No Capítulo anterior:
Elaborei um projeto de turismo cultural. Eu passaria temporadas em países diferentes. Eu me mudaria para um país e só sairia de lá quando estivesse fluente na língua.
Pelos meus planos, em dez anos, eu falaria, além do inglês e do português que eu já dominava, espanhol, francês, italiano, alemão e, o supremo desafio, mandarim.
Preparei minha documentação, verifiquei se as vacinas estavam em dia e, por fim, marquei a data do embarque. Agora só faltava arrumar as malas.
Continuando:
Tudo correu como imaginei. Meu primeiro destino foi a França; vivi em Paris por dois anos. Depois, fui para Itália, terra dos meus antepassados, onde, além de aprender o idioma, fiz uma pesquisa genealógica que me permitiu obter a cidadania italiana. Ter um passaporte da Comunidade Europeia mostrou-se muito útil nas minhas viagens. Na Itália, morei em duas cidades: um ano em Roma e outro em Florença.
Seguindo a trilha de países de língua latina, mudei-me para a Espanha. Passei dois anos em Barcelona.
Pelos meus planos originais, os destinos deveriam ser países cuja língua eu não dominasse. Contudo, já fluente em francês, italiano, espanhol e inglês, resolvi passar uma temporada em Londres.
Foi um ano muito divertido. Além de perceber que meu vocabulário em inglês enriqueceu substancialmente, a cena liberal inglesa é única.
Por fim, fui para Alemanha. Planejava ficar dois anos, mas acabei ficando três em Berlim. A cidade é maravilhosa, a cena liberal rivaliza com a inglesa, mas o que me prendeu foi a língua. Dois anos não foram suficientes para adquirir fluência; eu já dominava a língua, mas não me sentia seguro como nas outras que era fluente. A decisão foi correta; quando decidi partir, já sonhava em alemão.
Foram dez anos maravilhosos, nos quais, além de aprender novas línguas, vivenciei culturas diferentes e tive experiências fantásticas. Talvez um dia eu escreva sobre esses anos loucos.
Parti com 38 anos, agora, com 48 anos, eu era um homem diferente. Além de poliglota, de conhecer a Europa melhor que a maioria dos europeus – fiz inúmeras viagens curtas no entorno das cidades onde morei e algumas mais ousadas – eu me dediquei com obsessão a atividades físicas. Nunca fui tão forte como aos 48 anos de idade e o treinamento para maratonas me deu um fôlego que não tinha na adolescência.
Com o passar do tempo, Ruth desapareceu do meu imaginário, mas às vezes eu sonhava com nossos bons momentos. Quando acordava, não sentia tristeza; o que me consumia era uma leve melancolia, fruto da ideia de que esses anos de turismo cultural com ela poderiam ter sido ainda melhores.
Contudo, a marca mais profunda que Ruth deixou em mim foi uma inabalável descrença no amor. Nunca mais me apaixonei; meus relacionamentos se limitaram à busca pela satisfação sexual. Reese foi a primeira de muitas que minha descrença no amor limitou às possibilidades do que poderia ter sido.
Depois de quase três anos na Alemanha, já fluente na língua, comecei a pensar no próximo destino. Pelos meus planos, era hora de encarar a China, meu maior desafio, mas fui atravessado por um vírus.
Meu agente de viagens alertou sobre uma epidemia de gripe no país asiático, preferi continuar na Europa. Escolhi a Holanda.
Como fazia todo ano, passei o Natal com meus pais no Brasil e voltei para Europa.
Depois de me instalar em Amsterdã, com o saco cheio de um frio absurdo que me impedia de conhecer a cidade, resolvi passar o verão no Rio. A ideia era chegar no começo de fevereiro, curtir as praias e o clima pré-carnaval, e fechar com chave de ouro no carnaval, que neste ano aconteceria no início de março. Depois, voltar para o frio de Amsterdã.
Tudo foi perfeito, amo o carnaval do Rio de Janeiro, mas a quarta-feira de cinzas veio com uma surpresa. A gripe asiática ganhou o mundo, não estava mais restrita à China, começou a se espalhar por todo mundo e chegou ao Brasil. Pela primeira vez desde 1917, tínhamos uma pandemia.
A COVID, como um tsunami, mudou nossas vidas e, como não podia deixar de ser, cancelou os meus planos.
Quando vendi meu apartamento, no fatídico mês em que me divorciei, recebi como parte do pagamento dois apartamentos pequenos em um condomínio na Avenida Cásper Libero. Em um primeiro momento, pensei em recusar a proposta, mas refleti melhor: seria útil ter um lugar para guardar minhas coisas, já que pretendia voltar para os EUA e, agora divorciado, sem planos para retornar.
Fui com o corretor conhecer os apartamentos, imaginando que faria uma contraoferta: aceitar apenas um dos apartamentos no negócio.
Tudo mudou quando chegamos ao condomínio. O prédio, construído no final dos anos 1930, era maravilhoso. Com sua fachada em forma de ondas, modulada com varandas contínuas e esquadrias metálicas, ele era único. Os apartamentos eram pequenos, mas conjugados; vislumbrei a possibilidade de transformá-los em um só. Fechei o negócio, contratei uma empresa para limpar os imóveis, transferi minhas tralhas para lá, tranquei as portas e voltei para os Estados Unidos. Os apartamentos, reduzidos a depósitos, ficaram fechados.
Quando voltei ao Brasil, fiquei na casa dos meus pais até partir como nômade cultural. Contudo, antes de viajar, pensando que, ao voltar, não queria repetir a experiência de ficar hospedado na casa de meus pais, transferi minhas coisas dos apartamentos para um depósito e contratei uma empresa de arquitetura e decoração para transformar os dois apartamentos em um só, espaçoso, confortável e com uma decoração minimalista. Queria um porto seguro no Brasil, e ficar com meus pais não era opção.
O resultado foi satisfatório. Na primeira vez que voltei, devolvi o depósito e organizei minhas tralhas no meu novo lar brasileiro. Não foi fácil; muitos objetos me lembravam Ruth e nosso antigo ninho.
Todo ano, independentemente de onde eu estivesse, eu voltava ao Brasil para passar o Natal com meus pais; era uma tradição que não abria mão, mas ficava no meu apartamento na Cásper Líbero.
Foi neste apartamento que me enfurnei para esperar a vida voltar ao normal.
Com tempo de sobra e poucas possibilidades de distração, decidi fazer um balanço das minhas finanças, algo que vinha procrastinando.
Odeio lidar com dinheiro. Durante minha adolescência, no período em que fui universitário e nos primeiros tempos da minha empresa, não tive escolha: lidava com meus limites financeiros diariamente. Contudo, conforme meu aplicativo foi ganhando o mercado, procurei formas de evitar ter que lidar e pensar no aspecto financeiro do negócio. Descobri uma empresa especializada em gerir o financeiro de empresas de tecnologia, do planejamento ao fluxo de caixa, o que me facilitou a vida. Mais tarde, com o crescimento da empresa, contratei um escritório de advocacia especializado em consultoria financeira, que acompanhava, em paralelo, o trabalho feito pela gestora do meu financeiro. Por fim, com a perspectiva de abrir o capital, um banco de investimento foi adicionado ao pacote. Ou seja, eu não precisava me preocupar com o dinheiro da empresa; todo trimestre, eu recebia três relatórios e os encaminhava ao gestor do meu patrimônio pessoal, gerente de gestão de grandes fortunas de um banco norte-americano com filial no Brasil e, meu primo!
Uns dois anos antes de me mudar para os Estados Unidos, meu primo se aposentou. Como tinha a confiança de muitos clientes, que não abriam mão de seus serviços, abriu uma empresa para continuar a fazer o que sempre fez com competência. Em pouco tempo, sua firma tinha mais de cinquenta funcionários, entre contadores, economistas, administradores e advogados.
Quando me divorciei, fui representado por advogados de sua firma.
Lembro que fiquei surpreso ao saber que uma firma de gestão de patrimônio tinha três advogados especialistas em direito de família. Meu primo riu e me deu a real: divórcios são o maior fator de depreciação de patrimônio. Casar é um empreendimento de risco!
Quando vendi minha empresa, foi meu primo quem, junto com uma firma de advocacia de Nova York, cuidou de todos os trâmites.
Como era de se esperar, ele continuou a administrar meu patrimônio, agora infinitamente maior.
Minha confiança em meu primo era absoluta. Ele foi criado junto com meu pai e são melhores amigos desde a infância. Apesar de ser muito bem-sucedido profissional e financeiramente, vive com uma simplicidade digna do Pepe Mujica. Com sessenta e quatro anos é solteiro convicto, continua morando na casa que herdou dos pais na Zona Leste, dirige um WW Gol de vinte anos de idade e só viaja para fora do país à trabalho. Seu único luxo é uma casa na beira da praia no Guarujá, ele vai para lá todo final de semana, faça chuva ou sol.
Ou seja, com um gestor de minha total confiança, eu não precisava me preocupar com meu patrimônio; pelo contrário, sua gestão quadruplicou-o em dez anos!
O problema é que ele estava cansado, pensando em parar de trabalhar. A morte de vários amigos por COVID mudou sua maneira de ver a vida; ele queria se mudar para o Guarujá e aproveitar seus últimos anos.
Quando me contou seus planos, eu o apoiei; ele não precisava mais trabalhar e tinha que aproveitar a vida.
O problema era que eu não tinha a mesma confiança no profissional que o substituiria.
Meu primo procurou me acalmar; Dr. Pedro era de absoluta confiança, trabalhava com ele desde os tempos do banco, mas me alertou:
— Filho, ele sempre me chamou de “filho”, fazem anos que te peço para acompanhar de perto suas finanças, e você desconsidera. Agora, por mais confiável que Pedro seja, você não tem escolha. Ele não é seu sangue; trate de cuidar melhor do seu dinheiro!
A firma continuou a me prestar serviços, mas, sem a presença do meu primo, fui obrigado a ficar mais atento. Se antes eu verificava a evolução de meu patrimônio uma vez por ano, agora a cada trimestre eu tinha que vasculhar planilhas e mais planilhas para entender o que estava acontecendo.
Dr. Pedro se mostrou um profissional digno da confiança de meu primo, mas eu nunca tive tanta consciência de como meu dinheiro fazia mais dinheiro.
Entediado, fiz o maior e melhor levantamento das minhas finanças.
Eu sabia que era rico, vivia uma vida sem preocupações materiais, viajava para onde desejava e comprava o que me desse na telha sem perguntar o preço. Contudo, ver no monitor o montante do meu patrimônio, como crescia mais rápido do que eu poderia gastar, era assustador. Me senti mal.
Percebi que, apesar de possuir o poder de transformar vidas, sentia tédio com as restrições impostas pela pandemia e indignação por ter meus planos interrompidos.
Passei as próximas horas fazendo doações para toda e qualquer instituição que apoiava pessoas afetadas pela COVID e seus familiares. Quando terminei tinha “queimado” o equivalente a um apartamento de luxo nos Jardins, uma gota no oceano de zeros à direita do número 27 que a planilha que totalizava meu patrimônio indicava. Fui tomar banho feliz, senti que, pela primeira vez desde que vendi meu aplicativo, fiz a diferença.
Quando saio do banho, meu computador e celular listavam centenas de e-mails.
Imaginei que eram das instituições para as quais doei, agradecendo. Realmente, uma minoria dos e-mails era de agradecimento, mas a maioria era de instituições e até pessoas físicas pedindo dinheiro.
O celular tocou; era meu primo. Quando completei a ligação ele começou a falar, não me dando espaço para argumentar.
— Rodolfo, você é maluco? O Pedro me ligou desesperado, tentou falar contigo e não conseguiu. Ele me disse que você estava queimando dinheiro como um louco. O que está acontecendo?
Finalmente consegui falar. Expliquei o que fiz e o porquê fiz. Ele suspirou e me explicou que não era contra eu doar dinheiro para necessitados, mas que a forma que fiz era temerária. Perguntei o porquê e ele explicou.
— Você não deveria ter feito as doações através do seu CPF, e sim do CNPJ da empresa que criamos para centralizar seu patrimônio. Você expôs seu nome como grande doador, e não vai demorar para sua caixa postal estar entupida de pedidos.
Pois é, vivendo e aprendendo! Quando contei que o bombardeio já tinha começado, meu primo caiu na risada.
O incidente não diminuiu minha felicidade em ajudar; tanto que criei um filtro para meus e-mails e passei a ler apenas os agradecimentos.
Por volta da meia-noite, li um e-mail que me arrepiou. Foi enviado por uma ONG criada por uma igreja no bairro de Santana, que distribuía cestas básicas para famílias necessitadas.
“Rodolfo,
Sempre soube que você é uma pessoa boa, com um grande coração. A doação que fez para a ONG que comando só mostra que, apesar de nossas diferenças, você amadureceu com os anos e perdoou as palavras duras que te disse em nosso último encontro.
Muito obrigado.
Ruth
PS: Gostaria muito de falar com você. Por favor, me ligue.
Beijos.
Eu não acreditei no que li. Doei para uma ONG ligada a Ruth e, com toda certeza, ao bando de fanáticos que a aliciaram.
Todo o prazer que tive com as doações morreu ao ler aquele e-mail.
Perdi o sono. Por incrível que pareça, a palavra que mais me perturbava era o “beijos” no post scriptum. O fato de ela querer falar comigo também assustava, mas aquele “beijos” me fez pensar em cada beijo que trocamos.
A filha da puta ainda mexia comigo!
O tempo é cruel, não só por consumir nossa juventude, mas por tornar nossa memória seletiva. Quase sucumbi e respondi ao e-mail de Ruth; por algumas horas, só me lembrava dos “beijos”, dos nossos bons momentos. Contudo, o amor que senti por ela não mais existia. Recordar Ruth, que foi minha companheira, era bom, mas ela não mais existia. A Ruth que me enviou o e-mail era a que traiu nosso relacionamento, que me fez sofrer. Deletei seu e-mail.
O lockdown foi difícil; só saía do apartamento uma vez por semana para ir ao supermercado. Não que precisasse, mas eu queria ver outras pessoas. A desculpa de comprar comida e material de limpeza era perfeita, apesar de normalmente eu fazer isso online.
Em uma dessas incursões, encontrei Bruna, esposa do Chicão. Depois de uma breve conversa, mantendo a distância regulamentar, descobri que atualmente ela era ex-esposa. Passamos a conversar pela internet e descobrimos muitas afinidades. Contei minhas desventuras com as doações. Ela falou algo que me deixou intrigado: que, ao invés de doar para instituições que podem ou não atender à população, eu deveria focar em um empreendimento assistencial do qual eu tivesse conhecimento do seu alcance e funcionamento.
Meu conhecimento se limitava à programação e, com boa vontade, um pouco de literatura. Como esse conhecimento poderia ser útil durante a pandemia?
A ficha caiu durante uma conversa despretensiosa com meu pai. Estávamos em uma videochamada falando sobre os conhecidos mortos pela pandemia. Ele me contou que Cleber, um grande amigo na minha adolescência, tinha falecido na semana passada. Senti a foice do ceifador passar perto; Cleber tinha minha idade e era obcecado por cuidados com a saúde.
Contava alguns episódios divertidos com Cleber quando meu pai perguntou onde o conheci, já que estudávamos em escolas diferentes. Contei que ele foi meu colega nas aulas de informática no centro comunitário perto de casa.
Meu pai fez um comentário que tornou viável a ideia de Bruna.
— Lembro do centro comunitário; muitos garotos conseguiram emprego graças aos cursos que ele promovia. Pena que fechou.
Pensei imediatamente que poderia financiar uma escola de informática para que garotos carentes pudessem aprender uma profissão que, graças à pandemia, não parava de demandar novos talentos.
Liguei para Bruna. Ela adorou a ideia e se dispôs a me ajudar.
Com seus contatos na universidade e com o peso de meu nome no setor, rapidamente conseguimos formar um grupo de onze profissionais empenhados em construir um curso de informática para jovens que ia além de ensinar a ser bons usuários dos softwares básicos, mas que os permitissem ter um vislumbre real da construção de um software. Em síntese, queríamos mostrar aos nossos futuros alunos que além de consumidores de tecnologia poderiam se tornar produtores.
Projeto ambicioso? Sim, mas aos poucos conseguimos avançar bastante. No início, foram aulas online, depois uma escola física na Zona Leste. Com o aperfeiçoamento do método, resolvemos expandir. Montamos uma central de treinamento de instrutores em São Paulo e ampliamos o número de escolas físicas significativamente.
No início, eu banquei tudo, mas, com o sucesso da empreitada, atraímos gigantes corporativos.
Em um ano, meu dinheiro já não era tão necessário; o projeto se sustentava com os patrocinadores.
Conseguimos construir algo útil, que poderia fazer diferença na vida de milhares de jovens e não cobramos nada por isso. Todos os cursos eram gratuitos.
O interessante é que nunca participei da administração da fundação criada para tocar o projeto, também pouco colaborei na construção dos cursos. Minha participação se restringiu às ideias, recursos e à credibilidade da minha imagem. Todas as escolas tinham fotos minhas com frases do tipo: “Se esforce, você pode ser o próximo Rodolfo.” Pelas previsões da Fundação, em 2026, teremos 432 escolas espalhadas pelo estado de São Paulo, sem contar os milhares de alunos online em todo Brasil.
Eu estou colocando a carroça na frente dos bois. Para vocês entenderem as reviravoltas pelas quais passei, bastava dizer que Bruna foi meu braço direito no início do projeto, que passávamos horas em vídeo conferência. Contudo, não consigo ser sucinto ao falar sobre as escolas. São minhas meninas dos olhos. Me perdoem.
Nossa intimidade e sintonia eram tão grandes que resolvemos praticar o isolamento social juntos.
A decisão não foi romântica, foi pragmática. Não queríamos desrespeitar o isolamento social, mas precisávamos de contato humano. Em pouco tempo, a intimidade cresceu e o desejo se tornou explícito. Passamos a transar, e nossa sintonia na cama era das melhores.
No final de 2020, com a pandemia parecendo mais calma, fomos convidados para o lançamento do mais novo livro de Alfredo, um velho amigo meu e de Bruna, figura frequente nos jantares em nossas casas quando éramos casados. Em um primeiro momento, pensamos em não ir para evitar constrangimentos. Chicão não sabia que sua ex estava morando comigo e, como a separação foi por iniciativa dela, o clima poderia ficar tenso. Em nenhum momento pensei que Ruth, que até onde eu sabia, vivia para a igreja, fosse aparecer.
Depois de dois telefonemas de Alfredo nos intimando a ir, confirmamos nossa presença.
Ruth não apareceu, conforme eu previra, mas Chicão estava lá. Por sorte, Bruna identificou o carro do ex-marido antes de encontrá-lo. Cumprimentamos Alfredo rapidamente, e ela preferiu voltar para casa. Apesar de minha relação com Bruna ser de amizade com benefícios, eu não gostei da sua atitude. Qual o problema de encontrar-se com o ex acompanhada de um amigo?
Resolvi conversar com Chicão; afinal, ele sempre foi meu amigo e não havia motivo para participar de um triângulo em que um dos vértices é um ex.
O angu tinha caroço. Chicão me contou que ele e a esposa tinham dado um tempo no relacionamento, mas foram pegos pela pandemia.
— Mas, como assim, Chicão? Me falaram que vocês se divorciaram.
— Infelizmente, não, Rodolfo. Eu pedi o divórcio, mas ela não aceitou, pediu um tempo e veio a merda da pandemia.
— Impressionante, disseram-me que ela pediu o divórcio...
— Nada a ver, a vadia estava me chifrando com o personal; tem coisa mais clichê? Fotografei ela saindo do motel, e a perversa diz que ainda me ama e não quer me dar o divórcio.
— Chicão, nem sei como te falar: ela está morando no meu apartamento. Ela me disse que tinha se divorciado há tempos.
— Mas que filha da puta, por isso que eu não encontro a vadia. E você, meu amigo, comendo minha mulher...
— Cara, você me conhece. Eu nunca ficaria com ela se soubesse que vocês ainda são casados; mulher de amigo, eu só fico se o casal for liberal.
— Eu sei, lembra da Fefê? Eu estava apaixonado e ela deu mole para você; além de não pegar me deu o toque. Escapei de uma puta roubada: ela casou com o Bráulio e encheu a testa dele de chifres.
Chicão continuou:
— Mas cara, você já foi mais esperto; caiu na conversa da vadia! Depois da Ruth, você tinha que estar mais esperto!
— Tudo bem, pode zoar, eu mereço. Mas vou te ajudar a conseguir o divórcio. Alguma ideia?
— Estou pensando... Vou fazer o seguinte: pedirei ao meu advogado que informe nos autos onde ela está morando, para que o oficial de justiça a notifique. Talvez seja útil informar que ela está vivendo com você... Com seu testemunho, o divórcio é certo. Não diga nada a ela, aproveite para tirar mais umas casquinhas, ela fode muito. Quando o oficial de justiça for citá-la, não terá como escapar. Me envie seu endereço pelo WhatsApp.
— Mandei o endereço; veja se chegou... Certo, em nome da nossa amizade, farei o sacrifício de continuar a comer aquele rabo.
— Chegou! Filho da puta, a vadia nunca me deu o rabo...
— Tô zuando, eu também não comi!
- Ainda bem, tomar chifre do cabaço do cu não ia pegar bem para meu histórico... Rodolfo, vou vazar, quero falar com o advogado ainda hoje.
— Tudo bem, irmão. Vai me atualizando.
— Pode deixar, fui!
Eu estava puto. Confiei na Bruna, estava curtindo ficar com ela e, mais uma vez, levei uma facada nas costas. Mas tudo bem, ela ia pagar com juros, além de ajudar Chicão com o divórcio, decidi comer o cu virgem da vadia.
Estava pensando em ir embora quando ouvi meu nome:
— Rodolfo, querido!
Virei-me e vi minha antiga secretária, Débora, a irmã de Ruth.
— Débora! Quanto tempo que não te vejo, mas não me chame mais de chefe, não chefio mais nada. Como você está?
— Estou bem, trabalhando em Piracicaba. Lembra? Era nossa concorrente.
— Claro que lembro, eles me ligaram pedindo referências. Falei que você era uma secretária medíocre, que chegava atrasada todo dia...
— Hahaha, sei que você me elogiou bastante; meu atual chefe me contou, ele até pensou por um tempo que tínhamos um caso.
— Puta merda, não queria te causar problemas. Como você resolveu isso?
— Contei que era sua cunhada, na época, você e a Ruth ainda estavam juntos. Mas me diga, é verdade que vendeu a empresa e está vivendo de rendas?
— A mais pura verdade: agora sou um burguês e vivo para curtir a vida. Você já falou com o Alfredo?
— Já comprei o livro e consegui o autógrafo. Estava saindo quando te ví.
— Eu também já estava indo embora. Estou pensando em comer algo, estou morrendo de fome. Vamos comigo? Ou você precisa voltar para Pira hoje?
— Estou de férias; só volto em duas semanas. Também estou com fome; vamos comer e colocar o papo em dia.
Débora era uma versão menor de Ruth, pareciam gêmeas, apesar de ser um pouco mais baixa, com menos seios e bunda. Tudo absolutamente proporcional ao seu tamanho. O corte de cabelo, mais que a altura, era o grande diferencial. Ruth usava o cabelo até a cintura, Débora preferia um corte Chanel estilizado.
Enquanto trabalhávamos juntos, construímos uma amizade sólida. Ela frequentou minha casa no início do meu relacionamento com sua irmã, até que, misteriosamente, pediu a conta.
Ruth afirmou que era uma questão dela e que não devíamos nos meter. Pouco depois, com minha indicação, ela foi para Piracicaba. Nunca mais a vi, nem nas festas de fim de ano. Uma vez, questionei Ruth, não entendia como ninguém da sua família falava sobre a filha mais nova. A resposta foi curta e grossa: ela traiu a confiança dos pais e não era mais bem-vinda. Questionei e recebi o clássico: "isso não é da sua conta". Deixei quieto. Voltei a falar da irmã quando a mãe adoeceu. Na minha cabeça, o mais lógico era a filha solteira cuidar da mãe, mas não. Ruth descartou essa possibilidade e preferiu deixar de viajar comigo. Essa história estava mal contada; quem sabe, não conseguia descobrir algo durante o jantar.
— Perfeito, boa comida e ótima companhia. Se não me engano, você gosta de comida japonesa, pode ser?
— A memória continua boa, chefinho! Vamos, já estou salivando!
Escolhi um restaurante perto do meu antigo apartamento. Débora o conhecia; não foram poucas as vezes que eu, ela e Ruth degustamos barcas e mais barcas naquelas mesas. Fui reconhecido por um dos proprietários logo que entramos. Sem pedir, recebemos um tratamento diferenciado. Nos colocaram em um uma mesa que nos garantia completa privacidade e escalaram um garçom para nos atender com exclusividade. Claro que o “tratamento diferenciado” era apenas o cumprimento das medidas sanitárias...
Antes do pedido, recebemos a visita dos proprietários, agradecendo pelo nosso retorno à casa. Não sei como eles ainda tinham essa informação; fazia anos que não visitava o restaurante, mas o garçom me chamava pelo nome, ou melhor, pelo nome com o título, Dr. Rodolfo. Débora, minha acompanhante, se transformou na Sra. Ruth na boca do garçom.
Rindo, eu corrigi o garçom. Débora até tentou fazer graça, mas percebi que ela não gostou do engano.
Comemos e bebemos muito. Contei como foi minha vida nos EUA, os detalhes da venda do meu aplicativo, os últimos anos fazendo turismo cultural na Europa e o projeto das escolas. Ela me contou do novo trabalho, dos desafios que assumiu e venceu, do fim do noivado e das suas estratégias de paquera em uma cidade de médio porte no interior paulista. Rimos muito. Quando começamos a pensar em ir embora, eu fiz a pergunta que mudou o rumo da nossa conversa.
— Não estou bêbado, mas já não confio nos meus reflexos. Acho melhor deixar meu carro no estacionamento do restaurante e chamar um Uber para te levar. Você está hospedada na casa da sua mãe?
— Na casa da minha mãe? De maneira alguma. Eu não lembro a última vez que fui à casa dos meus pais, ou melhor, lembro sim: no velório da minha mãe, há seis anos. Você não ficou sabendo do falecimento da minha mãe?
— Não, Débora, ninguém me informou, mas eu desconfiava.
— A Ruth disse que iria te ligar, mas provavelmente esqueceu, pois foi um período difícil.
— Sinto muito, Débora. Se tivesse sido informado, eu certamente teria ligado para você. Perder a mãe pouco tempo depois de perder o pai é um golpe duro.
— Rodolfo, você me conhece; não gosto de falsidade. Eu não tinha sentimentos por meus pais, nem amor, nem ódio; é como se eles fossem dois estranhos. Pode parecer insensibilidade, mas indiferença é a palavra que definia minha relação com eles. Quando digo que foi um momento difícil, não me refiro à perda, mas às dívidas acumuladas durante o tratamento. Ela foi muito bem assistida; todo o tratamento e a cirurgia foram feitos no Sírio-Libanês, a conta foi astronômica. Um dia depois do enterro, Ruth já estava correndo atrás de advogado para agilizar o inventário. Vendemos a casa, um apartamento, carros, móveis, joias, tudo que podia ajudar a amortizar a dívida com o hospital. Depois de tudo vendido, pagamos 90% da dívida; os outros 10% foram pagos com as minhas economias e as de Ruth.
— Relacionamento familiar nunca é fácil. Lembro que você e seus pais não se davam bem; perguntei os motivos à sua irmã, mas ela nunca quis me contar. Agora, não importa mais.
Débora me olhou de uma maneira diferente, parecia que queria continuar o assunto, mas que minha fala, "Agora não importa mais", a fez repensar. Realmente, eu queria encerrar o assunto; algo que ela disse me incomodou muito. Eu queria pensar, sem álcool na cabeça, antes da inevitável retomada do assunto. Paguei a conta, pedi um Uber e a levei para o hotel onde estava hospedada.
Depois, fui para casa. Bruna me esperava; eu tinha que encenar uma normalidade que não existia, acabou sendo bom. Deixei minhas preocupações com Débora e sua irmã de lado.
Continua.
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