Capítulo XII — Mar tempestuoso... Águas turbulentas!
Os dias se arrastavam como se o tempo tivesse se transformado em uma matéria densa, viscosa, que eu precisava atravessar passo a passo, arrastando os pés. Eu já não sabia dizer quantas manhãs tinham amanhecido desde o dia do assalto. O tempo se dividia apenas entre "antes" e "depois", e o "depois" era um terreno onde tudo era mais silencioso e pesado.
Eu sabia o som exato que o relógio na parede fazia — um tic seco, que parecia zombar de mim. E, ainda assim, o ponteiro dos minutos se movia quase imperceptivelmente. Tudo ao meu redor seguia um ritmo próprio, enquanto eu estava preso no mesmo instante repetido infinitas vezes: o momento em que Rafa caiu no chão.
Todos os dias eu repetia o mesmo ritual. Levantava-me da cadeira dura, com as costas doloridas, e caminhava até o balcão da enfermagem.
— Posso vê-lo hoje? — perguntava, já sabendo a resposta
— Ainda não é possível, senhor Caio — respondia a enfermeira, com a voz suave, mas definitiva.
Minha mãe, Dona Lúcia, estava sempre por perto. Ela não tentava me convencer de que tudo ficaria bem — talvez porque ela também não tivesse certeza, mas sua presença me ancorava. Um toque na mão, um cafuné silencioso, às vezes apenas um olhar cúmplice que dizia: eu sei.
Dona Eloísa, por outro lado, se movia em outra frequência. Não parava. Falava com médicos, advogados, policiais. Era a força ativa que, de alguma forma, mantinha tudo funcionando ao redor. Foi ela quem me avisou que eu precisaria depor na delegacia.
No dia seguinte, fui. As paredes descascadas da delegacia e o cheiro de papel velho me fizeram sentir como se estivesse num lugar que não devia existir para mim. Recontar tudo foi como rasgar uma ferida já aberta. Quando saí, estava exausto.
Ao voltar para o hospital, encontrei Eloísa sentada no corredor, segurando um caderno de capa azul-marinho. As bordas estavam gastas, e havia pequenas manchas de tinta aqui e ali.
— Quero que você fique com isso — ela disse, entregando-me.
— É do Rafa? — perguntei, com cuidado.
— É. Ele escreve aqui desde pequeno. Poemas, pensamentos, coisas que ele não falava para ninguém. E… — ela fez uma pausa — nos últimos tempos, depois da viagem, ele voltou a escrever muito. Inclusive… no período em que vocês estavam afastados.
Segurei o caderno com as duas mãos, como se fosse frágil, e me levantei. Senti um impulso.
— Vou ler ali… — murmurei, apontando para o corredor que levava à UTI.
Caminhei até o vidro que separava o corredor da sala onde ele estava. A iluminação era fria, quase azulada. O som dos aparelhos se misturava a um silêncio pesado. Rafa estava ali, imóvel, cercado por tubos e fios. A máscara cobrindo parte do rosto. A pele pálida. O peito subindo e descendo com ajuda da máquina.
Abri o caderno devagar, sentindo o cheiro levemente adocicado do papel antigo. Passei pelas páginas de infância — rabiscos, frases curtas, poemas ingênuos — até chegar às mais recentes. A letra dele agora era firme, intensa, com algumas palavras marcadas com força.
E então, no meio de uma página, encontrei:
"Se o mundo virar contra nós, eu serei teu escudo. Se a tempestade levar tudo, eu serei tua âncora. E se a morte bater à porta, eu serei o corpo que ela leva, para que a tua vida continue. Porque amar você é mais do que estar ao seu lado — é ser capaz de desaparecer, se isso for o preço para que você fique."
Minha visão começou a embaçar antes mesmo de terminar a leitura. Eu levantava os olhos entre uma linha e outra, e cada vez que fazia isso, lá estava ele — imóvel, respirando por máquinas — como se aquele poema tivesse atravessado o tempo para se materializar naquele instante.
Segurei o caderno com mais força, o papel amassando sob meus dedos. — Você já cumpriu isso, Rafa… — sussurrei, e minha voz saiu quebrada.
Senti o nó na garganta crescer, apertar, até que as lágrimas começaram a cair, molhando o canto da página. Encostei a testa no vidro, como se, de alguma forma, pudesse atravessá-lo.
— Por que você fez isso? — perguntei, mas não esperava resposta. — Eu devia estar aí no seu lugar… não você.
Fiquei ali, imóvel, por longos minutos. Cada bip da máquina era como uma batida de um coração que eu não podia tocar. E, naquele momento, olhando para ele pelo vidro, eu fiz uma promessa silenciosa, quase um juramento: "Eu vou estar aqui quando você abrir os olhos. Não importa quanto tempo leve. Não importa o que custe."
Caio narrando...
Eu saí do corredor da UTI com as pernas pesadas, como se cada passo fosse contra uma correnteza invisível. O caderno estava firme nas minhas mãos, mas meus dedos tremiam como se fosse a primeira vez que eu tocasse nele. As luzes frias do hospital não ajudavam — tudo parecia ainda mais gelado, mais distante.
Entrei no refeitório quase sem perceber, e meus olhos encontraram Miguel sentado numa mesa, mexendo no prato sem realmente comer. Eu me joguei na cadeira ao lado e fiquei em silêncio. Ele ergueu os olhos, me analisou por alguns segundos, e finalmente falou:
— Cara… você tá bem? — perguntou com a voz baixa, hesitante, como se tivesse medo da resposta.
Eu balancei a cabeça devagar, sem coragem de mentir.
— Não… — minha voz saiu trêmula — não tô, Miguel.
Ele se inclinou, preocupado.
— O que aconteceu?
Engoli seco, tentando achar palavras, mas elas vinham misturadas com lágrimas.
— Eu… eu acabei de ler uma coisa… que o Rafa escreveu. — Fiz uma pausa longa, respirando fundo para não desabar ali mesmo. — E parece… parece que ele já sabia… que ele ia fazer isso por mim. Que ele ia… se colocar no meu lugar.
Miguel franziu o cenho, e sua expressão mudou de curiosidade para algo mais sério.
— Posso ver?
Eu apenas abri o caderno e empurrei para ele. Não consegui olhar de novo para a página. Enquanto ele lia, fiquei observando seu rosto. Vi quando os olhos dele se fixaram em uma linha específica, vi quando seus lábios tremeram e… vi quando a lágrima caiu, silenciosa, borrando um pouco da letra de Rafa.
— Caio… — a voz dele falhou antes de continuar. — Eu… eu nunca vi alguém amar tanto outra pessoa assim. Ele… não pensou duas vezes por você. Isso… isso é amor no estado mais puro.
Eu fechei os olhos, tentando segurar a onda que vinha de dentro.
— É… e eu… — minha voz se quebrou — eu não sei se consigo viver sem ele, Miguel.
Ele respirou fundo, desviando os olhos por um instante, talvez para não chorar também.
— Posso… posso ler outro? — perguntou, como se tivesse medo de estar indo longe demais.
Assenti, e ele folheou o caderno até encontrar outra página, datada meses atrás. Limpou a garganta antes de ler, mas eu percebi que suas mãos estavam trêmulas. Enquanto ele lia, eu não conseguia parar de olhar para o vidro da UTI, como se pudesse ver Rafa além dos fios e máquinas.
"Eu vivia cercado de vozes,
mas nenhuma falava comigo.
Eu caminhava em ruas cheias,
mas estava sempre sozinho.
A solidão não era falta de gente,
era falta de alguém que olhasse
e realmente me visse.
Até que um dia,
você chegou.
E não perguntou de onde vinha a minha dor,
apenas ficou.
E ficou.
E ficou.
E, sem perceber,
o silêncio que me matava
foi preenchido com o som da sua respiração
ao meu lado."
Miguel fechou o caderno devagar, como se fosse algo frágil demais para qualquer movimento brusco.
— O Rafa… é um amigo incrível, Caio. E você… você é a pessoa que mudou a vida dele.
Eu respirei fundo, tentando afastar o nó na garganta.
— Mas… e se ele não voltar? — saiu num sussurro. — E se ele não acordar, Miguel? Eu… eu não sei… — coloquei a mão no rosto — eu não sei como lidar com isso.
Ele se aproximou mais, segurando minha mão com força.
— Olha pra mim. — Esperei alguns segundos antes de levantar os olhos. — Ele vai voltar. Eu sei que vai. E quando ele voltar, vocês vão passar por isso juntos. Porque… no fim… o amor de vocês… sempre vence.
Naquele instante, eu senti que precisava acreditar naquelas palavras, mesmo que o medo gritasse o contrário. Porque, por mais que o corpo dele estivesse ali, imóvel… o Rafa ainda estava comigo.
A madrugada tinha um silêncio que doía. Eu já não sabia mais dizer se era o cansaço ou o peso da saudade que me mantinha acordado, mas dormir não parecia opção. Levantei da poltrona improvisada no quarto do hospital e peguei o caderno. Ele estava ali, junto de mim, como se fosse uma parte do próprio Rafa. Eu não conseguia largar… nem por um segundo.
Os corredores do hospital à noite são um mundo à parte. O som distante de um carrinho passando, passos que ecoavam como se viessem de muito longe… e aquele frio que não era só do ar-condicionado — era um frio que vinha de dentro, e que me lembrava que ele estava ali, mas não comigo.
Cheguei ao corredor da UTI. As luzes eram baixas, o ambiente calmo demais, como se o tempo tivesse diminuído só naquele pedaço do hospital. Eu parei diante do vidro e… lá estava ele. O Rafa.
Meu peito apertou tanto que parecia que o ar tinha resolvido ficar preso. Ele estava deitado, imóvel, com o rosto sereno, mas cercado por fios e aparelhos que piscavam e bipavam em intervalos regulares.
Aproximei a mão do vidro, como se pudesse atravessá-lo e tocar nele.
— Rafa… — minha voz saiu fraca, quase sem força para existir.
— Eu não sei se você consegue me ouvir… mas eu preciso acreditar que sim. Porque… porque eu tenho coisas pra dizer.
Fiquei alguns segundos só olhando, tentando encontrar qualquer reação, mesmo sabendo que não viria.
— Eu li o que você escreveu… aquele poema… — apertei o caderno contra o peito, sentindo o peso dele. — “Eu daria a minha vida por você”… Rafa… você fez isso. Você fez isso de verdade.
Senti o nó na garganta crescer, doendo.
— E eu não sei se me sinto orgulhoso… ou se sinto raiva. Porque, droga, você não precisava… mas, ao mesmo tempo… eu sei que, se fosse eu, teria feito o mesmo.
Fechei os olhos e tentei imaginar o sorriso de canto que ele faria agora, aquele que parecia dizer "você sabe que não tinha outro jeito".
— Eu não sei como seguir sem você aqui. Não sei como acordar e não ouvir sua voz, não ver você rindo de alguma coisa que só a gente acha graça… não sei como lidar com esse vazio, Rafa. — minha voz começou a falhar. — E eu sinto muito. Por cada briga, por cada palavra atravessada, por cada silêncio que eu deixei crescer entre a gente.
Me aproximei mais, quase colando o rosto no vidro.
— Eu preciso que você volte. Preciso que abra os olhos, que me olhe daquele jeito… aquele jeito que me faz esquecer de todo o resto.
O silêncio era quase ensurdecedor. Só o bip constante da máquina quebrava o ar pesado.
— Eu vou esperar. O tempo que for. Um dia, um mês… o que for. — encostei a testa no vidro gelado. — Porque o que a gente tem… não existe em nenhum outro lugar. E eu… eu não troco por nada.
Fiquei ali, não sei por quanto tempo. Vi os ponteiros do relógio do corredor avançarem lentamente. Às 3h12, finalmente me afastei, mas o caderno continuava firme nas minhas mãos. Cada página era um pedaço dele, um pedaço que eu ainda podia tocar.
Quando voltei para o quarto improvisado, deitei sem apagar a luz. Fechei os olhos imaginando que, de alguma forma, a gente tinha conversado naquela noite. Sem palavras, mas conversado. Os dias no hospital tinham um tempo próprio. Lá dentro, as horas não seguiam o relógio do mundo — elas se arrastavam. Cada amanhecer parecia igual ao anterior, e cada noite tinha o mesmo peso sufocante.
Eu vivia preso a um ritual: acordava cedo, tomava um café tão amargo que parecia rasgar minha garganta, e me sentava na mesma poltrona, olhando para a mesma porta, esperando… esperando que alguém entrasse com boas notícias.
Eu estava vivendo da última frase que o médico tinha me dito dias atrás:
"Em alguns dias ele poderá sair do coma. Mas ainda é incerto."
Essas palavras eram meu único bote no mar revolto. Eu me agarrava a elas com a força de quem não sabia mais nadar.
Mas naquela manhã, quando a porta se abriu, vi um olhar diferente no rosto do médico. Não era esperança. Era peso. Era urgência.
— Precisamos conversar sobre o Rafael — disse ele, com a voz controlada, mas carregada.
Não me chamou sozinho. Pediu que todos que estavam ali fossem com ele: Dona Lúcia, Miguel, e Dona Eloísa, que havia chegado cedo.
Na sala pequena, o silêncio era quase palpável. Ele respirou fundo antes de falar.
— O Rafael apresentou sinais de infecção sistêmica.
Meu peito apertou de um jeito que doeu.
— Infecção?
— Sim. Trata-se de septicemia, causada por uma bactéria que entrou na corrente sanguínea. É grave, muito grave. Essa bactéria se espalha rápido, liberando toxinas que sobrecarregam o corpo e podem afetar órgãos vitais.
Dona Lúcia levou as mãos à boca, os olhos marejados.
— Não... Meu Deus!
— Isso… isso significa que ele… — Dona Eloísa não conseguiu completar.
— Significa que cada hora é crucial — respondeu o médico, firme. — Estamos administrando antibióticos fortes, mas ele está debilitado e a resposta do corpo pode ser lenta.
Meu corpo inteiro tremia.
— Eu quero vê-lo. Agora.
— Não é recomendável neste momento — tentou argumentar o médico. — Ele precisa de isolamento para evitar novas infecções.
— Eu não me importo com recomendação! — minha voz saiu mais alta do que eu queria. — Eu preciso ver ele. Nem que seja por um minuto.
O médico me encarou, vendo que não havia negociação.
— Tudo bem… mas você vai precisar se paramentar completamente e seguir cada protocolo.
Pouco depois, já vestido com máscara, touca, avental e luvas, entrei no quarto. O cheiro de antisséptico era mais forte que nunca. As máquinas continuavam seu concerto constante de bips e sons intermitentes — um lembrete frio de que ele estava ali, preso entre a vida e o nada.
Me aproximei devagar, sentindo o peso daquele momento. Toquei sua mão. Gelada. Tão frágil que parecia que poderia quebrar.
— Oi, amor… — minha voz falhou. — Eu li o caderno que sua mãe me deu… li cada palavra, cada vírgula. Você escreveu que daria sua vida por mim… e você fez isso.
Uma lágrima caiu na luva, escorrendo até sumir no tecido.
— Eu não quero que você me dê a sua vida. Eu quero viver essa vida com você.
Por alguns segundos, só o bip constante respondeu. Então… senti. Um leve aperto na minha mão. Quase imperceptível, mas estava lá.
Meu coração disparou.
— É isso… volta pra mim, por favor…
Me inclinei mais perto, quase tocando meu rosto ao dele, e nesse instante o som das máquinas mudou. O ritmo acelerou, muito rápido. Alarmes dispararam.
— Rafa? — minha voz carregava um pânico que eu não conseguia esconder.
O corpo dele começou a tremer, primeiro levemente, depois de forma mais violenta. O monitor cardíaco apitava sem parar. A porta se abriu bruscamente, médicos e enfermeiras invadindo o quarto.
— Está entrando em choque! — uma voz gritou.
E então… o som mais aterrorizante que eu já ouvi: o apito contínuo, seco, que congela qualquer coração. Linha reta no monitor.
— NÃO! — gritei. — RAFAEL!
Tentaram me afastar, mas eu prendi minha mão à dele com força.
— Ele me ouve! Eu sei que ele me ouve!
— Senhor, precisamos de espaço! — insistiu uma enfermeira.
— NÃO! — me curvei, falando quase no ouvido dele. — Você não vai me deixar! Você prometeu… lembra? Lembra de nós? Lembra do que você escreveu?
As compressões começaram. O som seco das mãos batendo contra o peito dele ecoava como marteladas na minha alma. Um choque elétrico. O corpo dele arqueou. Silêncio. Outro choque.
Eu chorava como nunca chorei antes.
— Volta… volta pra mim… eu não sei viver sem você…
O bip voltou. Fraco, hesitante. Mas voltou.
Eu desabei na cadeira, ainda segurando sua mão, sem conseguir soltar.
Quando levantei os olhos, vi Dona Lúcia chorando com o rosto escondido nas mãos, Miguel parado na porta com as lágrimas escorrendo, e Dona Eloísa trêmula, tentando se manter firme.
O médico respirou fundo e disse:
— Ele voltou… mas o quadro ainda é extremamente delicado.
Eu só consegui sussurrar, com a voz embargada:
— Eu tô aqui… e não vou soltar. Nunca.