rosto e a encarou em silêncio. O tempo entre eles parecia se alongar, trazendo de volta lembranças antigas, dores que ambos carregavam sem nunca terem se permitido dividir.
— O que você quer, Aoi? — perguntou Kenta, a voz baixa, firme, mas carregada de algo que soava como medo.
Aoi respirou fundo. Por um instante, parecia que sua resposta não sairia, mas então ela estendeu a mão e pousou-a sobre o ombro dele. O gesto simples quebrou a muralha invisível entre eles.
— Kenta-san. — disse ela, com os olhos marejando. — Depois, de muito tempo, eu consegui me livrar da mágoa de tudo que aconteceu. Eu te perdoo, Kenta-san.
— Como é?
Kenta arregalou os olhos. As palavras, tão curtas e diretas, entraram em sua alma como uma lâmina. Ele desviou o olhar, engolindo em seco, e de repente, as pernas perderam a força. Caiu de joelhos no chão de terra batida do parque, em um gesto que não era apenas de surpresa, mas de rendição e humilhação.
— Eu não queria fazer aquilo. — começou, a voz embargada. — Mas não tive escolha. O Kouta estava doente… Ele precisava de medicamentos, e eu… eu não trabalhava. Eu já batia carteira naquela época, só para sobreviver.
Aoi respirou fundo, sentindo o coração se partir. Ela também se ajoelhou, ignorando a poeira que manchava o tecido da roupa, e pegou a mão dele com força.
— Eu estou te perdoando agora, Kenta-san. — disse, deixando a voz falhar. — Mas você precisa entender… eu sempre te odiei. Sempre guardei esse rancor. Porque, para mim, você tirou meu pai de mim. Ele era o meu herói. Quando Kouta me apresentou você… eu te reconheci. E desde aquele dia, eu nunca consegui agir como uma cunhada de verdade.
Kenta abaixou a cabeça, a respiração pesada.
— Eu entendo. — disse, num sussurro. — E não te culpo. Eu mesmo sempre me culpei. Desde aquele dia, todas as noites… aquele rosto, aquele momento nunca saíram da minha mente.
As lágrimas finalmente rolaram pelo rosto de Aoi.
— Quando o Kouta sofreu o acidente… — começou, tentando controlar o choro. — Eu lembrei do meu pai. E tive medo que a mesma coisa acontecesse com ele.
Kenta ergueu os olhos, atentos, e a interrompeu.
— Foi por isso que você fez os vídeos?
As palavras bateram nela como um soco. Aoi arregalou os olhos, surpresa.
— O que…?
Kenta firmou o olhar.
— Eu já sei de tudo, Aoi. E o Kouta também sabe.
Aoi abaixou a cabeça, e as lágrimas que ela segurava se transformaram em um choro descontrolado. As mãos tremiam, e a voz saiu em soluços.
— Foi nesse momento que eu entendi… o que é se rebaixar para salvar alguém que você ama. Eu fiz o que não queria, me sujeitei a coisas que nunca pensei que faria… tudo para não perder o meu herói outra vez.
— Aoi-san... Eu...
Kenta aproximou-se mais e a abraçou. Era um gesto pesado, mas ao mesmo tempo necessário.
— Eu sei como é isso. — murmurou, apertando-a com força. — Eu sei. Eu te entendo, e eu torço de coração que o Kouta entenda também e possa te perdoar.
Por alguns segundos, não houve mais nada além do som das crianças ao fundo, distante, e o choro dela abafado contra o ombro dele.
— Mesmo que ele não me perdoe... Ele está a salvo, bem, e isso que importa... — Disse Aoi.
Kenta fechou os olhos, sentindo a dor dela se misturar com a dele. Quando voltou a falar, sua voz era baixa, mas clara.
— O Kouta está muito magoado. Ele se sente traído, Aoi. Mas vai superar. Eu acredito que vocês dois ainda vão se acertar.
Ela ergueu o rosto, com os olhos vermelhos, e tentou sorrir em meio às lágrimas.
— Obrigada… — disse, quase num sussurro. — Se eu tivesse insistido mais, procurado outra forma… talvez tivesse conseguido o dinheiro sem precisar me sujeitar. Mas eu não vi saída.
Kenta acariciou o ombro dela, balançando a cabeça.
— Eu lamento por não ter visto o que estava acontecendo a tempo. Talvez eu pudesse ter feito algo. Talvez pudesse ter impedido. Mas eu não fiz.
Houve um silêncio entre eles, pesado mas também necessário. As palavras haviam sido ditas, as feridas abertas expostas à luz do dia.
Então Kenta respirou fundo e olhou diretamente nos olhos dela.
— Aoi… quem era o tal “produtor”? Kenta e eu não sabemos quem é, então...
A pergunta pairou no ar, quebrando a calmaria momentânea que se formara entre eles. O coração dela disparou, as lágrimas secaram de súbito, substituídas por um pavor silencioso. De repente, uma pessoa aparece ali, no meio do parque, e flagra os dois. Uma pessoa que poderia colocar de vez um fim naquela conversa, ou eleva-la a outro patamar.
(Algumas horas depois, Kouta.)
Eu caminhava pelas ruas quase sem sentir meus pés tocarem o chão. Tentava manter a mente em foco, mas a minha cabeça estava tão cheia que até a temperatura parecia irrelevante. Kuro tinha caído. Preso, algemado, gritando, me acusando diante de policiais que nem sequer podiam me ver. Parte de mim sentia prazer, outra parte sentia vazio. Era como se cada vitória fosse apenas mais uma pedra sobre os ombros.
Um já tinha caído, mas ainda havia outros. O produtor… e ainda tinha que lidar com a Aoi.
Só de pensar nela, meu peito se fechava. Ainda não tinha forças para confrontá-la. Eu me lembrava das palavras do Kenta ecoando, me empurrando adiante, mas ao mesmo tempo as imagens dos vídeos queimavam minha mente como ferro em brasa. Eu via o sorriso forçado, o olhar perdido dela, e me perguntava: por quê? Por que você foi fazer tudo isso, sua estúpida?
E o pior era saber que tudo tinha sido por mim. Ela tinha feito aquilo porque eu estava entre a vida e a morte.
Era amor? Era desespero? Era egoísmo? Eu não sabia.
Me peguei parado no meio da rua, olhando para o chão, sem perceber que um carro vinha. O motorista buzinou, me xingou, e eu apenas dei de ombros e segui andando. Minha mente estava mergulhada num redemoinho de perguntas sem respostas.
Quando finalmente cheguei em casa, encontrei silêncio. Aoi não estava. A casa estava impecável, cheirando a limpeza. Cada objeto em seu lugar, Aoi era assim mesmo. Ela cuidava, dos mínimos detalhes.
Me joguei no sofá e fiquei olhando para o teto. Pensei em tudo o que tinha feito naquele dia, em como eu tinha manipulado Kuro, feito ele cair na armadilha que Kenta montou. Senti uma pontada estranha: orgulho e nojo misturados. Eu tinha cruzado uma linha que talvez não tivesse volta.
Até onde eu estava disposto a ir? Até onde iria o meu ódio, a minha sede de justiça?
Foi então que um barulho do lado de fora me tirou do transe. Levantei, caminhei até a porta e vi uma sombra. Me preparei para o pior, mas era só um gato. Um gatinho cinza, magro, miando baixinho. Me agachei, passei a mão sobre a cabeça dele. O bicho ronronou, como se soubesse que eu precisava de um pouco de paz.
— Que engraçado, você aparecer aqui essa hora, amiguinho. Quer um pouco de leite?
Foi então que me virei para colocar um pouco de leite na tijela para o gatinho que apareceu. Eu adorava animais. E nesse instante, vi Aoi chegando.
Ela vinha devagar, a cabeça baixa, os passos arrastados. Quando ergueu os olhos e me viu ali, se assustou. Seu rosto ficou vermelho, e ainda assim tentou sorrir.
— Oi, Kouta-kun.
Eu não consegui sorrir de volta. Segurei o gato nos braços, respirei fundo e falei:
— Aoi… a gente precisa conversar.
O sorriso dela vacilou. Ela parou alguns passos de distância, segurando a bolsa contra o peito.
— Agora? Não quer comer primeiro? — perguntou, quase num sussurro.
— Eu estou sem fome. . — respondi, com firmeza.
Entramos em casa em silêncio. Coloquei o gato no chão, e ele saiu explorando como se fosse dono do lugar. Peguei um pouco de leite na cozinha, e coloquei em uma tijela, enquanto o felino foi direto para ela, e começou a beber. Estava realmente com fome. Eu sentei no sofá e a encarei. Ela hesitou, mas acabou sentando junto, no sofá da outra extremidade. Os olhos marejavam.
— Você viu os vídeos, não viu?
Olhei nos olhos dela, e meus olhos se arregalaram. Ela sabia antes mesmo que eu resolvesse falar:
— Como você sabe dos vídeos.
O silêncio se estendeu, pesado como chumbo. Ela abriu a boca, fechou, desviou o olhar.
— Porque fui eu que mandou os e-mails pra você, Kouta-kun... — Ela disse, enquanto as lágrimas começaram a cair sobre seus olhos.
Eu fiquei sem reação.
As palavras dela ecoavam na minha mente como um soco direto no estômago.
Ela… tinha sido ela mesma.
Meu peito apertou, a respiração ficou pesada. Eu senti minha garganta arder, mas não deixei escapar nada. Apenas a encarei.
Ela não conseguia me olhar de volta.
— Porque, Aoi? — minha voz saiu mais baixa do que eu queria. — Eu não entendo, porque você mesma me mandou esses e-mails? Eu jurei que eram...
Ela soluçou, limpando as lágrimas com as costas da mão, mas sem sucesso. Me interrompia, e assim disse:
— Porque… eu não queria que você ficasse mais sem saber a verdade, Kouta-kun! Eu não podia mentir pra você. Eu não sou má, eu só… eu só não sabia como dizer. Então eu resolvi mostrar. Mostrar que, em todos aqueles momentos, eu não conseguia sentir nada… até me drogarem. Eu nunca quis… nunca quis. E quando estava fora de mim, nas alucinações, só conseguia pensar em você…
Senti meu coração girar dentro do peito. Eu deveria acreditar? Aquilo não fazia sentido.
— Você acha mesmo que isso justifica, Aoi? — falei, tentando controlar minha voz, mas saiu duro, ríspido. — Existiam outros meios. Tinha que haver outro jeito! Como que eu vou olhar pra você agora?
Ela respirou fundo, como se tivesse esperado essa cobrança. Então, com a voz embargada, começou a explicar.
— Eu perdi o emprego, Kouta. Eu faltei demais cuidando de você. A casa já estava com aluguel atrasado… íamos ser despejados. Eu tentei empréstimo no banco, não consegui. Tentei financiar o seu tratamento… foi negado. Eu estava desesperada... Eu não queria perder você da mesma forma que perdi meu pai.
As palavras dela batiam em mim como pedras. Eu quis interromper, mas ela não parava.
— Foi então que… o Kuro apareceu. Ele disse que tinha uma proposta. Que eu podia ser modelo fotográfica. Só lingerie. Só isso. Eu… achei a ideia um absurdo, eu não iria me submeter a isso. Mas você piorou! Seu cérebro estava tendo pulsos e parando vez e outra de responder, e você precisava ser removido para outro hospital ou eles iam desligar os aparelhos... E... eu aceitei, porque achei que não seria tão errado. Mas quando cheguei lá…
A voz dela quebrou. As lágrimas desceram mais forte.
— Eles me obrigaram a gravar o que você viu. Eu não queria, Kouta. Eu não queria… — ela cobriu o rosto com as mãos. — Eles me ameaçaram com coisas, que eu não posso falar. Mas já tinha assinado um contrato. Um ano inteiro. Eles me deram muito mais do que eu precisava. Eu usei só o suficiente pro seu tratamento. O resto… eu doei para um orfanato.
Silêncio.
Só os soluços dela.
E eu, parado, sentindo meu peito se encher de raiva.
— Você… — minha voz falhou, mas logo endureceu. — Você é uma idiota. Isso não é algo que deveria ter feito.
Ela ergueu os olhos vermelhos para mim, tremendo.
— Eu não podia perder meu herói de novo, Kouta-kun…
Meu sangue ferveu. Eu bati a mão no braço do sofá e levantei a voz.
— Eu não sou nenhum herói! — quase gritei. — Eu sou só um cara que acreditou em você… e que agora vê que você não passa de uma vagabunda oferecida.
As palavras escaparam antes que eu pudesse pensar.
E no momento em que elas ecoaram pelo ar, eu quis arrancar minha própria língua.
— Me... Me desculpe... Eu...
Os olhos dela se encheram de lágrimas outra vez. Mas ela não retrucou. Não me atacou.
Ela simplesmente… aceitou.
Com a voz fraca, ela disse:
— Eu entendo… eu sei que você me odeia. E tudo bem.
Ela respirou fundo, tentando forçar um sorriso.
— Mas eu te amo, Kouta-kun. E só estou feliz porque o meu herói está vivo. Eu daria a vida por você… se fosse preciso.
Eu não aguentei mais olhar pra ela. A dor me consumia, se misturando com ódio, confusão, vergonha.
— Aoi... Eu...
Ela hesitou.
Olhou para o chão, depois para mim. Tirou algo da bolsa. Uma carta.
— Eu escrevi isso… antes de tudo. É a última coisa que eu tenho pra te dar.
Ela deixou a carta em cima da mesa. Ficou parada, como se aguardasse minhas mãos irem busca-la. Mas eu permaneci imóvel.
O silêncio entre nós era ensurdecedor.
As lágrimas corriam pelo rosto dela, mas ela não se moveu. Só ficou ali, de pé, como uma sombra.
Eu não suportava mais. Caminhei até o banheiro e bati a porta, trancando por dentro.
Sentei na privada, com a cabeça entre as mãos. O coração pulsava como se fosse explodir.
A carta estava comigo. Eu não queria, mas peguei.
Olhei para ela por alguns segundos.
O papel tremia na minha mão.
Então, rasguei.
Em quatro pedaços.
Joguei no chão, como se cada pedaço fosse uma parte do que eu sentia por ela.
As lágrimas me venceram.
Caíram fortes, sem controle.
Levantei, tirei a roupa e entrei no chuveiro. A água escorria pelo meu corpo, mas não lavava nada.
Dentro de mim, a sujeira, a dor, o peso da escolha dela… e das minhas palavras… só cresciam.
Fechei os olhos.
E ali, debaixo da água fria, eu chorei como uma criança.
Saí do banheiro com a toalha nos ombros, o corpo ainda quente do banho. Vesti a primeira camisa que encontrei no armário e, enquanto passava a mão pelos cabelos molhados, parei diante da cômoda.
Um porta-retrato me encarava. Era eu e Aoi, sorrindo, abraçados, em dias melhores. Toquei o vidro com os dedos úmidos. O reflexo me devolvia um rosto cansado, um homem diferente daquele da foto. Mas também me devolvia uma certeza: Eu amava ela.
— Aoi? — chamei, ajeitando a gola da camisa. — Queria falar com você uma coisa.
Não tive resposta alguma.
Caminhei até a sala. O sofá estava vazio. A manta dela ainda dobrada no canto. O celular não estava ali.
— Aoi, você tá aí?
Ninguém respondia. Era um completo silêncio.
Fui até a cozinha. Ela estava do jeito que Aoi deixou, mas ela também não estava lá. Olhei no corredor. Nada.
O coração começou a acelerar. Será que ela foi embora?
Me forcei a respirar fundo. Não, provavelmente saiu pra respirar, como sempre fazia quando queria ficar sozinha.
Voltei pra sala e sentei, sentindo o peso das palavras que tinham saído da minha boca mais cedo. Palavras duras. Cruéis. Palavras que eu nunca quis usar com ela.
Passei as mãos no rosto.
— Idiota... — murmurei para mim mesmo. — Por que eu disse aquilo?
Peguei o celular. Toquei na tela, procurei o número dela. Liguei.
“Ao cliente chamado, este número está fora de área.”
Fiz de novo. O mesmo.
— Droga Aoi! Me atende, por favor! Me Desculpa!
Senti um aperto no peito.
E se... E se por acaso ela...
Antes que a mente me levasse para lugares sombrios, o celular vibrou nas minhas mãos. Uma ligação. O nome na tela: Kenta.
Atendi na hora.
— Irmão?
— Kouta. — A voz dele soava séria. — Você pode falar?
Fechei os olhos.
— Eu... eu tive uma conversa com Aoi. Falei coisas que não devia, Kenta. Ela saiu... e eu não sei pra onde foi.
Houve um silêncio do outro lado.
— Então vocês conversaram mesmo.
— Como você sabe disso?
— Ela veio até mim hoje cedo. Pra conversar. Pra desabafar... e me perdoar.
Meu coração gelou.
— Perdoar você? Ela veio me falando que te perdoou, mas eu não entendi. Perdoar pelo quê, Kenta?
Do outro lado, ele respirou fundo. Como se estivesse tirando um peso enorme do peito.
— Pelo que aconteceu com o pai dela.
Arregalei os olhos.
— O pai dela faleceu no ano que a gente se conheceu, mas o que isso tem a ver?
— O atropelamento. — A voz dele falhou. — Eu... eu estava lá, Kouta.
A mão que segurava o celular começou a tremer.
— Do que você tá falando, Kenta?
Ele então começou a explicar tudo o que aconteceu, o roubo da carteira, ele fugindo, desviando para não ser pego pelo carro, e a cena onde o atropelamento acontece. E o quanto aquilo o marcou, o quanto ficou sem reação, e que ele apenas saiu em disparada, pois ele não podia deixar de comprar os remédios que eu precisava.
Fiquei sem palavras. O silêncio pesou entre nós.
— Então... — minha voz saiu rouca — foi por isso... que ela sempre evitava contato contigo.
— Sim. — ele respondeu, baixo. — Ela nunca me perdoou de verdade até hoje. Sempre carregou esse rancor. Eu percebia isso, todas as vezes que a gente se encontrava, ela... Parecia querer distância de mim, nós só conversamos uma vez.
A mente girava. Tudo começou a se encaixar.
— Por que você nunca me contou? — perguntei, com a voz embargada.
— Porque foi um pedido dela. — Kenta suspirou. — Ela não queria que você me odiasse. Na única vez que nos falamos, ela pediu pra que eu não falasse nada a você.
Olhei para o retrato de novo. O sorriso dela naquela foto parecia me condenar.
— Eu... — minha voz falhou. — Eu não sabia de metade das coisas que ela tava passando. Eu não sabia que ela ficou comigo mesmo... sabendo que você, meu irmão, indiretamente causou aquilo.
Do outro lado, ouvi um suspiro pesado.
— Eu sempre me culpei por isso. Mas hoje... ela me perdoou.
Me calei. As mãos suavam.
— Kouta. — Kenta chamou. — Você leu a carta?
Olhei para o pedaço de papel rasgado em quatro partes, que eu, no impulso, peguei do chão do banheiro.
— Não.
— Então leia. — a voz dele era firme. — Leia, e quando Aoi voltar... ouça o que ela tem pra dizer.
Desligamos.
Me aproximei devagar das partes da carta. Juntei cada pedaço, encaixando como se fosse um quebra-cabeça. As bordas rasgadas pareciam zombar de mim. Sentei no sofá e, com as mãos trêmulas, comecei a ler.
Cada palavra era uma faca entrando no meu peito.
Cada frase era um peso esmagando meu coração.
"Kouta-kun. Se você está lendo esta carta agora, é porque você está me odiando nesse momento.
Eu juro que se eu pudesse, eu mudaria tudo o que eu fiz, mas eu não posso. Terei que conviver para sempre com isso, e talvez até mesmo com o fato de ter perdido o amor da minha vida, mas eu também ganhei. Porque eu salvei o meu herói.
Você é a pessoa mais importante da minha vida. Uma pessoa que vinha me salvando desde o momento que me conheceu. Eu nunca contei isso para ninguém, muito menos para você.
Quando eu era pequena, eu sofria abusos do meu avô. Ele… tentou fazer coisas que eu no começo não tinha noção, mas… Um dia meu pai flagrou isso e acabou me salvando de tudo aquilo e me fez ter noção do quão abominável era o meu avô e a minha família por parte dele, que defendiam tudo aquilo por conta do dinheiro que ele tinha.
Meu pai cortou os laços com a minha família. Nós passamos a viver com dificuldade, mas com muito amor e sorrisos no coração. Meu pai fazia tudo por mim. Era o meu herói.
Naquela época, eu era a menina mais bonita da sala. Os garotos viviam querendo ficar de mãos dadas comigo e alguns mais velhos até me beijar e eu sempre me incomodei com isso. Todos sempre me tratavam como se eu fosse um troféu, mas a única pessoa ali que me olhava com carinho era você.
Você um dia me salvou sem saber quem eu era, e assim me estendeu a mão. No dia em que você fez isso, foi o dia seguinte em que eu perdi meu pai. Foi como se Deus estivesse me mandando um herói de novo para minha vida. E eu não estava errada.
Por muitas vezes eu pensei em tirar a minha própria vida depois que ele se foi. A minha mãe passou por um período de depressão. Eu tive que amadurecer um pouco mais cedo. Nós não tivemos apoio da minha família. Mas você sempre esteve ali como meu amigo, todas as vezes em que eu estava abatida você sempre vinha com uma florzinha que você arrancava do jardim para me dar. Sempre que eu estava desanimada, você vinha propondo uma brincadeira diferente.
Você me disse várias vezes que você seria a minha família, sempre que eu lembrava do meu pai. Por amor a você, até mesmo o Kenta eu perdoei.
Porque eu te amo, Kouta-kun. Eu amo você de uma forma que eu entregaria a minha vida pela sua e não pensaria duas vezes. A extensão do meu amor por você é maior que tudo.
Tudo que eu quero é que você seja feliz. Você não precisa me perdoar. A única coisa que eu quero é que você saiba que você é o único homem que tem o meu amor. Mesmo que para você, você não tenha outras coisas, você tem o meu amor, e como eu já disse uma vez, a única pessoa que realmente vale a pena fazer qualquer coisa, é com você.
Seja feliz, Kouta-kun."
As lágrimas vieram sem que eu pudesse impedir. Molharam o papel. Borraram as letras.
Ela... ela passou por tudo aquilo.
O avô. O pai. O acidente. A solidão. E mesmo assim, nunca deixou de acreditar em mim. Nunca deixou de me amar.
Eu... a chamei de vagabunda.
Joguei a carta no colo, afundei o rosto nas mãos. Me odiava. Me sentia o pior dos homens.
Me levantei num impulso. Saí correndo da sala. Abri a porta da frente. O ar frio da noite bateu no meu rosto, misturando-se com as lágrimas quentes.
— Aoi! — gritei.
Corri pela rua.
— Aoi, volta!
As janelas se iluminavam, vizinhos curiosos espiavam, mas eu não me importava.
— Aoi! — gritei de novo, a voz quase falhando.
Até que ouvi.
— Kouta!
Uma voz feminina, vinda de longe.
Virei.
— Akemi-chan?
Ela vinha andando pela calçada, parecia cansada, de tanto correr para me alcançar. Estava séria, mas com um sorriso que não alcançava os olhos.
— Eu não posso conversar agora! — gritei, tentando passar por ela. — Eu tô atrás da minha Aoi!
Ela levantou a mão, bloqueando meu caminho.
— Eu sei onde ela tá.
Parei. O peito arfava.
— O quê...?
— Eu posso te levar até ela. — disse, calma.
Seus olhos, porém, tinham algo estranho. Uma sombra. Uma intenção escondida.
Eu não percebi na hora. Não quis perceber.
Meu coração só gritava o nome dela.
E, sem saber, eu estava entrando direto em uma armadilha.